terça-feira, 5 de março de 2019


      

CRÔNICAS FORA DE CONTROLE




                                                                                      
  
Introdução pra ser lida por gente do mundo acadêmico

 O texto todo é uma experimentação sem fórmulas, não é como um artigo ou tese, nos quais os modelos estão prontos. Por isso, a linguagem da crônica, que na verdade é ensaio, pois há algo que se aproxima de um método que acompanha todo o texto: pensar o discurso dominante, as significações clichês, e a partir daí fazer um pensamento da diferença. Pensar de outra forma, e pensar de forma diferente é algo aberrante, é uma monstruosidade em relação ao senso comum. Por isso, a linguagem suja, crua, que tenta se aproximar da linguagem da rua. As piadas de humor negro. A falta total de seriedade. O fazer errado o tempo todo, considerando como certo aquilo que “as grandes mentes escrevem”. Também quase todos os artigos – o livro é composto de quase uma centena de crônicas – têm um mesmo tema, mas são autônomos. Eles podem ser lidos de qualquer forma, a partir de qualquer ponto; apenas esta introdução e a introdução seguinte que recomendo que sejam lidas inicialmente. Nesta parte explico a consistência do livro, mas ela pode ser pulada, já que se aproxima da linguagem acadêmica. Ou seja, faça o que achar melhor.
Muitas crônicas são faladas na primeira pessoa. A partir daí, pode-se pensar que é um livro autobiográfico. Mas não, não são historinhas pessoais que estão em jogo. Trago experiências próprias pra pensar a vida. Um pouco da minha vida, do que vi, do que ouvi, um pouco do que fiz, não importa, aliás, o livro é pra ser lido como se fosse ficção. Aqui não há pudores. Então tanto faz. Atiro para todos os lados, sem me importar com o alvo.
O texto é esse irmão mais novo da minha vida acadêmica, melhor, um filho pródigo, rebelde, marginal. Gilles Deleuze dizia que o livro mais marginal que havia escrito, o Mil Platôs, era o mais querido. Um livro quase impossível de ser lido, digerido por poucos. Esse é o livro que mais me atrai, principalmente, pela parceria de Deleuze com o pensador vagabundo, Félix Guattari. Aliás, este que permitiu a Deleuze produzir um pensamento realmente à margem. Assim parto deles, principalmente de seu ponto de vista ético de pensar o minoritário como fuga do dominante. Este trabalho é uma experimentação, trabalho em progresso, feito com uma liberdade que a academia não dá. 
Produzi o livro caindo fora da produção dominante acadêmica. Aqui faço o que não se faz. Não que faça errado, acho que vou além; além do enquadramento disciplinar. Não só além do enquadramento, um texto de apologia ao fora do controle, mais, um texto fora de controle.  O que move o texto é uma questão de paixão, não de protocolo, anti-institucional.  Escrevi o que segue em pouco tempo, por isso o estilo. Tentei ao máximo não expor diretamente conceitos complicados, pra deixar o texto leve, aberto.
Penso um conceito, o experimento, pra traçar essa fuga, o conceito de devir-adolescente. O conceito de devir de Deleuze e Guattari demorei quase uma década pra entender; não quero aqui resenhar a obra deles pra explicar o conceito; mas tentarei elucidar, aos poucos, o que eles chamam de devir. Faço um gesto de apropriação do conceito, proposta sugerida por Deleuze: roubo não imitação. E do meu roubo... Bem, utilizo o conceito da forma que preciso. E ele permite isso. Seja pela sua complexidade, na questão da leitura, seja pela necessidade de sua adaptação pra pensar a contemporaneidade, o que certos autores fazem, como também tento.
Chamo, então, o trabalho de Crônicas Fora de Controle. Fora das classificações, fuga em vários âmbitos. Tenho como um dos temas principais a adolescência, e pra não pensá-la como algo duro, utilizo esse pensamento Deleuziano da multiplicidade, do rizoma, da cartografia. Penso a adolescência como território de experimentações. Não como um território fechado e pequeno, como querem os psis, pais, professores, pedagogos, policiais, Estado, políticos, mídia, e mesmo certos cientistas, antropólogos, sociólogos. Mas como disse, não é apenas o tema; é uma experimentação da adolescência, de elementos de seu território, pensados como devir. Uma atitude, um estilo, uma ética que diz respeito à adolescência. Ao fora de controle adolescente.
Um devir-adolescente da escrita. Devir que arrasta outros que se referem à pobreza e à marginalidade. Marginalidade como multiplicidade, que permite devires drogado, esquizo, puta, ladrão, etc. Também marginal em relação ao minha tese de doutorado, pois produzo o livro pra não ser apropriado pela academia. Já a pobreza, esta é pensada como potência, possibilidade de fuga do padrão dominante da classe média. E essas crônicas têm algo de pobreza, é uma escrita pobre, diferente da riqueza das grandes obras e da abundância dos textos acadêmicos.  
Adolescência então, pra mim, o que mais importa, é sua produção de espaço de experimentação, principalmente, da marginalidade e também da pobreza; essa experimentação se refere ao devir: devir-pobreza, devir-marginalidade, experimentação da pobreza, experimentação da marginalidade. Tenho como foco, em parte, os jovens de classe média. Isso, pois são aqueles que têm mais chances de terem uma vida com regalias. Pergunto-me: porque alguns destes, talvez uma minoria, têm uma relação especial (devir) com a pobreza e a marginalidade? 
A questão da marginalidade, eu considero mais importante do que a tipificação de marginais. Nessa experimentação adolescente há algo de prostituta, drogado, louco, ladrão. Até mesmo como estado tudo isso se embaralha. O estado diz respeito às formas fixas, o devir faz conjugação entre elementos diferenciados. Estado se diferencia de natureza do devir. O drogado experimenta a loucura pelo uso das drogas, se prostitui e rouba para manter o vício. Um drogado como estado e passagens por outros tipos de marginalidades em devir. A prostituta como estado se droga em devir; as drogas podem permitir a ela um campo de experimentações perceptivas. Ela pode, conjuntamente, roubar e não ser uma ladra profissional.  Quando preso o marginal é enquadrado em todos os tipos de marginalidade. O poder não reconhece o devir. Classifica sempre.
Já o adolescente, o estado é a adolescência, o resto é devir. Então, penso a marginalidade desses como algo em devir, ou seja, não penso nos profissionais do roubo, da prostituição, etc. No caso, alguém que comete roubos por diversão, ou pra manter o uso de drogas; que se droga, mas não é viciado; que faz michê quando precisa; que trafica pra ter drogas em mãos. Não penso esse devir como possibilidade, numa apologia, mas como algo concreto que acontece, e a partir daí penso sua potencialidade. Junto está a pobreza, que faz parte da marginalidade (roubar para ter dinheiro), mas é também um território existencial: andar com pessoas de classe baixa, o traficante, ou certos amigos. Acordar bêbado na rua; dormir na rua; frequentar o morro.
Claro que isso talvez se refira a uma parcela pequena.  Os adolescentes são mais que afetados pelo poder sobre a vida. Afirmam identidades. Parecem uma lata de lixo, na qual são postos todos os suvenires de mal gosto da indústria cultural, e eles aceitam isso. Só que estão mais aptos que os adultos a experimentação.
Saiu uma matéria, no jornal gaúcho Zero Hora, sobre uma rua da cidade de Porto Alegre, a Lima e Silva. No texto é dito que a rua estaria sendo invadida, principalmente aos domingos, por uma horda de jovens que a tornam um “antro” de sexo, drogas, e outras coisas: sexo em banheiros de estabelecimentos comerciais, uso de drogas nas calçadas, agressão aos moradores.
O jornal é conservador, representa a classe média e a família. Defende na matéria o ambiente familiar do bairro. Aliás, o bairro cada vez mais se torna menos boêmio a partir de políticas públicas encabeçadas por mídias do tipo. Há toda uma luta por movimentos sociais de tentativa de manter o bairro como espaço boêmio. A luta parece que está perdida. Interessante que os bares mais populares são os focos principais – os bares que os jovens frequentam, pois mesmo se forem da classe média, eles têm menos dinheiro que os adultos. Os bares mais requintados pro público mais velho são os menos afetados.
 Sei disso, frequento o bairro faz anos. Por isso, que em muitas crônicas falo da Cidade Baixa e dos bairros vizinhos, como o Bonfim. Como adolescente experimentei situações que são demonizadas pelo jornal, por isso, posso falar de forma mais próxima do tema da marginalidade.  Aí entra outra questão de método que é apagada no discurso acadêmico dominante, os traços da vida do pesquisador.
Deleuze diz: nada de métodos apenas uma longa preparação. Ele não explica o que seria a preparação, mas para mim isso é viver, de preferência de forma singular, o que fazem certos jovens. Penso a vida, mesmo a cotidiana, como espaço de conflito entre poder e resistência. Portanto, essa vida pode ser matéria prima de pesquisa. Mesmo trancado em casa ou em pensamentos, o conflito aparece, só necessita-se do método pra mapeá-lo.
Então, trago experiência pessoais, produzo um tipo de território, que diz respeito a certas pessoas, pra pensar a adolescência como potência.  O poder desde baixo, não o poder acima e superior. Como potência não como vergonha ou passagem que deve ficar no passado. Como experimentação que pode ser utilizada pelo social.
Jovens entre 12 e 17 anos, pode ser entre 10 e 25, não tem porque enquadrar a idade. Só que até os 18 anos eles não têm deveres legais. Podem mais. Os da classe média sempre têm os pais que podem subornar a polícia. Os brancos tem uma liberdade maior em relação aos negros. Policias são mais condescendentes com os brancos. Dois jovens classe média fumando maconha em pleno centro de noite. A polícia os aborda. Apenas os manda saírem do local em que estavam. Um dos jovens, feliz com a abordagem, e com sua petulância de criança da classe “superior” oferece maconha para os PMs. Se fossem dois negros, o que aconteceria? Sabemos e bem, e isso não é clichê, mas a realidade.
O filho do médico acima de 18 que foi preso por porte de cocaína, só que muito bem tratado pelos policiais. Acho que o prenderam como forma de dar um aviso: “filho da classe média com todo um futuro pela frente, você está na faculdade de medicina, está na hora de se endireitar”. O pai chega, paga uma grana para o delegado e o filho está liberado. E eles, os jovens, usam essa permissão que o Estado dá. Só que tudo isso que eles fazem sofre uma luta muito dura com as figuras dos pais, psis, mídias. “Cresça, aprenda a crescer, mesmo que lentamente”.      
A questão mais importante do trabalho no que se refere à juventude: fazê-los entender que sua experimentação não deve se tornar culpa. O controle adulto faz isso: “sinta-se culpado, seu pai faz tudo por você e você apenas faz merda”. Fazê-los entender que experimentam algo especial. A ilegalidade como exterioridade da legalidade; a droga como exterioridade da sanidade; o sexo livre como exterioridade da heteronormatividade; a loucura como exterioridade até da neurose da culpa. Primeiro então, entendimento de que essa vida tem valor. Mesmo que o lado negativo, afirmado pelo controle adulto, não deixe de ser verdadeiro: a linha de fuga que pode levar a morte.  
Segunda questão: produzir, criar valor a partir da experimentação. É o que se passa com esse texto, que é uma experimentação da adolescência, como já disse. Como criar valor? Uma relação diferente com a vida. Uma relação com a arte, já que por essa experimentação passou a arte. Vemos isso nas biografias, ou mesmo na obra de escritores que não eram adolescentes. Então, marginalidade, pobreza e agora arte. Produzir arte a partir da experimentação. Ou mesmo filosofia, pois a filosofia da diferença experimenta os mesmos devires. Seja marginal seja herói. Não o que morre no fim, mas aquele que produz a partir da marginalidade.
 Importante também, pois depois crescem e podem ter uma relação diferente com a marginalidade, não paternalista, mas de parceria. O filho diz que é gay e o pai diz: tudo bem. As minorias vão pra rua e ele velho diz: meu coração está com vocês. Mas o inverso pode acontecer, pode virar um reacionário de direita. Vimos isso nos antigos guerrilheiros aqui no Brasil. Eles traçaram a linha de fuga. Foram para ilegalidade. Foram torturados, quase mortos. Hoje trocaram de time. Linha de fuga mortífera, morte da ética.
A riqueza do território é a fuga dos códigos dominantes. O que podem os jovens? Muito pouco, apenas viver, não ser. Importa o que motiva os jovens: a fuga das disciplinas, a busca de autonomia, construir um mundo, resistir; essa é a única forma que encontraram para lutar contra aqueles que lutam contra eles, seus pais e a mídia, os seus verdadeiros inimigos, pelo menos no que concerne a experimentação.
As drogas e o sexo são os seus aliados. Estão sempre ali, prontos para os acolher. Eles não têm limites, essa é a real, eles estão cheios dos limites, dessa vida de todo mundo que constroem para eles.  Passaram mais de uma década trancados em casa, vivendo como refugiados. E ainda dizem que ser criança é ser feliz; mas não há nada mais triste que ser um refugiado, um prisioneiro político, o que as crianças são, como disse o cineasta Jean-Luc Godard. 
Quando o corpo fica mais forte e a cabeça começa a funcionar, o jovem diz: quero minha vida, uma vida singular, e faz ela, uma vida não muito rica: um visual, uma relação com a sexualidade mais livre, sem complicações, novas percepções permitidas pela droga, uma semiótica gestual andrógina, um discurso não legitimado. Deleuze que repetia: fugir, mas na fuga procurar uma arma. Os jovens traçam sua linha de fuga, e essas são suas armas. Mas por qual razão isso é tão diferente da semiótica, do regime de signos, dos adultos? O mundinho dos jovens marca o limite: nós não queremos ser como vocês. E a vidinha tradicional da família e o discurso da mídia não aceitam isso. Eles dizem: sejam como nós, ou melhor, sejam quem nós queremos que vocês sejam. Sejam nossos prisioneiros. Não cresçam, fiquem em casa, pulem a adolescência.
O cidadão perfeito, o bom filho, seria aquele que sai da infância direto pro casamento, pra vida dos pais. Parece que estou falando do conflito clichê entre gerações, mas a questão é geográfica, de território: um careta, o território legitimado, de papai e mamãe; o dos jovens, parte de desterritorialização do território careta que é re-territorializada num mundinho mais próximo do devir.
Mais importante, quando perguntam que tipo de vida querem os filhos europeus – os que estão indignados com a crise do continente e criam movimentos antissistema – se o Estado pode proporcionar o que querem. Primeiro, muitos querem derrubar o Estado; segundo, eles são jovens, experimentam a pobreza e a marginalidade que trato, só que trazem outros elementos. Estes tornam a experimentação em projeto político. Um outro tipo de experimentação, no entanto, que faz parte do mesmo plano dos jovens que são politicamente apáticos. Falo destes movimentos em algumas crônicas, pois são movimentos de juventude, e também, pois é o tema de minha tese de doutorado. Nestes a pobreza como potência é sua marca vista nas formas de expressão dos movimentos, principalmente, na ocupação de praças, nas quais tudo funciona por parceria, a parceria dos pobres.   
Quanto ao jovem apático também há um pouco de experimentação antissistema, em certas subculturas: deixar o cabelo crescer, usar roupas rasgadas, não tomar banho. O pai odeia o visual. São como mendigos visualmente. Não consomem roupas de marca. Consomem muita coisa, mas dentro do possível, são antissistema. 
Importante meu mapeamento, pois não há movimentos sociais pró-adolescência. O que existe é de representação, sempre do poder adulto. Também os jovens são peças-chave nos movimentos sociais, mas as demandas não se referem à pobreza da vida impostas eles, pobreza agora como impotência. Não há demandas próprias dos jovens do tipo: “nos deixem em paz pra curtir a vida”. “Por uma sociedade sem pais”, “pelo fim do colégio”.  Caso mais extremo é o das crianças, estes não podem nem ir às ruas, como vão lutar contra qualquer coisa? Não trato da infância, a coisa é tão extrema que parece não haver resistência.
Pensar o poder, também é algo diferente, o que as significações dominantes não fazem. Os jovens como foco de consumo. Um dos mais importantes. Os jovens como produto. A maioria consome e bem, e mesmo certos tipos de subculturas. As mesmas que permitem o devir são também produtos, que vão desde moda, mídias até questões subjetivas e existenciais: o que se vende como estilo de vida.
Outra coisa é a própria hierarquização entre os jovens e a recuperação de certos estilos de vida. Exemplo: a maconha vai deixando de ser algo marginal. O Brasil é um dos poucos países de porte que mantém uma política conservadora. O fluxo das lutas pela maconha é recuperado pelo poder. Deixa de ser diferença. Entre os jovens é mais que tolerada, o que pode criar um tipo de hierarquia entre eles: o cara legal que fuma maconha, o cara sujeira que usa outras drogas mais pesadas. O locão e o cara cool. Entre os gays, mesma coisa: o homossexual hetero recuperado e o travesti, o monstro.
  Importante é que não é qualquer diferença, qualquer coisa. O mais importante é que o limite da vida cotidiana, da casa pequeno-burguesa pode ser rompido. O poder disciplinar é afrontado pela juventude. Eles mostram que há possibilidade de outra vida: novas subjetividades a partir da droga; existências diferenciais que passam pela pobreza e parceria; sexualidades não endurecidas, etc. Só que falo em devir e não em estado. Se drogar não é a questão. O devir-drogado é permitido também pela filosofia. O devir-pobreza da juventude se refere a uma vida sem excessos, luxo. Ou seja, a pobreza e a droga não precisam ser ponto de partida pra se construir um devir-pobre ou drogado.
Questões da parceria: fala-se sempre da camaradagem dos brasileiros. O músico brasileiro, Seu Jorge: “eu tava na Europa, e lá ninguém ajuda ninguém. Aqui no Brasil se falta um gás, o vizinho empresta”. Pelo que recebo de informações, a parceria a partir da pobreza está sendo experimentada na Europa. As acampadas funcionam assim: empréstimo da barraca, tudo que se traz é coletivo, não há donos; a comida, se ganha. As doações. Alguém pega sua grana para fazer panfletos, depois quem tem dinheiro ajuda.
As mídias já passaram por isso. As mídias táticas baseadas no faça você mesmo dos punks, a produção a partir de recursos mínimos e muita cooperação. Apropriação das mídias, cada vez mais possível pra todo o social. No paradigma atual da comunicação somos todos ladrões, pobres e parceiros, todos experimentamos devires ladrão e pobre, todos cooperamos.  Pra que comprar jornal, assistir TV, pra que pagar por música e filmes, livros, softwares? Tudo está na rede disponível de graça!
Exemplo das redes. Tenho muitos perfis que compartilham informações gratuitas, sem receber nada em troca, sobre os movimentos antissistema. Fazem isso por qual motivo? Querem mudar o mundo, e produção de saber é essencial, e gratuita. Outra característica das ocupações, suas assembleias e mídias: produção de saber aberta. Nas assembleias, marco dos movimentos, nas quais tudo que se decide é descentralizado e aberto, há uma mistura de troca de conhecimento com as questões organizacionais.  
Alguns movimentos lutam por reforma. Movimentos das mulheres, dos negros, da maconha, das vadias, dos gays. Querem ser incluídos. Outra linha é a do fim do sistema pedido pelos movimentos europeus. Não mais inclusão, mas excluir o próprio sistema. Não se excluir do sistema, nem se incluir: acabar com o sistema. O que está mais próximo é a inclusão. 
Finalizando a introdução, como dizia, as problemáticas da criança e da adolescência, tem uma representação do poder. Importante gente falando para eles: vejam bem, vocês experimentam isso facilmente. Isso é fácil para vocês. Isso é legal. É bom. Podem experimentar de outra forma, só que isso já está nas mãos de vocês. Quanto aos pobres: a única coisa que falta pra vocês é dinheiro. Nada mais falta. A classe média não tem dinheiro, ela tem a possibilidade de consumo. Os ricos têm concentração de riqueza, o que querem é poder.  
A potência é a riqueza da vida, e é sempre alegre, sem baixo astral de mortes, risco de vida. Só que mesmo quando a vida é arriscada pode se referir a um território especial.  O drogado que prefere morrer a parar de se drogar, é algo triste. Só que nos apresenta novos valores. A morte como algo temível deixa de ser; se mudam os valores, as significações dominantes. O enterro poderia ser uma grande festa, mas é essa coisa triste.  As significações dominantes são inimigas quando negam a vida. Quando são exercícios de poder; poder sobre a vida.

