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O idiota é o bom cidadão; é o controlado,
é aquele que afirma as significações dominantes. Mas o idiota não é alguém, uma
pessoa, diz respeito a uma forma de pensar. Não há como não ser idiota, não
pensar como todos, não ser bom cidadão. Porém, pode-se traçar linhas de fuga,
ficar menos protegido, experimentar. Isso pode ser na arte, na vida, na
ciência, na filosofia, na música, no que for.
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O controle não necessita de um comando
central; as pessoas vigiam a si e aos outros. A cartografia não é
autovigilância é exatamente a compreensão da vigilância, e o que se pode ou se
quer fazer em relação a isso. As pessoas são apegadas a uma certa normalidade e
lutam a todo custo para mantê-la. Se sentem seguras aprisionadas, longe do
caos. Gostam de suas casas, querem elas bem cuidadas e agradáveis. E quando
estão na rua se sentem bem em ver um policial. Seria um mundo perfeito se
houvessem policiais em todas as esquinas; mas há policiais tão duros, ou
piores, nas ruas, por todos os lados, como disse, vigiando os outros e a si
mesmo.
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Não é fácil, principalmente sendo um
doutor, branco, classe média, compor a cartografia, já que os devires, as
linhas de fuga são mais imperceptíveis para a subjetividade dominante. É
interessante que muitos, o bom cidadão, só conseguem pensar em termos de macro
política, política do Estado. Desconsideram a micro política, que não é menos
expressiva, mas se refere a outras lógicas. Não conseguem enxergar a multidão
já que ela não tem rosto e não assina seu próprio nome. Ninguém diz: ‘somos a
multidão’; ou: ‘ali está a multidão’. Já um político é facilmente identificado:
tem um nome, um partido, fala por si mesmo, se representa. Políticos de
qualquer esquerda são um atraso, parece que não viveram a virada do século; se
tivessem vivido não seriam políticos, esses “Eus” centrados, personas; eles
deveriam estar no meio dos movimentos em rede, ser mais um na multidão. Sim, os
indivíduos são importantes e singulares nos movimentos, mas não são
egocêntricos ao ponto de ter o desejo de salvar o mundo sendo um político do
Estado. As pessoas enxergam apenas o visível: um político, um rosto, um
posicionamento ideológico, um discurso. Belzebu é um enxame; Legião (o demônio)
é uma multiplicidade; Baphomet é um monstro impuro; isso é a Multidão, não um
bom Deus, seu bom filho, alguém acima, em um mundo ideal que dá as leis para
que seus filhos vivam. Por isso, Negri trata os políticos, o Estado, como
afirmadores de transcendência. Voltamos para a luta primeva? Deus X a Legião
Demoníaca? Talvez por isso não se fale em multidão e movimentos em rede e sim
apenas na política estatal. O demoníaco não pode nem ser mencionado pelos
fanáticos pela transcendência. Isso mostra a necessidade de uma nova percepção
para entender um outro mundo vivo, atual e caótico – e só os loucos enxergam o
caos.
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O bom cidadão é apaixonado por si e os
seus, eles são bons; o vagabundo é o erro da sociedade, como os outros párias.
Mas o vagabundo mostra outras realidades, tempos possíveis, e isso dói no bom
cidadão já que ele é apaixonado por sua vida. O bom cidadão, o sujeito
incluído, de classe média, que vive com mais segurança que os outros, se ama
tanto que deseja que todos tenham uma vida igual a sua, essa é sua utopia. Ele
não aceita a vida do pária, o pária não pode ser pária, ele não pode ter essa
possibilidade de vida. Todos têm que trabalhar, ter casa, ser consumidor, ter
seus deveres e cumpri-los. Mais democracia, mas numa falsa democracia, continua
sendo falsa democracia; capitalismo mais humano continua sendo
capitalismo. Claro que ‘bom cidadão’ é
uma identidade ideal que não abarca uma pessoa, todos fogem, enlouquecem de
certa forma, mesmo sem notar.
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A não aceitação da vida como ela é imposta
é a crítica, assim, mesmo sem produzir obra, sem teorizar a sua existência, o
drogado é um crítico apenas por ser quem é. É radical, não aceita a percepção e
a afecção normatizadas, não aceita o funcionamento do próprio corpo, não aceita
o tempo cronológico, as leis, é contra a lógica do trabalho assalariado, mas
produz, sim, essas formas de vidas críticas. Pensar assim, no drogadinho como
crítico, permite que se fuja da transcendência, de colocar a teoria, o campo do
saber, em um local privilegiado. Viva a sabedoria das ruas!
