sexta-feira, 12 de maio de 2017

tomações


No fim da tarde, quando começa a escurecer, a vista fica mais bonita, com as luzes dos prédios. Agora, pessoas se reúnem em grupos pequenos no Largo; alguns fumam maconha. Depois da hora de pico os carros passam com mais velocidade. Como estou sem internet, a vista é minha tela. Fiquei dez anos no ap. antigo. Fiz as contas e o que gastei de aluguel – nesses dez anos – daria para comprá-lo. O mais curioso é que eu estava para locar um outro apartamento, que coincidentemente era da mesma proprietária desse ap. antigo. Talvez ela tenha comprado o imóvel com o meu dinheiro; e eu continuaria sendo sugado por ela. Aprendi na prática como o inquilino está à mercê do proprietário. Porém, há uma liberdade em alugar, não ter um imóvel, ter pouco, não ter laços fortes, isso para mim é importante. Ter pouco a perder, essa é a alegria do vagabundo. Ele tem seu corpo, sua linguagem, seu carrinho, seus desejos. [.................] A Cidade Baixa é um dos bairros de Porto Alegre com maior número de moradores de rua. Aqui na frente, numa praça junto ao Largo, se reúnem muitos deles. No bairro, uma mulher que pede esmolas volta e meia desaparece e reaparece. Em 15 anos vi ela grávida inúmeras vezes. Na República, uma das ruas mais bonitas da Cidade Baixa, há um outro morador de rua, com idade avançada, que está ali faz uns seis anos. Também o bairro tem muitos guardadores de carros, jovens, que possivelmente não têm moradia. Além disso, junto a um conjunto habitacional, faz alguns anos, um grupo grande passa o dia junto a colchões e colchas velhas. O bairro também conta com um albergue popular e seu entorno (do albergue) reúne essas pessoas que possuem apenas o que podem carregar com as mãos. E mais, o cartão postal da cidade, nos últimos tempos, aglomera tendas em toda sua extensão, se tornou espaço dos que não têm casa – é o Viaduto da Borges, que fica a três quadras daqui e o veria se não existissem alguns prédios que tapam a vista. A prefeitura volta e meia desaloja o pessoal, mas eles sempre voltam. Interessante é o fato de que o Viaduto já foi palco de batalha entre manifestantes e polícia, principalmente em 2013. [.......................]
Em 2013 jovens saíram do Centro e vieram até o Largo. Ali, lutaram contra a polícia, depredaram carros e edifícios. Nessa época, eu e um amigo, numa segunda feira, estávamos no local, em um encontro de um coletivo libertário. Meu amigo queria tomar uma cerveja; eu disse: vamos, mas depois voltamos. Atravessamos a Perimetral e vimos junto a uma praça um bloco policial, todos policiais armados e em posição de ataque. Passamos por eles. Os policiais, por fim, não agiram contra o coletivo, mas como a cidade estava “muito quente” na época, eles faziam o controle. As brechas na cidade não são poucas. O controle não é absoluto na cidade pela própria estrutura dela. O poder quer que as linhas de fuga não existam, mas existem. [........................] O nojo dos cidadãos para com os moradores de rua mostra quem eles – os cidadãos – são; odeiam qualquer coisa que macule a cidade que deve ser higienizada, modelada – é, eles desejam o controle.  Os moradores de rua, são os sujeitos da vida nua, despida de bens, eles praticamente não consomem, não tem moradia, são feios e sujos, vivem do lixo. Mas são uma das diversidades do tecido urbano. Não é uma pobreza voluntária e esse é o problema. Porém, a riqueza deles é algo que deve ser mapeado.    
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Essa minha relação afetiva com a cidade é muito antiga. Quando comecei a usar maconha – diariamente, três, quatro, cinco, mais baseados, isso com treze anos – gostava de fumar principalmente, antes da aula, de manhã, e enfrentar a rua; era o primeiro “beque” do dia e assim fazia efeito. Eu gostava de contemplar, sentir o início do dia chapado. Eu pegava ônibus, ficava na janela e olhava para a rua como se estivesse vendo um filme. Curtia, também, quando ia fumar com meus amigos mais velhos de carro. Era a mesma sensação, o para-brisas como tela. Quando estava sentado do lado do motorista, ficava olhando o espelho retrovisor que parecia uma pequena televisão. [..........................] Minha primeira crônica foi sobre o trecho de uma estrada que vai de Porto Alegre até uma cidade vizinha; minha primeira reportagem foi sobre a noite na cidade. Na monografia trabalhei com a vagabundagem urbana. Parte da tese dediquei à cidade de Barcelona. [............] A questão afetiva sempre moveu meus trabalhos, por isso, não me encaixo na identidade ideal de pesquisador, de cientista. O que move meu trabalho, sempre, é o afeto. Considero que é impossível pensar o mundo, a sociedade em que vivemos, sem sentir dor, medo, frustração e, até mesmo, um sentimento perigoso como o de insuportabilidade.  Mas, como as linhas de fuga estão sempre agindo, como a multidão produz, resiste, deseja, pensar nisso permite afetos nobres, como paixão, alegria. E como ou por qual motivo abstrair isso – o afeto – se está sempre presente? Falar de forma aberta, franca, demonstrar os sentimentos, não se perder em uma assepsia própria a ciência é uma falha, um erro? Sim, é um erro, mas eu gosto de errar. Quando falo “eu” (e isso é frequente aqui) afirmo minha posição afetiva, tento fugir da fala impessoal acadêmica; mas obviamente ‘eu’ não diz muito. Dizer “EU” é rotular, criar uma fotografia que nega os fluxos, as conexões, os agenciamentos. O livro está cheio de memórias pessoais que dizem respeito a esse “eu”, mas foi a forma que encontrei para pensar certos coletivos e os processos que passam as cidades. Como já disse, há contradições no meu trabalho, claro, pois é uma experimentação.  