Introdução 2

Esses textinhos curtos, impressionistas, posso chamar de lixinhos. São restos, do que vai vir pela frente.  Surgiram de um monte de coisa. Surgiram da pesquisa, de contatos com gente de muitos locais diferentes, das minhas leituras, de coisas mal lidas, que tenho que ver e rever, de pedaços de memória, minhas, de outras pessoas. Aqui atiro pra todos os lados, com a chance certa de erro. Penso coisas que são do discurso dominante e busco linhas de fuga. Não só discurso, mas o que é dominante na vida. Busco isso no que está ao meu redor, sem rigorosidade. Ou o que estava ao meu redor. Escrevi, principalmente, como linha de fuga da dureza disciplinar, da caretice acadêmica, que é a vida que sigo e quero continuar seguindo. Mas experimento a linguagem, as ideias, num barato porra loca da pesquisa acadêmica, da minha pesquisa. Barato louco, drogado, cigano, puto, marginal, etc. Claro que o texto não se torna puto; como um livrinho se tornaria puto? Como injetar pó num livro, se ele não tem veias? Como fazer dele um ladrão? Provavelmente, se passar pra qualquer acadêmico que se diz sério demais pra falar algo simples, e muitas vezes carinhoso, como foda-se em sala de aula, em seus artigos, nos congressos... se eu passar esses textos pra esse cara, ele vai dizer que eu tô fora da casinha. Vai me mandar pra longe.  Parte por medo, da disciplina, da burocracia, parte por pudor, ou mesmo porque se acha acima disso. Só que mano, eu posso defender minha bundinha acadêmica dizendo que eu uso essa linguagem, tom, porque os autores que eu me apoio não medem palavras; posso dizer que tenho influências da geração romântica, então posso falar dessa forma: saca?  Tô usando a arte como potência. Posso dizer que tô fazendo literatura, o que já fiz e, aliás, foi sempre bem aceita, mesmo no ambiente acadêmico, porque na arte é permitido. Mas o que interessa é usar, experimentar pra depois cravar os dentes na pesquisa em sua forma tão branca, chata e careta; cravar os dentes nela... delícia, um pouco de pele, de sangue, de dor, prazer, uma curra por traz no pescoço; contagiar ela, com o vírus, numa transa vampiresca; deixar o vírus agir aos poucos, mesmo deixar ele adormecido, sem que ela saiba... até que! até que! Atéé-hummm!!!... ver o que acontece.    

Fuga

 Sempre legal dar um tempo.  Bom clichê da boa, dos manos, que sempre tão mais ligados porque tão sempre ligados. Sempre achava um saco pensar. Quem tem tempo pra pensar?  Legal agir. De repente, papo de velho: tempo pra pensar. Pensar no que passou enquanto tudo passa, e o que fica é algo que a gente dá uma puta importância. Mas acho que não só isso, legal juntar as forças; mais, experimentar a antropofagia: comer um monte de coisa, principalmente o que interessa. De repente, a escrita passa por aí, depois de comer de tudo um pouco, botar a bundinha na poltrona e escrever. Daí fica o que interessa. O que dá pra usar.  Não serviu? A gente parte pra outra.  Escrever sempre é bom, melhor que pensar; agir é legal, mesmo sabendo que depois isso vira lixo e só sobra menos de cinco por cento. Legal dar um tempo pra cabeça. Daí a gente começa a fazer arte porque, como diz o senso comum: “a saída tá na arte, ser artista na vida, em tudo, ser uma pessoa especial”. Só que já passei por essa, e acho que esse lance serve pra alguma coisa agora. A saída na arte como possibilidade de se fazer o que quiser, já pensei assim. Putz, escrever notícia como ia ser obrigado se seguisse a carreira de jornalista; me formei nisso... Não meu, quero escrever de qualquer forma. Não estou retornando, não é a questão; uma pequena fuga feita de pedaços, de um monte de coisa.  