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Método? Se faz o possível em determinado
momento a partir de certas condições para produzir, pensar e viver. Não há
método para viver. Cartografia não é um método. Percepção molecular não diz
respeito a métodos. Ver, ouvir, cheirar, tocar, lamber, perceber o mundo
molecularmente não é método, é questão existencial. Cartografia não é um método
a ser usado para se pensar determinados tipos de objetos. Não se tem a
cartografia em mãos e se usa ela quando em campo. A percepção molecular, por
ser um tipo de percepção, está sempre acionada, em alguns momentos fica mais
clara, expressiva. É a percepção livre dos freios da normatização. Muitos não a
notam, ou se assustam com ela. Como ela faz parte da vida, pensar sobre ela, é
pensar sobre a vida.
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Creio que os “meus” cacos de memória, que
misturam sonhos, alucinação, drogadição, vida em vigília, lembranças pela
metade ou borradas, com buracos negros sempre presentes, são como Cut Ups,
recortes prontos e daí…. os uso aqui nesse texto. Burroughs escreveu muitos
livros a partir de Cut Ups completamente louco de morfina. Ele mesmo dizia que
relia seus escritos e não tinha ideia de como aquilo havia sido escrito. Os Cut
Ups, como cacos de lembranças, não se referem a método, os cacos são
experiências de vida, que já estavam mais consistentes ou que foram aparecendo
na escrita, se atualizando. Assim, em muitas partes o livro toma a forma de um
mosaico, os cacos reunidos.
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Perceber valor na vida de um viciado,
abobado, desletrado como um punk, pode parecer um romantismo bobo, mas creio
que seja importante buscar valor no extremo da pobreza. O discurso corrente
diz: “o suicida se matou pela tristeza”, “o mendigo é totalmente infeliz pela
pobreza”, “o preso de forma alguma conseguiria sorrir”, “o viciado em crack tem
que se regenerar”. Qualquer um, mesmo o bom cidadão tem momentos de tristeza e
alegria. Um fumante de crack, um mendigo, um preso tem seus momentos de
alegria. Um viciado em crack é tratado como um rato, ou é preso ou morto, mas
naquele momento que junta um pouco de dinheiro, quando o tem em mãos, ele se
dirige para a boca, pega as pedras e se recolhe feliz em sua tenda imunda; daí
ele acende a pedra e se a quantidade for o suficiente para o seu vício, o
suficiente para que ele se chape, fique bem chapado, naquele momento ele é mais
feliz que um rei, ele é um rei. Claro que depois o barato passa e ele sente a
pior dor que pode ser sentida por alguém.
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A poesia, o que ela faz bem é trazer,
atualizar, mostrar, todos esses fluxos linguísticos, de fala, do que seja,
menores, perdidos por aí: na rua, em certos guetos, em certas estações,
cidades. Enlouquecer na língua, enlouquecer a língua, fazer ela delirar, foder
a língua, a currar como ela merece. O acadêmico é aquele que fala corretamente;
ele fala como poucos já que os da sua casta falam assim. Contra essa prisão,
contra a seriedade dos caretas, a fala do louco, daquele que não domina a fala,
do ignorante que se quer assim e que se foda, não mais que isso. E o coração do
poeta está com estes, os párias.
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Este livro é uma experimentação, nele testo
estilos de escrita: crônica, ensaio, caderno de notas, cadernos de notas
refinado, texto acadêmico, literatura. A crônica atravessa todos os capítulos,
como também insights, sacações que podem ser elementos da crônica. Junto a tudo
isso está a cartografia, que não é um método, e se isso transparece em certos
momentos se deve as contradições internas do trabalho.
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O grande tema do livro, portanto, é a
cidade, pensada como local do controle, o qual é afrontado pelas
experimentações dentro dela, contra e fora de controle. O que move o livro é a
tentativa de experimentação de uma percepção molecular, essencial para pensar a
potência das formas de resistência dentro da cidade.
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Acentuando o caráter experimental do
trabalho, após o fim do livro, publico no mesmo volume um outro livro. Sim, é
outro livro, tem um tamanho mínimo de um livro de literatura, e é publicado
conjuntamente, pelos seguintes motivos: 1. Foi escrito ao mesmo tempo que o
primeiro livro. 2. Ele é continuação das linhas de fuga traçadas. 3. Ele possui
uma escrita absurda, é totalmente experimental, não sei se foi feito para ser
lido [..........] Esse outro livro é a dessubjetivação em estado mais bruto e
ele será apresentado com mais detalhes em uma abertura em seu espaço nesse
volume.
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