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[....................] Como havia pessoas no pátio dessa ocupação aqui perto – que eu estava rondando faz um tempo – eu abordei o pessoal e disse: olha, eu pesquiso okupas, eu passei aqui na frente inúmeras vezes, vocês devem ter me notado, estava com vergonha de me aproximar de vocês, já que eu sei que o pessoal antissistema não gosta de pesquisadores, mas gostaria de falar com um de vocês, fazer perguntas sobre o funcionamento do espaço, como ele está sendo gerido [..............] O coletivo, no momento, era formado por garotas, já tinha notado que a maior parte dos membros eram mulheres. As garotas me interrogaram e muito, disseram que eu deveria saber que eles não são abertos ao diálogo, pelo menos com gente como eu, um pesquisador. Notei que elas estavam incomodadas com a situação. Quando vi que não haveria realmente diálogo eu disse: peço desculpas por ter vindo aqui, não vou mais passar na frente do espaço, admiro vocês, que vocês fiquem bem e que dê tudo certo.
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[...................] As pessoas pensam sempre no futuro, desejam um bom mundo, mas que sempre está além e, por isso, não dão importância para o que está acontecendo, agora no presente. E o que é o presente? Tempos diversos sempre estão interagindo. O tempo do drogado não é o tempo do bom cidadão. O tempo em uma okupa funciona de forma diferente do tempo em uma empresa ou escola. Qual presente? [.....................] A revolução Contra Cultural aconteceu faz quanto tempo? E não foi apenas cultural, uma revolução de costumes – não há como separar cultura de política –, foi uma luta contra o poder reticular, as disciplinas, os dispositivos de poder atualizados: no chão da fábrica, na universidade, nas relações parentais, na família como destino obrigatório, no Estado de Bem Estar que estancava as lutas mais radicais, no patriarcado, nos gêneros e na sexualidade, no racismo, na guerra as drogas.................. [........................]  As lutas moleculares de 68 atingiram as malhas do poder e o mundo não foi mais o mesmo; direitos foram conquistados; porém o poder, tomou outras formas, mais capilares. A empresa modulada, desterritorializada, impediu a luta dos trabalhadores. As minorias se tornaram consumidores e produtores. O poder transcendente, mais localizado, os termos dominantes que se sobrepunham a termos menores, ficaram mais fluidos, imanentes. A sociedade de controle abarcou todo o social. Se na sociedade disciplinar ainda existiam buracos, brechas de subversão, na sociedade de controle o poder começou a aparecer em todo o lugar. Os cidadãos, todos, viraram policiais, de si e dos outros. Formas novas de opressão surgiram. [.............................] Uma das formas de opressão é exatamente a negação de que estamos em outro paradigma, faz muito tempo. Qual presente? Ainda usam conceitos de outros paradigmas para pensar o presente. As dicotomias correm soltas, como se o mundo fosse uma coisa simples, uma luta de opostos que leva para um bom futuro. As dicotomias ainda correm soltas: homem x mulher, inteligência x idiotia, loucura x sanidade, riqueza x pobreza, trabalho x vagabundagem, norte x sul, ciência x empiria, público x privado, frieza científica x paixão artística, indivíduo x massa, eu x o outro, direita x esquerda. Isso é o óbvio, o que todos veem, muitos só enxergam isso. Só que eles não entenderam as lutas de 68 e desconhecem as lutas em rede que começaram com os Zapatistas. Eles desconsideram as análises de poder de Foucault (o velho, mas sempre presente Foucault), não entendem o trabalho de Deleuze, nunca leram Negri. E não por falta de inteligência; eles não suportam a insegurança que o trabalho do pensamento da diferença produz, já que este mostra um mundo caótico, deliciosamente caótico. Usam bases intelectuais de um paradigma para pensar outro. Ou seja, se loucura é estar fora da realidade, isso é loucura. Qual presente? [.....................................................] O idiota não é alguém com menos saber, não há problema em ter menos saber. Idiotia é amar a segurança ao ponto de não querer enxergar o caos, e o caos é o mundo. O pensador privado em sua sala, aquele que pensa, se vê como um indivíduo, que gosta de ser visto como um sujeito pensante, dono de suas ideias, autor, ou seja, o gênio moderno, se ainda existe, não consegue ler Deleuze, já que ama sua segurança, sua vidinha