Prazer e dor ou outra história  

Sempre pensei que a história do cara que cheira coca é de fugir da frita, do repé, da ruim, do fim do pó. O cara começa a cheirar e daí faz o possível pra não parar; fica uma semana acordado até acabar ou o corpo parar. Daí desmaia por três dias, mal na cama, fritando, suor lá em cima, ressaca moral e um monte de merda. Daí tem o lado bom, o pico do pó; o lado ruim é o pico da dor da falta do pó. Mas acho que seria legal sair das oposições, das piores, bom e mal, prazer e dor, e pensar que isso faz parte do território do pó. O território: o cara junta o máximo de grana de alguma forma, como está só na fissura, só muito a fim, junta uma grana de forma legal, ou se for ilegal, faz algo bem pensado. De repente, pega no morro um quarto de fumo e combina com o patrão que paga depois. O cara pega o fumo, faz as parangas e vende rápido pros amigos (em outro caso, se  o cara só fuma maconha, pega metade pra consumo próprio, com o resto faz a grana do patrão e sobra mais uma boa grana), paga o patrão e fica com uma grana boa pro brilho, tipo mais que dobra a mão. Mas trafiquinho é uma opção, ele pode passar algum lance, sempre tem algo pra vender em casa; pode fazer um roubo bem pensado, algum equipamento eletrônico dum vizinho. Pega o pó. Se dá sorte pega com alguém que recém recebeu e que tá vendendo ainda com bom preço. No caso, penso no cara que não passa o pó, ou se passar, vai ser pouco, penso mais no cara que acha que tráfico de pó é meio roubada. Pega o pó e faz a mão. O pó vai acabar uma hora. Ainda mais cheio de pó, vai acabar liberando pras minas, pros manos, de repente, vai acabar liberando até pros malas. É esse pó vai acabar e o lance é não deixar acabar. Como falava, pode ser a fuga da dor, mas pode não ser só isso, porque quanto mais cheirar, mais dor vai ter depois. O pó vai acabar. Antes das últimas carreiras já pensa: quero mais e não tenho grana. Vai ter que fazer grana de forma ilícita, mas de forma alguma quer ser preso, muito menos por coisa pesada. Possibilidades: vender fumo vai demorar muito. Pedir arrego pro patrão, certamente já fez isso e tá fugindo dele. Vender algo, trocar algo por mais pó, já foi tudo. Provavelmente, tá queimado para pedir empréstimo pros pais e nenhum dos amigos vai emprestar, porque tão juntando grana pra fazer a própria mão. Uma boa é saber o número dos cartões dos velhos, o que já deve saber. Roubo: de repente um som de carro. Algo na casa dos vizinhos. Atacar alguém na rua. Simular um michê com algum viado e roubar o cara. Fazer um michê. Daí pega mais pó. E a história continua. Quando acabar e sempre acaba, vai pra cama. Toma valium, fuma um e daí o resto é o pesadelo. Só que o que parece que é oposto é muito próximo, falta e barato da droga. Talvez sejam a mesma coisa. A cabeça que funciona sem parar nos dois casos. A fala contínua no uso; na falta, a cabeça continua, mas sem o outro pra exteriorizar.  As ações que fogem daquilo que se faria normalmente, no uso. Na falta, a impossibilidade da ação, os pensamentos delirantes, fora do normal. O corpo que sua, treme, mesma coisa nos dois casos. E como dizia um cheirador: uma semana cheirado só vale se a gente sofre na cama depois uns três dias. Faz parte.




Relação diferente com o corpo

Acho que nos últimos anos é cada vez mais fácil parar de fumar do que continuar fumando. A mídia, a área da saúde mais os psis, a indústria do corpo com as academias, as pessoas comuns, Estado com suas leis, e etc; tudo isso serve como uma rede de terapia em massa. Pra quem quer parar de fumar e entrar na onda, beleza. Pra quem quer resistir, esse se fode. Mas tudo muito bonito, em nome da saúde, da gorda saúde dominante.  O cara que fuma sabe que vai trocar alguns anos de vida por décadas daquilo que o cigarro permite. Já que uma doença grave, tipo câncer, avc, aparece só na velhice, ou se o cara tiver azar de já ter tendência pra certos tipos de doenças. Mas e daí, vale a pena uma morte talvez bem dolorosa, menos tempo de vida, pelo o que cigarro proporciona?   Acho que o prazer é o mesmo pra todos, talvez... Fumo principalmente como estimulante: café, cigarro e computador pra mim criam uma combinação perfeita. Me sinto bem sempre em saber que vou poder fumar o próximo cigarro. Isso que interessa, né? O próximo cigarro. Decidi continuar fumando após anos de pressão de todos os lados e dentro de mim. Uma época não conseguia nem ver certos programas de Tv, rádio ou ler certas matérias que tratavam do tema. Sentia o câncer virtual dentro de mim.  Em três momentos cheguei a agendar uma data pra parar. Mas uma hora decidi dizer: foda-se! Fico com o crivo. Se isso me der um final de vida mais doloroso, bem isso pode acontecer com todos. E provavelmente morfina e heroína vão continuar existindo, ou drogas mais pesadas vão existir, o que já dá uns anos de alívio. E no caso de avc, que deve ser um lance foda pelas sequelas, eutanásia caseira sempre é uma saída.  E na real, acho legal pôr a ideia de saúde em jogo, tirar a doença do espaço marginal, ou mais, colocar em termos de desejo: desejo da enfermidade, pôr a doença como possibilidade até de alegria, ou mesmo a morte; tirar as associações negativas. De repente, uma relação diferente com o corpo, uma relação existencial diferente, dessa existência que criam para todos. Interessante que o padre sempre diz: “mas você fuma, você não tem amor pela vida”. Só que viver uma vida construída por algo que vem de cima (poder), que funciona para acabar com a vida (apropriá-la), é amor pela vida? Claro que fumar, não é uma grande solução, mas a gente faz o que dá.  Ouvi de um cara da saúde num programa de TV:      “as pessoas não têm direito ao cigarro somente a saúde”, ele disse isso em rede nacional. Mas daí comecei a dar mais atenção nas pessoas ao meu redor quando estou fumando, e o que acontece é a reprodução (só que mais chata) do mesmo tipo de discurso fascista.  

Profundidade e experimentação

Tava em um encontro de um grupo ligado aos occupy em Porto Alegre. Era dia 11 do 11. Não sei exatamente porque esse dia foi escolhido, já que tem toda uma carga espiritual religiosa. Só que após um contato com pessoas ligadas às ocupações da cidade, percebi que muitos seguiam algumas formas de religiões, mesmo que não cristãs. Esse encontro era centrado em uma palestra sobre utopia. O mais importante, em um momento, um rapaz que se autodenominou de “o artista”, disse: “hoje é o dia em que todas as pessoas terão a chance de encontrar o verdadeiro amor”. Mais alguns dados: boa parte do pessoal de ocupação em Porto Alegre era de novos hippies. Os hippies foram a geração do paz e amor. Uma garota tinha tatuado “amor” em sua mão. Outra garota, em sua página do facebook, está sentada em uma foto de seu perfil, com palavras escritas: um amor. A foto esta há mais de um mês. Um senhor que tava passando pela Praça 15 (lembrem-se desse número), praça central em Porto Alegre, numa demonstração dos okupas no 15 de maio de 2012, olhou um cartaz da galera que dizia, “amor”, e falou: “é isso que falta pra sociedade”. No natal, como sempre, minha tia me enviou um cartão dizendo: “que você tenha uma vida cheia de amor”. Penso o amor partindo do senso comum: um sentimento “profundo” por alguma coisa, de preferência uma pessoa. Um sentimento “profundo”. No caso de jovens a gente sabe que dura pouco, não vira um casamento, isso acontece raramente. Também, o amor não é um lance só pra pessoas de gêneros diferentes; e não significa um lance monogâmico. Isso endurece mais com uma idade avançada. Mesmo que não endureça, em muitos casos. Só que continuam existindo casais de namorados jovens que dizem sentir esse sentimento profundo. Então, o amor é isso, algo muito profundo. Recebo uma mensagem de uma amiga que diz: “espero que você realize os seus sentimentos mais profundos”. No caso, ela não falava de amor. Em uma conversa com meu pai (note que tudo isso que estou relatando aconteceu comigo nos últimos três meses): ele disse que a vida de casado, com filhos é mais rica, já que tudo é muito mais profundo, as relações são mais íntimas. Pensar profundamente sobre si mesmo cria o autoconhecimento. Pesquisa é um pensamento profundo sobre determinada coisa: às vezes uma coisa neurótica em cima de um pequeno recorte do real. Os poetas românticos e seus sentimentos profundos. “Muito profundo isso que você disse”. “É uma pessoa profunda”. “Você foi profundo nisso.” Ensaiando: o que são os desejos profundos? Aquilo que está escondido e que deve ser conhecido? Ou aquilo que está escondido, e que não pode ser dito? Tarinhas se encaixam aí, tipo sexuais, que são da ordem do desvio? Só que profundo por isso, e deve ser escondido, ou realizado entre quatro paredes: como aceitar que papais e mamães trocam de papéis quando estão trancados no quarto. Então profundidade, aqui no caso, diz respeito a uma pessoa, suas questões, seus desvios, uma pesquisa, ou duas pessoas, o amor, etc. Uma pesquisa profunda sobre o mundo é impossível. O amor por inúmeras pessoas é menos profundo que a fidelidade. Mas “seja profundo” é uma boa palavra de ordem: na pesquisa, no amor, na terapia. No caso do amigo “artista”, todos querem um verdadeiro amor. E idealmente, isso que se busca: uma pessoa pra casar e amar por toda vida. A juventude é legal, em parte, pela experimentação.  Os jovens não se obrigam a ter relações profundas. Mesmo que a adolescência seja uma fase profunda, um lance chato. Acho que suas experiências legais são as de superfície.  A questão da festa, ambiente interessante. Um espaço de experimentação, não um lugar escuro onde se realizam coisas proibidas. Droga é permitida de certa forma, desde que não dê problema aos donos. Os banheiros que enchem de gente pra cheirar pó, três pessoas em um banheiro que só cabe uma. Também é proibido sexo em público, e pessoas de sexos diferentes podem ficar um bom tempo no banheiro, sem problemas. Casais do mesmo sexo se beijando. Ninguém se importa – claro que depende do lugar. Tudo isso dura pouco, deve durar apenas uma noite.   

Desejo de outra vida

Na madruga, perdi o sono, tava um tempo legal, decidi descer e fumar um crivo com o tio da portaria. Bah, e aí tio, e tal. O tio sempre legal e receptivo, meio passivo e tal. Daí a gente começou a falar sobre o tempo, minas, futebol. O tio com uns cinquenta anos, fumante dos bons, bom bebedor, veio do interior, da roça. Contou sobre as histórias de menino, que na época dele se ia na escola embaixo de chuva na lama, quando tinha escola. Veio pra cá, casou e entrou na firma de segurança. 12 horas de trampo dia, quatro de horas extra, só que obrigatórias, folga de um dia por semana. Eu de bunda branca e gorda de comida de mamãe: mas como assim tio, caralho, 12 horas direto!?. E o tio: sindicato é uma merda num faz nada. Outro tio, parceiro meu de crivo, foi despedido do prédio da quebrada, já que era muito extrovertido. Daí o tio dessa madruga, depois que o mano dele foi ferrado pela minha gente (os de bunda branca, meus vizinhos), depois disso ficou mais fechado com medo de perder o emprego. E nessa madruga, falou mal do cara que saiu, mas como forma de defender o emprego, mais, defender os caras que colocaram ele pra rua: os moradores, gente da classe média, uns vovôs com sua vovós, uns caras  mais velhos descasados, alguns casais jovens, umas gatinhas pós faculdade, e eu junto.  Daí fiquei puto, pensei, na real, nem pensei, tava puto, mas é, dei uma pensada, uma parada, uma tragada, uma respirada, e disse pro tio: pô, sempre tem essa de uns caras mandar na gente, pai manda em filho, professor em aluno, patrão em empregado. Os mais ricos nos mais pobres. E o tio abriu um sorriso, bem verdadeiro, de quem tava entendendo. Daí continuei, e o lance dos ricos e dos pobres, dos que mandam. O cara que manda no guardador de carro, no office boy, que trata os funcionários de serviço como alguém que deve “o respeitar”, esse cara também é mandado. Pelo chefe, pelos mais ricos; sempre tem uns mais ricos que os outros, sempre tem alguém acima. Daí falei pro tio, é uma merda, e os caras não fazem nada contra isso. E mais, não fazem porque se a coisa fica nessa, daí o cara pode continuar mandando; tá ligado? Daí o cara vende a alma pra ser mandado pra poder continuar mandando. Daí o tio falou: é uma merda mesmo; começou falar mal dos políticos, tentando achar a chave do problema, e talvez tentando desfocar do lance de patrão e empregado, pra não ficar ruim pra ele. Talvez pra poder dizer pro cara da mercearia lá do fim da zona sul: eu pago as minhas contas, olha só o Zé, o cara só bebe e bate na esposa, vagabundo de merda. Só que o tio entendeu um lance que demorei muito tempo pra entender. Gostou do que eu falei. E acho que ele sacou, ele tá puto com tudo isso. Mesmo que não esteja claro pra ele.  E como esse desejo de mudança que parece que tio tem e que todos que tão fodidos também têm; como isso pode ser motor de luta?

 Satanismo materialista

1. Tava na internet, no dia primeiro de maio – 1 do 5. Tava fazendo pesquisa na rede porque é o dia que marca as lutas contra o sistema sempre. Daí me liguei que a parte boa da minha pesquisa de mestrado era sobre um acontecimento no dia 15 de 2009. Acontecimento importante, um dos últimos mais expressivos do Movimento por Outra Globalização: a COP-15. Daí, me liguei em outro 15, do 15M, movimento espanhol mais importante de luta no ocidente que tô pesquisando no doutorado. Daí tava saindo de casa e junto da porta na prateleira tava o único livro que tenho sobre o maio de 68. Numa nóia meio neurótica contei os números: maio, 5, de 1968: 5 e 15. Apareceu de novo o número 15. Coloquei é claro no Google, número 15, depois numerologia.  E achei um lance legal. A carta do Tarot de Marselha de número15 é a carta do demônio, a única do tipo, o resto tudo meio new age. Uma carta muito interessante, a representação dele é bem legal. Uma figura com órgãos sexuais misturados, num altar, abaixo um homem e uma mulher acorrentados e as correntes levam às mãos do demo. Já havia notado nos dois livros mais importantes da minha pesquisa, passagens sobre o demoníaco: os Mil Platôs do Deleuze e o Multidão do Antonio Negri. Nos dois livros, eles falam em demônios que são legiões de demônios. Negri diz mais, que os movimentos que lutam contra o sistema formam uma legião demoníaca. Por isso, os anonymous, um dos grupos mais importante de ativismo na rede, sempre terminam os seus comunicados dizendo: SOMOS LEGIÃO.  Também Negri e Deleuze citam o vampiro, figura demoníaca que tem poderes que afetam os códigos de reprodução dominantes; ele se reproduz por contágio. E Negri diz que algo parecido acontece no mundo pós-moderno, no qual a família vai perdendo espaço pra associações diferentes e mais potentes. Claro que Negri e Deleuze não estão falando do deus do inferno, aquele que tem poderes sobre os caídos. Alguém que como um ditador comanda outros.  Eles falam num satanismo materialista. Nas palavras dos indignados de todo o mundo é ouvido: viva o poder desde baixo. Isso é legal, porque os movimentos lutam contra o que vem de cima, o poder. Deus era o poder que vinha de cima contra o poder de baixo do demônio. Os movimentos são os novos anticristos. Quanto aos números, bem isso não me interessa, porque fatalismo de qualquer tipo é um saco. E mais, o lance de pacto com o demônio tá sempre relacionado com um sujeito, que vende a alma por alguma coisa, poder, putaria, drogas, e tudo mais. 2. Interessante que a figura do demônio é marcante na cultura de massas. Na cultura pop o demoníaco aparece de forma mais direta com a banda de heavy metal, Black Sabbath. Banda que misturou o blues (o mais famoso blues man Bob Johnson era, segundo a lenda, satanista) e o som do Led Zeppelin (dizem que os filhos do vocalista da banda morreram pela ligação do pessoal da banda com o demoníaco). Só que o Sabbath em suas letras falava abertamente de satanismo. Os negros (o blues é negro) sempre foram vistos como ameaça biológica e depois cultural, os demônios contra os valores brancos dos racistas da américa.Também o filme sobre as manifestações do maio de 68 do Godard tem o nome duma música dos Stones: Simpatia pelo demônio. E um filme que ele lançou em 1965 tem o nome de “o demônio das onze horas”: vamos contar os números: 5 mais 1 – 6, mais 6, e  o 9 invertido dá 6, ou seja: 666, o número do demo. Tinha sobrado o 5 do mês de maio do maio de 68: é o número de Baphomet, o diabo que aparece junto ao pentagrama, e o 5 está no 15. Não parei pra ficar contando números, mas quando tiver tempo vou fazer isso. Segundo os filmes do Michael Moore sobre a caretice americana, Marylin Manson era o monstro da América nos 90: um cara que mistura som pesado e eletrônico, mas que encarna uma figura monstruosa, andrógina, suprassexual. Como a imagem do demônio na carta do tarot.  Na época que fazia muito sucesso, o cara era acusado pela direita de corromper a juventude: um monstro.  


A tradição romântica da arte

As experimentações de Willian Burroughs – o escritor mais radical da geração Beat – eram com as drogas. Droga como possibilidade de fuga do pensamento tradicional, do corpo normalizado, dos afetos dominantes. Não só droga, como os outros Beats, junto disso a estrada.  Estrada e droga, só que isso não garante muita coisa. Tipo viagens turísticas que só o corpo se desloca, a mente continua a mesma. A droga como imbecilização, como dizia o velho punk: o que aprendemos com Sid Vicious[1] é que ninguém precisa de talento pra se drogar.  Só que a droga e a estrada dos beats, com toda a sua dor e alegria, com todas as merdas... Bem, sobre isso, a gente pode falar em transcendência. Outro elemento que vem junto da droga e da estrada na tradição marginal da arte, é a pobreza: Artaud, Rimbaud, Wilde, Baudelaire, De Quincey. A crítica literária fala sempre do desregramento dos sentidos, mas isso e a vagabundagem da estrada estão ligados a uma pobreza espontânea. Pobreza que na real é autonomia e não a prisão da falta. O drogado que desiste de tudo, até dos bens, pela droga. Largar tudo e cair na estrada. E a pobreza produz riqueza, se sairmos do senso comum: privação, dor, fome, tudo isso fez parte do caminho seguido por esses caras e outros. Tipo Bukowski, um beat solitário. O cara era meio reacionário de direita; só que na real, ele tinha um inconformismo com a geração do paz e amor. Importante que ele segue essa tradição: pagar por algumas noites por um barraco de papelão em alguma cidade qualquer dos EUA, bêbado e com fome, e buscar um pouco de luz pra escrever alguma coisa. Ou seu mentor, Fante, que se alimentava apenas de frutas colhidas, não trabalhar (vagabundear) pra ter tempo de escrever. Burroughs no Tanger, em seu estado terminal da heroína, esperando que alguém morra em sua frente pra roubar sua carteira e ter grana pra se drogar; e tempos depois descobrir rascunhos dessa época que nem se lembrava de ter escrito. Só que tudo isso ainda preso no sujeito, o gênio moderno, criador. Mas o próximo passo é quando os beats se tornam referência de massa, com a contracultura. Daí, droga, estrada, pobreza espontânea viram uma possibilidade pra mais gente, pela difusão do estilo de vida. Hoje a gente vê algo parecido nos movimentos de okupação de praças. Algo que deve ser pensado.

 Prostituição

Sobre a prostituição, seria legal pensar nela como potência, não como impotência, vergonha. Impotência é mais que real: exclusão, marginalidade criadas pelas significações dominantes. Ou mesmo, prostituição como fantasma: as minas que se sentem putas quando transam. E daí elas misturam vergonha, desejo escondido, tudo negativo. Ou mesmo, o cara que trata a mina como se fosse uma. Quanto à potência, ela não é a imitação da prostituição: a mina que dá pro cara já que ele lhe deu um presente caro. Mesmo o cara que se sente prostituído no trabalho. Seria um mundo melhor se a prostituição fosse mais uma das cores da vida, e se faltasse essa cor no mundo, no caso, esse mundo melhor, ele seria menos vivo. Se fosse assim. 
Os pais, os professores, os alunos e os filhos  

Sempre ouço as pessoas falarem com orgulho: sou o que sou pela educação que meus pais ou avós me deram. Lembro de pais de amigos que impunham algo como fibra moral: não faça festa, estude. Anos depois o filho que sofria e muito com a disciplina paterna, dizia: meu pai me ensinou a ser o homem que eu sou. Se não fosse ele, eu teria continuado a usar drogas, eu não teria ido na escola, etc.  Na graduação, notei que os professores mais chatos eram aqueles mais queridos. Os mais duros, os que forçavam a estudar. Lembro de dois paraninfos, que obrigavam os alunos a estudar. O desejo da dureza, da disciplina. Provavelmente, os alunos agora dizem: se não fosse o professor tal eu não seria quem eu sou hoje. E esse mesmo cara, após o final de semana chega no trabalho se sentindo um merda, já que tomou todas, se drogou. Se sente envergonhado, quando lembram ele da sua adolescência. É meu, você usava todas, e agora taí dando uma de pai, de trabalhador. O lado vergonhoso que tentam deixar de lado. Acho que a disciplina só acaba quando acaba seu território ou sua ressonância na vida. Garotas dizem depois que vocês as chifra: vou ensinar a você; uma expressão que circula em tudo. Acho que família, ser pai, ter filho, mesmo com toda a flexibilização, se é obrigado a ser o disciplinador, o cara que vigia e pune.  Acho que no máximo dá pra fazer uma revisão, uma reforma, mas o que não é muito. É isso: na rua você se fode, em casa você se tornará o bom cidadão. E todos querem ser bons, bons cidadãos, trabalhar, pra ter dinheiro. Legal as imagens do The Wall, na parte dois da música. O professor tendo pesadelos com as punições impostas aos alunos.  Deve ser foda saber que você vai ter que acabar com a raça de uma pessoa, ainda mais de alguém que ama, seu filho. Palavra interessante: vagabundo. Aquele vagabundo que só bebe; aquela vagabunda que dá para todo mundo. Papai não deixa o filho se drogar pra ele não virar um vagabundo. O professor fecha o aluno na sala, não deixa sair pra não virar um vagabundo. Pense e aja de tal forma.  E daí a gente pensa que tá criando uma fuga a partir do campo do saber, pensar melhor o mundo, mas fecham a gente em mais regras. O ensaio é uma escrita vagabunda. O jornalismo é interessante porque qualquer um entende. Notícia ninguém tem prazer com a forma, mas qualquer um pode ler. Crônica algo que dá prazer. Livro de jornalistas: eles sabem muito bem escrever pra todos. 99% de lixo. Mas pro homem comum, o trabalho acadêmico é 100% de lixo. Quem tá certo? Você deve trilhar esse caminho pra chegar no texto correto. No ensaio: você tem muito caminhos para trilhar, mais fácil de errar. Faça o certo. Mas Cazuza talvez estivesse certo: erra comigo.  Os manos tão sempre certos: não me enquadra mano, me erra. O corredor é uma bagunça, mas ali também você não pode fumar um.  Mas sempre há os lugares especiais que você pode. Procurar um lugar especial no ensaio. Não para ser mais um na massa. Massa de ensaios, qualquer coisa, todos. Todo mundo enlouquece um pouco. Mas você não fuma um beque na mesa ao lado da vovó. Você não escreve um título de artigo do tipo: pau no cú do método. Aja como eu quero que você aja. Papai e professor. Todos conhecem a fundo as disciplinas, dentro de si. A maioria aceita. Eu não quero ser pai, mas quero ser professor.  E a questão não é de autoconhecimento, o poder em mim, mas de pensar o mundo. Estamos no mundo. Mas então há esse mundo, duro, o bom mundo, de papai, dos professores, do trabalho; e a fuga desse mundo, as drogas, as putas, etc, o que a gente vive como vergonha. Se drogar não garante nada. Mamãe, a esposa, vovó, a irmã, a sogra, a cunhada, todas tomam valium e são as mais caretas de todas. Os pais bebem. Um adolescente com um beque na mão não tem nada na cabeça. Talvez venha a ter. Estava na aula de artes marciais.  Lugar bem interessante, o professor é um PM, e todos os alunos são PMS. Daí aparece um gordinho, 13 anos. Cheguei nele: porque você tá aqui? Ele: quero aprender a lutar e emagrecer. Falei: meu, compra um skate, uma bike, ou um roller, e vai todas as tardes numa pista. Rápido você vai fazer uma turma. Eles vão oferecer cigarros pra você e drogas; vão levar você pras festas; você vai começar a emagrecer, e as garotas vão começar a notar você; não só porque você vai emagrecer, mas porque você vai virar um cara legal.  Não ouça sua mãe nem seu pai. Aprenda a mentir.Você deveria ter aprendido isso sozinho, mas como até agora não, eu passo só umas dicas. Qual é? Você aceita ser aluno de um pai ou de um professor? Aceita ser aluno? Faz a sua, mano. Faz a sua. Não encontrou até agora o caminho, problema é seu. Se fecha na estrutura. Política só nas ruas, ou a burocracia. Academia não é a rua. Aqui é o lugar. Torre de marfim, meu bem. Mas como assim, sempre foi assim, é assim em tudo, você quer acabar com nosso mundo? Eu só conheço esse mundo, amo meu pai e minha mãe, quero ser um pai e uma mãe, quero trabalhar, ser um bom cidadão. Isso é coisa de revolucionário de merda! Revolução é quando tudo vai abaixo, os de cima vão pra baixo, carnaval e putaria. As vadias sacaram bem: putaria política, putaria como potência, não como segredo ou sujeira. Diferente quando a esposa e mãe diz pro marido, o qual ela chama de pai: me chama de puta. Só ele pode chamar ela de puta e ninguém pode saber. Depois olha pro filho e se envergonha. Não é qualquer coisa meu, quando a gente pensa que tá criando, a gente pode estar no erro; mas vamos errar um pouco, uma hora a gente acerta. Me erra meu; qual é?
Adolescentes riquinhos  