pequeno burguesa. Ele, o que faz é apenas dar certa consistência para o que pensa, pensamento que na verdade é só reflexo do senso comum. Se acha especial por conseguir falar e escrever o que pensa, mas como disse, ele pensa como todos, é tão moralista, conservador, idiota como todos; só é um idiota com um capital. Como pouquíssimos conseguem fazer isso, ele se acha diferente dos que não escrevem e falam de forma articulada. Ele gosta de pensar e falar muito e sempre, ou seja, extensivamente, não intensivamente, por isso, não há diferenças de natureza entre um idiota que não escreve e um idiota que escreve, só diferenças de grau. [..........] O que pouco veem e o que o “intelectual” não vê é o caos. Para ele, caos é uma expressão pejorativa, idiotia é sua forma de se impor em relação aos outros, loucura é o que ele detesta já que é um moderno, racional. Mas idiotia é o bom senso; caos é a beleza do mundo, que deve ser experimentada com certa cautela; loucura, esquizofrenia são marcas do pós-moderno, são possibilidades de alegria ou expressões do poder. [.................................]. Os movimentos em rede não precisam ler Negri já que sabem muito bem o que Negri pensa. Deleuze e Negri já fizeram o trabalho de leitura e contextualização de Marx, Espinoza, Foucault, Bergson e tantos outros. Apenas o “gênio” moderno – que vive faz décadas na pós-modernidade e não sabe – que tentaria se colocar ao lado de Negri e fazer sua leitura de Marx para pensar o paradigma atual. [..............] Contra a segurança, dura, linha dura da mentalidade velha e cansada, contra isso temos a leveza e a liberdade da criação de conceitos novos. “O velho tem que morrer” é uma palavra de ordem dos setenta, mas faz tempo que morreu; e muitos tentam dar vida ao cadáver. [...........].  
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Em Porto Alegre, nos últimos tempos, a mobilidade ficou mais fácil, a partir de muitas ciclovias criadas. Está na moda se locomover de skate, bike e roller. E me parece que isso faz parte da moda hipster. O hipster difere dos que estão na moda, é alternativo; porém ser hipster é uma moda, mesmo que dita alternativa. Para ser um tem que se estar dentro de certos padrões. O hipster é ligado em arte e cultura de massa cult; tem interesse em gastronomia. Visualmente, a partir de suas roupas, se percebe um sem dificuldades: barbas longas, cabelos alinhados, camisas de manga curta com colarinho apertado e bermudas (ambas com adornos psicodélicos), tênis social, óculos enormes. Durante mais de um ano, ao menos em Porto Alegre, foi usado por homens um tipo peculiar de corte de cabelo: Razor, uma imitação do corte dos samurais. Todos os hipsters o usavam. Da mesma forma que surgiu, o cabelo razor despareceu, de uma hora para outra. A Cidade Baixa é o bairro hipster de Porto Alegre. Aqui há os cafés com bebidas não alcoólicas especiais, os restaurantes-bares com comidas, feitas de forma criativa, e cervejas artesanais. Além disso, o bairro tem inúmeras casas noturnas com som chamado alternativo. O bom gosto gastronômico aliado ao bom gosto musical. Nos últimos meses em Porto Alegre e, claro, na Cidade Baixa, começaram a aparecer centros de moda hipsters. Neles se faz o cabelo, a barba, tatuagens, se toma cerveja e se come. É uma moda tão pegajosa que é difícil não ter certos atributos da identidade hipster, tanto que há hipsters que odeiam ser chamados de hipsters.   Quanto a questão da mobilidade verde, aliada de um certo repúdio a grandes empresas, marcas dos hipsters, isso diz respeito a um tipo de anti-capitalismo, a uma questão ecológica, portanto, desvios de certas normas dominantes. Mas o Hipster se desvia da norma para criar uma nova norma. Ele é o bom cidadão das redes sociais, ele vai às ruas, luta por seus direitos, milita como pode, é o sujeito controlado, mas que vive como se tivesse um grande grau liberdade.  Ele se sente feliz por lutar por um bom mundo, acredita que está construindo um bom mundo possível.  Se sente feliz por ser quem é: politizado, com uma moral elevada, além de ser alguém diferenciado. O barulho que faz é pouco, não abala em nada os códigos dominantes; esse barulho não passa de uma resistência incluída, ou seja, não é resistência. Se o cidadão está feliz, não incomoda. E se ele sente feliz por ter um sentido em sua vida, ele pode dizer: eu vivi, eu lutei, eu busquei um bom mundo, sou uma pessoa especial. 
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