Uns caras da classe média, filinhos da mamãe, que vão ser os pais da classe média do futuro. Mas eles não são a versão mais jovem de papi e mami. Eles tão na rua de madrugada num bus passando uma vila, cheio de maloqueiro no bus. Eles tão bebendo vodka de garrafa de plástico e tão fazendo amizade com os blacks. Eles tão de manhã cedo acordando no meio da rua com um monte de gente ao redor na mesma. Vômito no chão e tudo mais. Eles tão subindo o morro de madrugada, e são amigos dos trafi. Eles frequentam a casa do traficante, um cara fodido, com aids, a mulher também, e os filhos do trafi tudo magros e fodidos. Se bate fome e tão sem grana comem até do lixo. Eles transam no mato. Eles fodem em banheiros sujos. Mas meu, eles não tão imitando o bebê que faz caquinha nas calças ou vomita a papinha no peito, meu... eles tão fugindo exatamente disso, ou de repente, tão tornando a impotência da criança na potência. Claro que eles sempre voltam pra casa, com a caminha com edredom. Podem pegar o carro de papai quando fazem 18. Vão pra praia nas férias. Vão pra Disney. Mas entre 13 e 17 anos meu, na noite são como mendigos. Mesadinha acaba na hora com umas pedras de fumo, e o resto do mês...  fazer o que?  Os garotos sempre pensam, de repente fazer um michê pra conseguir grana. Se for com uma mulher nem precisa pensar. Fazem uns lances de pobre, drogado, viado, puto, maloqueiro, e tudo mais. Experimentação, de tudo que papai e mamãe odeiam. E daí classificam, e dizem: isso passa. E é pra passar, não pode continuar, e os jovens vão envelhecendo: aparece carro, viajem, o trabalho, dinheiro.  O cara comia comida do lixo, em meia hora chega o sushi. Ontem tava bebendo vinho de três real, hoje é whisky escocês e red bull. A cola de sapateiro virou 50 gramas de coca, comprada por um amigo já que não sobe mais o morro e nem mais trafica. Transa de pé, mas no banheiro com água quente do  ap, não no banheiro de um bar com um mina pra lá de louca. Catava bituca no chão, juntava e com uma seda fazia um crivo; hoje tá lá o estoque de crivo pro mês todo guardado. A gente pode e é foda, a pobreza que se foda. Não quero nem me lembrar, diz mamãe quando pensa no filho que fumava crack. E o filho diz o mesmo. E mamãe fica braba porque filinho tá corneando a nora, e lembra ele: você era um viciado. E ele se sente mal. Ela transava com todos os caras e depois chorava de culpa. Tava aprendendo a crescer.  E daí o esposo joga com ela: você era uma puta. E come ela por trás com dor. A mina filhinha da mamãe, o bibelô da casa: transou com o namorado viciado em todos os lugares, o cara comia ela em qualquer lugar, banheiros públicos, praças, e ela gostava. A mina era quente demais na cama. Mas sem sujeiras. Era uma puta mulher. Era assim quando tava com o namorado doidão. Mas em casa vestia pijaminha rosa. Comprava artesanatos, brinquedinhos e talz...  Mamãe dava suquinho de maça antes de dormir. A princesinha da casa. Hoje ela tá velha, nem se lembra da juventude. Nem se lembra, mas a juventude tá presente, toda a noite quando toma remédio pra dormir. E ela fecha os olhos e tem pesadelos. Oh, o que foi que eu fiz, eu era uma vadia. Vadia a mãe que fechava a mina em casa; batia nela quando ficava um mês fora de casa na rua sendo um outro tipo de vadia. A das nossas, mano. Daquelas minas do rock que a gente admira. Mina que só os manés falam mal. E ela fecha os olhos quando o marido a come, e experimenta algo relacionado ao passado, mas depois se olha no espelho e diz com culpa: eu sou uma vadia. Deixam de lado a experimentação, põem no lixo. Isso já passou. Era adolescência. Hoje você é homem e tem que impedir a experimentação, principalmente pro seu filho. Odeie a pobreza, a vagabundagem, e tudo mais. Você parece um negro, tá agindo feito bixa. Acabe com o minoritário em você. Não experimente. E a questão não é de fuga momentânea da caretice, mas uma questão existencial. Ele velho, com seus quarenta anos, um tio bem sucedido, pai de família; ele experimenta um lance meio homossexual quando caminha, e gosta disso; não é muito, mas é um pouco; depois o filho vai dizer “eu sou bicha” e ele vai dizer: curta a vida meu filho. As minorias vão pra rua, dizendo: não nos incomodem; e ele vai dizer: meu coração está com vocês. Não sou pai de vocês, sou uma bichona, mesmo sem dar o cú. A mulher vai chorar enquanto ele a penetra, e ele vai dizer: não chore, você não precisa ter vergonha de ser mulher, quando eu penetro a sua, na verdade é você que está me penetrando; aí o território dos dois aumenta, podem mais. Eu sou sua mulher, enquanto eu penetro a sua, seja meu homem, não aquele que tem poder sobre mim, mas aquele que está do meu lado. Seja puta com alegria. Somos todos veados. Somos brasileiros e favelados. Viva a pobreza. A gente se fode, mas é divertido. Uma grande putaria. Carnaval. Isso que se impede, a alegria contra uma suposta seriedade. Sou um homem sério, sou uma mulher séria. Mas aqui ninguém tá brincando, não é qualquer coisa, já havia dito: experimentação do texto acadêmico. Torcer o pensamento, cavar até lá embaixo, no lugar que tá o demo. Traçar caminhos. Uma hora a gente acerta. Me erra!  

Texto indignado contra os caras do consenso [2]

Eu tô falando exatamente com você e você sabe muito bem disso. E quando você lê isso, dói as suas... costas, já que eu meto bem onde você quer levar, essa é a real. E eu gosto disso, sou às vezes como você, um filho da puta... mas o lance é você, quem está em jogo... você foi filho da puta por muito tempo. Você deve. Você sustenta essa merda e diz que não. Você diz que é cool, que luta contra a merda. Só que na real, isso é a sua forma de manter as coisas como elas estão. Só que a gente tá de olho em você e você sabe disso. Sua política mantém essa merda mesmo que você diga que lute contra ela. Sua saída é se tornar puta ou puta. A puta que nos fode ou a puta que é puta como a gente. Nós as putas com alegria.  E você sabe o que isso significa quando você é inteligente, quando é dos nossos. E aí, mané, vai encarar? Já sabe com que tá lidando. SOMOS LEGIÃO. E a gente vai lutar até acabar com você; a gente quer derrubar tudo que você construiu. E você está em tudo, ou tudo está em você. E como é que é? Você acha que eu vou deixar tudo de lado e que vou escrever uma tese exatamente sobre você, toda branca e limpinha, cheia de palavras retinhas, tudo muito viado? Acha que vou dar a real sobre você sem ao menos dizer: eu vou pegar você e vou quebrar você e acabar com você? Acha que vou quebrar sua cara apenas com um texto insípido, como se fosse uma carta branca de paz? Cuspir na sua cara é pouco, e uma tese não faria mais que isso. E todos sabem que você é o problema, que você reforça o problema. E arma branca é pouco. Um tiro é pouco. Eu quero acabar com você e isso vai doer e muito, da forma que você tem mais medo. Vamos acabar com seu mundo. E não com palavras apenas. Eu não deixo minha paixão de lado. Eu quero vida e sangue. Se eu gosto do gozo quando eu trepo, eu quero trepar loucamente e estou fazendo isso agora, trepando com sua vida, fodendo com sua vida. Não basta falar sobre a loucura, estou fazendo a loucura, experimentando... com você agora. Você está faz tempo sentando e calmo na sua vidinha, e a calmaria acabou: CHEGOU A HORA. “Controle-se”, você diz o tempo todo, e isso está dentro de nós, mas agora...  é o reverso. Vamos acabar com o controle, vamos enlouquecer; aprendemos isso na juventude e agora é guerra. “Controle o que você fala e o que você faz. Sente-se como se fosse um âncora de TV. Não fale merda. Escreva de forma insípida. Faça o certo. Enlouqueça longe. Faça o que você quiser longe; não chegue bêbado, ou se chegar: imite alguém sóbrio. Faça as coisas certas. Ou finja que está fazendo arte.” Que você é um cara legal, que curte arte, já que arte é coisa de gente legal, livre. Você entende o significado de indignado. Não é?

Prazer e dor novamente

Li o relato de um cara que estava se desintoxicando. Tinha passado seis anos usando todo tipo de drogas. Gostava muito de qualquer coisa. Tinha uma queda especial por cocaína, mas usava de tudo: bebidas, maconha, remédios. Gostava muito de remédios que derrubassem. Qualquer porcaria. Fazia um uso excessivo das medicações que receitaram pra ele superar o vício. Chegou uma hora, a vida se tornou uma merda. Não produzia nada, só se drogava. Falou com um amigo uma vez de forma bem sincera: prefiro morrer a parar com os baratos. Só que uma hora, parou com as drogas, usava os medicamentos direito, fez tratamento em clínica. Outra coisa: exigiram, família e médicos, pra que ele cortasse os elos com os amigos; que parasse até com álcool. Daí ficou um ano trancado em casa. Conheci caras que passaram por isso ainda bem jovens, com 15 anos. Exigência de corte dos amigos drogados e de todo tipo de droga. Álcool era situação de risco. O cara podia beber e daí perder as rédeas e acabar se detonando. Meio foda fazer uma exigência de corte radical na adolescência. Dos amigos nem tanto, pois sempre pintam novos; o problema é achar quem não se droga. E o cara também já meio que formou um estilo de vida, que é a única coisa que tem na adolescência, e perder isso é difícil. Radical também o corte total de drogas. O cara tem quinze, vai ficar na universidade até os 25, entre isso, tem os 18 os 21 os 23. Fases propícias ao uso. Não sei se funciona, mas pras pessoas que conheci não funcionou. Outra coisa que é ilusão é cortar dinheiro. Muitos que conheci inventaram forma de conseguir grana, mesmo lícitas, o que não envolvia trabalho, mas mentira. Mentira pros pais, parentes, amigos dos pais. Interessante como são inventivos, em suas mentiras.  Mas fazer o que? Permitir? Conheço pessoas que sempre tiveram liberdade, sem repressão, de uso, mas que não abusaram. Bem, mas o relato. O cara tava trancado em casa há tempos, e sem droga. Começou a ler bula dos remédios que tinha em mãos. Achou um remédio que lembrava algo que podia chapar. Tomou dez comprimidos. Ele conta que foi a pior experiência da vida dele, pior que bad trip. Nada de barato na cabeça, só dor em todo corpo. Formigamento, febre, câimbras horríveis. Isso foi o mais foda: câimbras em todo o corpo, que quase o levaram a loucura. Mas em horas passou; ele não contou pra ninguém. Dias depois, ele não pensou muito e tomou de novo, e mesma coisa. Fez o mesmo uso durante um tempo, tipo duas vezes semana, e sempre a mesma coisa horrível. Ele não pensava em coisas do tipo: o que estou fazendo? Só usava. Ele relacionou diretamente a sensação com o corte de heroína. Tinha lido relatos sobre a falta de heroína, e pra ele, na imaginação, era a pior coisa que um cara poderia passar. E pra ele, isso era próximo do que passava quando tomava as bolas.  Bem, o que pensar sobre isso: tava se punindo? Queria sofrer? Ou de repente era o mais próximo que podia chegar da droga, uma droga pesada? Não tava experimentando um lance que dizia respeito à droga? Ou de repente, queria sentir algo forte, muito forte, como uma droga, e foi o que achou? Lembro de uma imagem de um filme. O cara tá tendo abstinência, tá enlouquecido. Os amigos cortam o braço dele bem onde se pica, e ele fica um pouco aliviado. De repente, ativar pela dor, pela enfermidade o barato da droga, como possibilidade de alívio.   

Casca dura

O cara acima criou uma casca dura quanto a esse tipo de coisa de dor. O que um drogado pode suportar? Se parou, não pode e não quer enfrentar o uso, muito menos a falta, muito menos entrar de novo num território que ele tem um apego forte. Coisas ficam. De repente, uma relação legal com minorias, com a arte. De repente o rock, por sua relação com a droga. Pedaços da vida que podem se manter e que não dizem respeito à falta. Alegria a partir do trajeto de vida. Coisas devem ficar. Os médicos dizem: não assista nem filmes com personagens que se drogam, se você está em tratamento. Sai dessa, vai fazer outras coisas. Mas em alguns, bem algumas coisas ficam, e tudo bem. Mas sobre a casca. O cara pode ficar extremante neurótico com certas coisas que lembrem o uso. De repente, um sentimento bate, forte e ele pensa: será que vou recair? Mas ele aguenta, e de repente aguenta muita coisa, porque já passou pela ruim. Aguenta até as neuroses. Os caras em campos de concentração não se mataram. A vida pode ser horrível, mas se aguenta. Um cara teve um flash back ou uma bad trip. Foi horrível, a vida dele era fantasia de terror. E ele disse: mas só isso, vamos pra festa.

Bad trip 

Um amigo teve experiências com drogas psicodélicas e sempre bad trip, das piores. Era sempre horrível, mas ele continuava usando, mesmo assim. Valia o barato. Ele também disse que nunca tinha sonhos legais: não são pesadelos, não são bons, mas são ruins tipo uma bad trip. Mas eu gosto. Também em um curto período de tempo, ele começou a ter ataques de pânico de noite. Acordava sobressaltado, com o coração parecendo que ia estourar. Mas disse: “até que é bom. Parece um tipo de orgasmo no peito.” Sempre teve medo de morrer asfixiado. Mas começou a gostar da asfixia. Preferia não ter mais, tratou em terapia, mas pensava: bem, morrer asfixiado não deve ser tão ruim. De repente, ficou viciado em sentimentos fortes. Ou só encarava na boa. Ou mais, prazer e dor não faziam muito sentido. Ainda mais pra alguém com uma percepção já alterada pelo uso e acostumado com sensações bem diferentes do normal. O lance da psicodelia. Nunca tomei heroína, pelo que leio é um lance forte pra caralho. Mas parece que o cara consegue tomar heroína e, pelos menos, entrar na fila de um banco. Mas o cara louco de ácido, dificilmente vai segurar a onda. Um bom ácido é claro. O cara pode cheirar pó e vai pra aula, pro trabalho, fala com papai e mamãe. Poucos notam. E por isso pó é um lance que sempre tá ligado com vida profissional. Os yuppies dos anos 80; gente jovem, cheiradores que se tornaram grandes empresários, movidos ao pó. Mas e o cara da psicodelia? Nem todos viram Syd Barret[3]; o cara que se fodeu. Mas poucos se tornam Hunter Thompsom[4]. Um cara que usava todas e tinha uma bela vida profissional. Emoções fortes todos têm. Paixão já foi motor de belos livros. Tudo lindo, maravilhoso. Só que o sentimento forte traz outros. Paranoia: “ela tá me traindo”. Medo: “vou perder ela”. “Será que estou louco”. “Eu não era assim”. Uma percepção fina: se sentir bem com pequenas coisas. Uma frase dele; um toque dela. Um amigo disse: pô eu e a gata, a gente transa direto de qualquer forma; mas ontem a gente ficou na cama os dois pelados, e nem transou. A gente ficou se beijando, e cara, num era nem beijo. Eu lambia os lábios dela e ela os meus. A gente ficou nessa a tarde toda. Meu pau nem subiu, se subiu não notei. Estranho, né? Entra também um lance de solidão. Eu e o sentimento, eu e ela. Só nós dois. Um cara me disse: “olha que lance mais doido, ultimamente antes de gozar gosto de dizer pra ela que quero casar e ter filho com ela. Sei lá, parece a coisa mais forte que posso pensar. É tipo acabar com minha vida por ela”. E as pessoas ainda fazem isso. Volta e meia, doidões estão se casando e tendo filhos. Um certo decreto de morte da juventude. Não da juventude, mas de algo que se percebe nela: a experimentação.

Escrita maluquete

Só que mano, tô meio maluquete. Acordei assim semana passada, e depois não dormi mais. Tô meio maluquete, cabeça queimando. Parece que os neurônios tão se indo. Parece não, os neurônios tão na neura. E putz, véio, num tomei nada. Tipo Roger Waters 20 anos depois da fase do doce: “um flash back me pegou, pensei que ia ficar que nem o Syd”. Tô mais pra Waters, mas estar em Waters é ter medo do Syd, nosso Syd. Syd em mim. Mora um Syd no coração de todo cidadão. Véio, figura, mano. Loucura veio pra ficar, e se ficar meu... Já tô numas, eu pirado, saindo pra rua e mandando: mano, trafi, tem uma nóia pra me passar? Trafi, tem um deliriosinho só pra mim, do bom pra vender? Mano, trafi, tô a fim de qualquer coisa, pode ser uns tocs, ou até um déficit de atenção. Pode ser até deprê da boa. Me vende aí uma bipolaridade.  Porque se passo o meu lance pros cara da saúde, os cara me trancam, daí vou pro xilindró. E daí o lance é fugir, meu. Sair correndo. E não só nóia, meu, qualquer coisa viagem.  Me vende aí uma viragem de 180 graus do cabeção. Pode ser uma viadagem. Tipo umas horas de lésbica. Me vende aí uma cor pretinha, pra eu ficar neguinho. Pode ser uma dose de cigano. Qualquer barato.  Me vende umas horas de sapo. Virar um sapinho e curtir um lance úmido. Meu, tem um lance pra vender tipo norte africano na Europa? Tipo, cubano nos anos 80 na Flórida? Meu, preciso de qualquer coisa. Cansei de correr. Tô dando volta e tô tonto. O mundo tá muito circular, sei lá. Me passa ai um câncer, me passa um avc, qualquer barato meu. Pode ser um hiv. Pode ser uma dose de qualquer coisa de duas horas, meu. Qual é. Vai deixar o mano na seca? Só não me passa barato ruim: tipo ladrão na cadeia; tipo viciado em clínica; tipo doente em hospital; tipo louco no manicômio. Meu, não quero ar livre, me vende uma poluição. Meu, me trafica um ataque nuclear. Meu, me dá uma radiação, qualquer merda. Meu, me passa aí uma febre religiosa, tipo: amo deus. Meu, me passa um lance meio vadia, transando em banheiro em fim de festa. Me passa aí um barato tipo briga de faca na rua. Meu, me dá uma noite inteira por duas horas, cara. Pode ser também comida transgênica. Rango de super, sucrilhos, doritos. Uma ceva brasileira. Um vinho da colônia. Um mcdonalds. Meu, qualquer coisa. Pode ser até notícia ruim. Meu, me manda uma notícia horrível, tipo: depois de dez anos de revolução nada mudou. Meu, tá vendo que tô sendo flexível. Topo todas; qual é? E aí? Só não me coloca numa fila. E se for engarrafamento, só devido a acidente com mortes. Me dá uma morte aí, meu. Uma morte eterna, no fogo do inferno por duas horas, meu. Muito a fim. Mina feia. Puta com dst. Qualquer coisa. Me dá umas veias cheia de coágulo, abscesso. Conhaque francês falsificado do paragua. Me dá uma traição. Me dá uma chifrada da boa. Mas tem que ser junto ao mar. Meu, me dá uma frase: seu cachorro. Pode ser criança chorando; o choro de um monte de crianças. Depois eu pago. Passa agora. Senão, vou cair numas. E pra prisão num volto.

Pedofilia moral

Eu tava dirigindo em Porto Alegre, domingo de tarde. Lance legal. Nos dias de semana é um saco, mas no fim de semana, é tipo... 80 por hora na boa. Daí, legal dar uma banda e ouvir um som. Eu tava ouvindo um Joy Division. Meio que dançando com os olhos e tal. Tentando não chamar a atenção do tipo: “oh mãe, tem um loki dançando sozinho no carro”. Daí tava numa avenida, na zona sul, descendo ela. De repente, o trânsito fica mais lento, a rua fica flat, um semáforo fechado. Daí vi de longe, ela: uma gatinha. Ela tava entregando panfleto. Ruiva de pele branca. E eu: uau; é o que eu gosto. O cabelo não era natural, mas branca e ruiva, um ruivo quase natural. E ela começou a ir na minha direção, entregando panfleto. Chegou perto o suficiente pra eu ver que tinha olhos claros, verdes. Depois chegou perto o suficiente pra eu sacar que eram de verdade, não era lente. Pensei: tudo de bom, branca, ruiva, de olhos verdes. Tava maravilhado com isso. Já tinha dado uma idade, mais de 18. Só que daí comecei a reparar no resto. Peitinhos pequenos: ok, ela tem 18. Putz, ela não tem coxas: deve ter 17. Vi bem o rosto dela: putz, 16? Ela lançou um sorriso do nada, não para mim, nem pra nenhum motorista, sorriso de quem tinha 15. Eu: merda, tava ligado numa gatinha de 15. Fiquei numas: será que vou ser preso, por isso?  Já tava pensando algo do tipo: gatinha entra aqui no carro. Vem meu bem. Vou levar você pra casa, vou cuidar de você até terça-feira. Merda. Parte 2. Lembrei dum mano meu. O cara tinha 15 anos e gostava de garotos de 12 e 13, normal. Daí ele fez 18 e continuou na mesma, normal. Só que daí ele fez 25, na mesma, meio normal. Agora tá com 30 e tá na mesma. Falei prum amigo mais velho e ele disse: manda o cara pegar uns de 18, ele pode se dar mal. Essa merda não é ilegal; só que moralmente, como fica? Eu tinha 25 e tava descendo uma rua aqui de Porto Alegre, a Independência. Vi uma mina com uma criança pequena. A mina era muito bonita: baixinha, mas morena, pele bem branca, magra e com belos peitos. Comecei falar com ela. Ela bem legal e receptiva. A gente começou a descer a rua juntos. Andamos bastante, até perto do colégio do Rosário. Daí perguntei: bem, você tá indo pra qual lugar? Ela disse: só tava acompanhando você. Pensei: uau. Peguei o telefone dela. A gente começou a se falar, e tal. Ela começou a me encher o saco, mandando poesia. Mas tudo bem. Um dia a gente combinou de se encontrar. A gente foi numa lancheria próxima dum parque, o Redenção, um lugar meio de hippies. Dei uns beijos nela. E perguntei a idade. Ela disse: 15. E eu: mas como assim? Pensei que você tivesse mais de 18. Porra mano, ela tinha um corpão. Só que nem me liguei, não fiquei pensando. Como morava perto, na Cidade Baixa,  levei pra casa. Agarrei ela. Tirei a roupa. Comecei a ficar meio que muito a fim. E ela disse: vou embora. Assustei a gatinha. Ela tinha 15 mesmo. Depois disso a gente se falou, mas eu não dei valor. Tava ficando com outras garotas e tal, e pensei: ela é muito complicada. Só que hoje, bem, mano, eu não entraria no meu edifício com uma gatinha de 15. Nem em motel; não daria uns beijos na rua, etc, mas o lance é que... bem, falo aqui sobre os adolescentes, e sua experimentação. Acho que a maioria toparia um lance com um cara mais velho. Mesmo que papai e mamãe, uma certa moral, travem um lance desse tipo.   

Emos

Não lembro exatamente quando virou moda aqui em Porto Alegre. Mas comecei a conhecer cada vez mais garotos e garotas que trocavam carícias em pessoas do mesmo sexo. Eles ficavam junto a um arco que tem no Parque da Redenção, em Porto Alegre. Como eu morava perto, na Rua Santana, sempre passava por ali e conversava com eles. Sou de uma geração anterior. Todos meus amigos dos meus 12 aos 18, os caras eram grandes fascistas. Odiavam gays. E eu também. Os caras usavam todas, mas sobre homossexualidade, eram reaças. Eu sentia em alguns momentos, um lance meio gay entre eles. Só que nunca fiquei sabendo de casos entre os caras. Quando me desliguei deles, comecei a andar num ambiente de música eletrônica. E a coisa mudou. Me vi falando e fazendo uma amizade efêmera com viados. Como boa vítima da moda, ia direto no cabeleireiro. E o cara hoje é transexual, prostituta na Europa. Me liguei um dia que tava caminhando com ele no centro, e pensei: dane-se. Acho que o que ajudou foi minha bagagem literária. Sempre li muito sobre rock desde muito novo. Voltando pra história dos Emos, via eles mais no fim de tarde. Acho que eram os primeiros da cidade, nem havia virado moda. Ainda era subcultura. A coisa rolava entre eles na boa. Se beijavam; mas não sei se faziam sexo. Gostava deles, as garotas não eram frescas e eu me dava bem sempre. Eles não se detonavam, não faziam muito. Mas se aparecesse alguém com alguma ideia louca, eles topavam. Ainda era época que menores de idade podiam frequentar casas noturnas e acho que podiam beber. Lembro de mim com 14 anos num desses bares, tomando todas. Hoje a garotada no máximo falsifica a identidade.  

Morte

Tenho uns traços de hipocondria. Já foi pior, mas ir no medico é horrível. Mesmo dentista. Fumo muito, daí medo de câncer de boca. Tava com lances na visão. Medo de ficar cego. Etc. Mas tudo muito efêmero. Só que o suficiente pra me deixar mal, por alguns momentos durante um tempo. Num desses momentos, falei pro meu pai: cara, vamos comprar uma arma? A gente deixa contigo; daí se alguém ficar doente, bem a gente tem a arma. Falei também: não quero me atirar de um edifício, tenho medo de altura. Uma boa piada de humor negro. Mas no fundo falei sério. Pular de um edifício é foda. Um tiro me parece mais limpo. Deleuze fumou bastante, teve uma doença de pulmão; quando não podia mais escrever, pulou da janela. Mas como eu fumo, é algo que penso: um tiro limpo. E mais, se eu pudesse apertar um botão, e morrer sem dor...  não sei, eu pensaria agora se deveria ou não, paralisar tudo. E interessante quando penso nisso, não penso em fazer sofrer os outros, a minha família. Como também não estou me importando com o sentimento deles. Teria que pensar qual território é mais rico, o da morte ou o da vida. Pai diz: cara, com essa idade pensando nisso. Só que o papo não é do tipo: “tudo é tão horrível, não quero viver”. Se matar no auge, ou tendo um belo horizonte... Morrer com alegria. Uma experiência. O lance não é fugir da morte pela morte. Não é por aí. Acho e espero. Mas uma pequena aventura.

Festa  

Gosto de festa. Primeiro a música. Se quisesse gatinhas mais velhas, iria pra outras bandas, não lugares do rock.  Só que não ouço pagode. Até gosto de música eletrônica, mas não me sinto bem em lugares gls, já que não tem mulher. Meio chato entrar em banheiro com gays. Os caras são fortes. E não sei o que eles fazem nos banheiros. Então, tem uns lugares que tocam certa música que me agradam um pouco. Gosto de dançar, me sinto criativo. Legal experimentar a dança de gente como Ian Curtis, Iggy Pop, e etc. Às vezes consigo me mexer legal. Sentir a música. Mas não o lance de dar show. Então, som, dança, as garotas.  Se pinta uma garota, ok. Se rola, sempre é bom. Mas só se a coisa for efêmera, não estou procurando o amor de minha vida, ou algo um pouco mais sério.  Já fiz muito isso. Ficar uma noite dando em cima. Um bom método. Rendia um namoro de semanas pelo menos. Hoje sem paciência, pelo menos na noite. Legal dançar, fazer umas merdas, enlouquecer um pouco.  Importante festa como ponto em que nada se constrói. Passagem. Uma noite apenas. Lado bom da noite. Sempre me pego conversando com pessoas diferentes. Parece que elas nunca são as mesmas. Lugares escuros pra conversar, o do cigarro. Pista de dança também. Quanto mais escuro melhor. Claro que o que faço de tarde é mais claro. Só que na noite, vale a escuridão. Pelo menos gostaria de chegar anônimo e sair anônimo. Impossível, só que dá pra chegar perto disso. Usei muito como metáfora pra algumas namoradas: vamos construir uma casa. Construir uma vida. O inverso do que a noite permite... se bem que em certos momentos, vale a pena construir pelo menos uma barraquinha. Okupa as relações amorosas!




Carta a um professor [5]

Bom dia, professor

Sempre bom falar com o senhor, pois falamos a mesma língua. Assim sabe que de forma alguma critico seu método em sala de aula, além do mais, sabemos que você é o professor mais qualificado da pós. A crítica passa muito mais para o ambiente de sala de aula. Mesmo o revisando, creio que não é muito. Podemos fazer uma relação com a política: revisar a democracia, não é muito. Interessante o senhor usar a expressão solipiscismo, pois minha crítica passa exatamente por aí: certo discurso acadêmico, que se fecha em si mesmo.  Aliás, as pesquisas muitas vezes, em alguns casos, todas, trabalham com conceitos que impedem o diálogo com outras.  Ou o corte entre discurso acadêmico e sociedade. Mundo acadêmico isolado. Se nós não nos entendemos, a sociedade vai nos entender? Certo tipo de produção ensaística também, concordando com você, não me parece a solução... Tento cada vez mais pensar minha pesquisa como pertencente a certo pensamento coletivo; e creio que não basta deixar de lado o subjetivismo em nome de uma certa frieza científica.  Gosto muito de apresentar seminários, dar aula, palestras, me sinto bem, pois desejo ser professor, ou seja, como profissional não posso fugir disso. Também concordo que teoria serve como caixa de ferramentas, se não serve, não interessa, bem parte-se para outra. Aí se encaixa muito bem meu caso; trabalho com certos autores que fazem uma crítica radical ao estabelecido. Creio que são autores que poucos usariam, ou conciliariam com suas pesquisas sem criar uma contradição. Esse é minha linha de fuga desde o mestrado da proposta acadêmica; dura escolha, mas é o caminho que decidi manter. Se minha pesquisa de mestrado foi falha em muitos aspectos, esse talvez tenha sido o principal: pela falta de tempo pra fazer uma pesquisa bibliográfica consistente, o que pode ter resultado em ficha de leitura em parte do texto final. Só que se eu não tivesse passado por isso, eu não teria a consistência teórica que tenho agora. Ou mesmo chegar a conclusão, saindo do solipsismo, de que o que importa é a relação, o bom encontro entre campos, disciplinas, centrando em certo significado de política. Aliás, acho que todas as pesquisas em todos os campos deveriam ter o mesmo tema: poder e resistência. E creio que de Foucault até Negri, as significações de poder e resistência são mais do que razoáveis. E se fico em silêncio em sala de aula, deve-se ao fato de não gostar de discussões, embates de ideias, pelo menos presenciais. A coisa, às vezes, parece que vira pessoal. Mesmo eu deixando sempre claro que não é pessoal, apenas uma apresentação de certo tipo de pensamento, e dizer: eu penso isso; pra mim diz muito pouco. Na real, nem faz sentido.

Torcer o território

Dá pra fazer coisas em certos lugares que a gente nem sabe. E isso é importante: tentar. Na sala de aula, nas festas, em casa, na rua. O território é mais aberto do que parece. O fim do território é a cadeia, o manicômio. De resto, é festa. Só que a gente não faz. Não usa o território. Se bem que pode rolar brigas e tiroteios. Ser precavido. Mas tem que se foder pra saber até onde dá pra ir. Tem caras que fumam maconha na rua. Cheiram pó nos banheiros. Fumam outras merdas na casa da família. Chegam bêbados em sala de aula.     Até os policiais permitem, de certa forma.

Filmes sobre monstros do David Cronenberg

Gêmeos Mórbida Semelhança: dois irmãos gêmeos que se complementam; mais, se misturam, criando uma mesma coisa. São médicos bem sucedidos. Um gênio, o outro um bom marketeiro. Se apaixonam por uma mesma mulher. Começam a se drogar. A mulher tem um útero mutante. Paixão, drogas, a relação anormal dos irmãos, a mulher mutante. Mais pro fim, um dos irmãos experimenta algo entre arte e ciência. Ele fabrica aparelhos que ele chama de cirúrgicos pra mulheres mutantes. Um artista descobre e rouba as peças. Uma cena chocante do filme, um sonho de um dos irmãos: os dois grudados como siameses e a mina que eles tão a fim, ela morde o lugar no corpo que os liga.  No fim, os dois estão viciados em heroína; um deles pede ao outro que ele o mate. O que fica vivo enlouquece. A Mosca: um cara que se transforma, aos poucos, em uma mosca após uma experiência científica. Quando vira totalmente mosca pede pra ser assassinado.  Fugir da sua própria humanidade. Só que a fuga não dá certo, leva a morte. Crash: sexo e máquinas. Sexo e automóveis. Viciados em sexo e automóveis. Melhor, viciados em acidentes de carro. Fetichistas de acidentes. Rossana Arquette faz um papel meio humano e meio máquina. De tanto acidentes, virou um pós-humano. Próteses de metal por todo o corpo, mas ainda gostosa. Ela e o personagem principal vão numa revendedora de automóveis. O vendedor lhes mostra um carro, eles entram nele e começam a se acariciar ao lado do vendedor. Ele – o vendedor – não resiste e acaricia ela. Ele fica com tesão dessa mulher-máquina. Uma mulher de muletas, com próteses, louca o suficiente pra transar num carro em uma loja. O vendedor podendo perder o emprego. Ele é o único que parece ser mais normal; de terninho e gravata, acho que calvo e de óculos. E ele quer fazer parte da festa. Só fica nessa, mas um bom começo. Queria saber o que virou a vida dele depois disso. Daria um outro filme.  Naked Lunch. Adaptação da obra do Burroughs, com muitos elementos da biografia dele. A mulher do personagem principal, Burroughs, é viciada em veneno pra barata. Na vida real, era viciada em benzedrina. Burroughs se vicia em pó de lacraia brasileira, era em heroína. Uma barata-agente secreto manda que ele mate a mulher. Sem querer, faz isso. Na vida real, isso aconteceu, Burroughs matou sua esposa.  Depois de aparecer a barata tudo vira pesadelo, com muitos monstros. Agentes monstros, máquinas de escrever monstros, gays monstros.   

Laranja Mecânica

Cena inicial: a gangue de Alex (personagem principal) e ele, eles tomam “leite com facas”, um tipo de droga pesadíssima. Estão sentados, olhando pra câmera. Olhar fixo de chapados. O som de fundo, um órgão com alguma música de Beethoven. A câmera vai abrindo aos poucos. A primeira metade do filme o torna o que é: uma grande obra; só que da libertação de Alex da prisão, no meio do filme, até um poucos antes do final é moralista. Nesse tempo, Alex paga pelos pecados. Já o final é um final feliz, mas diferente desses de filmes ruins: a felicidade de um psicopata.  Depois de se dar mal, pode voltar a agir como um monstro.  A história do filme: Alex tem menos de 18. Toma drogas pra ficar violento. Em uma noite, espanca uma gangue rival; quase mata um velho mendigo com seus amigos; estupra uma jovem esposa de 30 anos. No fim, bebe mais leite, vai pra casa e meio que adormece ouvindo Beethoven. Tem sonhos com assassinatos. Em seu quarto toda uma riqueza de signos: escultura de cristo dançando; uma cobra de verdade; quadros de mulheres nuas de pop arte. No meio do filme, mata uma mulher, é traído pelos companheiros, pega 14 anos de prisão. Na prisão, entra em um programa de condicionamento. Vê filmes de violência e impõem a ele doses de uma droga terrível, ao fundo a música de Beethoven que mais gostava, a Nona Sinfonia. Fica condicionado. Sempre que pensa em agir violentamente ou ouve a música, sente que vai morrer, uma dor terrível. Até aí ok, mas depois, como disse, o filme fica chato, Alex paga o preço. Encontra todos que abusou com violência, e quase morre. No fim do filme, o Estado o acolhe, e ele se liberta do condicionamento. Eu não havia falado da violência sádica, no caso de Alex, por prazer. Violência pela violência. Legal que o Estado permite a violência de Alex. Isso tá mais evidente no livro do Anthony Burgess, que deu origem ao filme. No livro, uma hora ele acaba se cansando, como se a violência estivesse mais relacionada à juventude. Duas coisas importantes que estão relacionadas: violência e juventude.  Isso aparece nos movimentos de luta contra o sistema. Vemos a violência contra o Estado feita pelos jovens, só que violência legítima, a violência da revolução. Aparece como possibilidade aqui neste livro, algo como tentar uma escrita violenta; a partir da violência existente. Violentar o leitor, ou seus ideais, o que dá no mesmo. Um pouco de psicopatia talvez, frieza, meter o dos outros na reta e também o meu. O dos outros que está em mim, o que compartilho, ou seja, me violento. Uma coisa que não gosto em aula: falta paixão nas falas, reflexo da mesma falta nos textos. Nas assembleias dos movimentos de ocupação, já senti o ambiente aguado. Só que em Barcelona o pessoal tá realmente indignado. Ouvi algumas vezes nos encontros do movimento, o pessoal falando de ação direta violenta, de forma apaixonada. E bem, os caras tão encarando a polícia de frente, diferente daqui do Brasil.     

Mulheres

Um amigo meu jovem, duns vinte poucos anos. Tava numa fase bem aberta: drogas, loucuras, mulheres. Tava meio que namorando uma mina. Daí começou meio que namorar a melhor amiga dela. Ficava com as duas. É, tava ficando com as duas, e um dia, do nada, apareceu uma mina que ele meio que tinha namorado. Era verão, elas não tinham o que fazer nem ele e... bem, um dia ele diz que olhou pra sala e estavam as três conversando: duas de 18 e uma mais velha que ele. Sentiu que tava num transe, e de repente acordou com elas ali. Daí olhou pro outro lado da sala e estava uma mina que morava com ele. Dormia na cama com ele, os dois abraçados. Ele transava com todas elas, uma de cada vez, enquanto as outras faziam sei lá o que. O cara não era bonito, também não era feio. Não era burro, mas também meio pateta pra ser inteligente. Podia só fingir que tinha lido. E o cara não era nenhum grande amante. Na real, o cara era filha da puta. E as garotas eram bonitinhas, a mais nova, a mais bonita virou namorada fixa. Ele não se preocupou com preservativos com elas. Quando a festa acabou, ele pensou: me fodi, vou ser pai de quatro crianças direto, tô fodido; mais, AIDS na certa. Só que elas se cuidavam, ele que não. Eram todas meio caretinhas, deixaram de ser com ele. Mesmo assim, ele tava meio noiado com tudo, e conta que o fantasma da AIDS meio que pegou ele por um tempo. Meio foda, delírios e tudo mais. No fim, tava tudo bem.  Só que ele pensou na loucura, talvez seja bom, de repente, nós cinco com AIDS, uma família decadente feliz. Dessas dos adesivos dos carros: tipo cinco lacinhos vermelhos.   

Sid e Nancy

Puta filme. Os dois viciados em heroína. Nancy garota de programa. Sid roqueiro que come todas. Os dois se amam de uma forma punk. Se batem, se xingam, fazem um monte de merda. Sid chega ao final da carreira como músico. Só heroína. Perde show. Nancy se acaba também, daí Sid a mata. Música anarquista, heroína, amor livre, um amor punk.  

Massas

Dois jovens no décimo andar de um edifício de frente pra rua central da cidade. Ali embaixo, milhares de pessoas caminhando. Os dois cospem lá embaixo. Um deles atira uma pedra. Interessante que nenhum deles fez ou fazia algo do tipo em pessoas cara a cara. Medo? Talvez. Mas ali de cima, podiam demonstrar seu desrespeito pela massa. Um monte de gente caminhando como bovinos. Mais, vistos de cima, um monte de formigas. Aqueles que sustentam essa merda. Aqueles que querem que as coisas fiquem assim. Só que a massa pode mudar de forma. Passeatas visualmente têm a mesma forma dos bandos bovinos se vistas de cima. Só que ali em baixo as coisas mudam. Um certo vitalismo. Como na Marcha das Vadias. As meninas nuas. Todos sorrindo. Os cartazes dizendo coisas maravilhosas. Diferente de uma procissão. Aquela coisa triste. Desespero. Todos chorando por deus. Um cortejo fúnebre?

Sono

Final de semestre, eu bem cansado e insatisfeito com o ambiente institucional. Muito puto já que vai demorar mais uns três semestres pra ir pra Barcelona. Puto porque em algumas noites peguei umas gatinhas caídas. Daí durmo muito no fim de semana, e travo na terça. Fico dois dias sem dormir. Daí uma amiga me liga dizendo que tá com uma doença de merda. Isso me deixou fodido pacas. Primeira crise existencial do semestre. Um saco; muita nóia. E por aí vai. Daí decidi ficar mais em casa, o que acentuou tudo, meti solidão no meio. Como não dormi até agora, fiz um café bem forte. Nove da manhã. A vizinha do andar de baixo vai tomar banho. E eu aqui escrevendo. Como dizia: aproveitar o que tá rolando. Mesmo que me leve bem pra baixo.    

Rotina

Nunca gostei de supermercado. Muita gente. Carrinhos trancando a passagem. Crianças sendo levadas pelas mães. Vovós em grupos. Os vovôs que arrumam as compras em ordem. Poucas gatinhas sós, muitas acompanhadas. Gente que me lembra que há uma vida que quero distancia. Não sei se são pessoas legais, ou não. Se são inteligentes ou não, mas... bem a gente sabe porque esse tipo de gente tá lá. Mãe com filhos pequenos, possíveis donas de casa. Vovós e vovôs, nada pra fazer. Casal, manter a rotina; se jovens, fingir, brincar de casinha. E vou direto no super, porque as coisas acabam rápido aqui em casa. Eu assalto geladeira de madrugada. Deixa uma pizza fria na geladeira, eu acordo no sofá comendo a pizza sem saber como fui parar ali. Daí tem o pessoal que coloca compras nas sacolas. Serviço idiota. Será que os caras que vão no super não conseguem fazer isso: ensacolar as compras? Daí olho as compras das pessoas, e elas se alimentam mal: sacos de salgadinhos, barras enormes de chocolate, doces... Imagino daí as donas de casa, sem nada pra fazer, fazendo comida. Frequentava a casa de um amigo, o cara viajado, inteligente, gay. A mãe não fazia nada, um terço do dia em casa limpando. O resto, via televisão, bebia vinho e tomava bola. O pai, que trabalhava, quando em casa, ficava fazendo comida. Parecia que os caras só comiam. Fim de semana, nada pra fazer, o pai brincava de artesanato. O sonho dele era morar no mato. Perto desse mundo do super, da classe média, da família, me sinto sufocado. Tenho medo de que isso venha acontecer comigo algum dia. Diminuir meu território. Morrer gordo e cheio de filhos em Porto Alegre. Já morrer enforcado em algum albergue barato na Europa, me parece interessante. Fazer uma festa de seis meses. Daí quando acabar a grana abreviar a vida. Tenho muito a viver; mas se a escolha for entre essa vida de todos ou o suicídio, está bem claro o que eu escolho. 

Relacionamentos

Viver uma vida clichê não é difícil. Melhor, difícil é não viver uma vida clichê. Imite um filho, imite um pai, imite alguém incluído; ou mesmo: imite uma bicha. Tudo muito fácil. A gente sabe como agir, tá tudo pronto. Imite um namorado. É só comprar um fone de ouvido, a mina vai falar a tarde toda. Mais sutil: finja que você está interessado. Se o cara não finge, se está interessado, é porque tá fodido... encontrou o amor de sua vida. Vive num conto de fadas, naqueles que se diz de coração: você chupa bem, meu bem. Mesmo que ela não saiba o que tá fazendo. Difícil fingir ter paciência. Impossível. E tem uns caras que querem isso pra sempre. O cara do filme o Homem do Ano (do José Fonseca), diz: quero casar, ter filho, arrumar um emprego. No fim, mata a esposa, vende o filho, larga tudo, cai na estrada. Deve ter prestado atenção no Pereio que diz no filme: são todas umas vingativas, umas chatas, tem que dar porrada. Sobre filhos, Pereio lança outra: no casamento o que é mais complexo são os tipos de merda, tem de todo tipo, nada muda de casamento pra casamento, só a merda. E eu falei acima do cara que tem tesão de gozar e falar: quero casar com você. Uma boa tática pra brochar, isso sim. Outra tática é olhar pra esposa ou namorada de longa data. Mesmo se for bonita, deixa de ser de tanto o cara olhar pra ela. Por isso, o cara tem que ficar na espreita, olhar as minas que tão namorando há mais tempo. Forma mais fácil de pegar mulher bonita. E já faz um bem pra sociedade. Faz elas se sentirem amadas por alguém.

Retorno

Reviver uma história, só se foi suave, sem compromissos. Sem que se saiba muito um do outro. Senão, quando a coisa esquenta, se acrescenta o passado, coisas do tipo; ele: você era uma puta que eu sei. Ela rebate: e você era um filho da puta, que comia todas putas sem preservativo.  Ele, terminando a conversa: Como você? Andar pra trás é um saco; legal ficar cego, sem direção num giro de 350 graus.  

Fazendo teatro

Não tenho mais 25. Não estou na graduação. Não me formei recentemente. Mas ainda gosto de rock, e acho que Porto Alegre morreu, pro rock pra dançar. Bom rock, claro.  E gosto de eletrônico, só que as noites do tipo é pra turma gay.  Daí tem esses picos com rock manjado, apenas. E nos picos, uma galerinha bem nova. Não tenho nada contra garotas de vinte, pra cima. Se bem que umas de 18 me pegaram, de jeito; gracinhas demais. Tá, daí vou nesses picos. E assim, sou meio extrovertido. Às vezes, muito. Acho que sou um cara meio pavão. Não gosto de ficar em silêncio. Isso varia, tem gente que diz que sou fechado. Mas cara, depende do momento. No doutorado, falo quando dever ser falado... mesmo que às vezes saia um: foda-se; dependendo do meu humor. Nas festas tô a fim de enlouquecer. Daí visto uma máscara. Danço. Falo com todo mundo. Fumo um monte de crivo. Como não tô muito a fim de nada mais sério, chego em todas as garotas. Queimo o filme. Não tenho nada a perder. Nos lugares que frequento na noite, não tenho raízes. Alguém pra levar pra casa... claro que levo. Só que não quero fingir que sou legal, tipo fazer café da manhã. Mas não quero também dizer: agora tá na hora de você cair fora. E isso acontece, às vezes.  Gosto de um tipo de garotas. Elas não são beldades. Não virariam minhas namoradas fixas. Sim, eu sei muito bem ser um filho da puta machista. Li muito Bukowski. E aqui não é um espaço de purificação. São umas minas que posso pegar na boa. Sem muita frescura. Só que gosto delas, pra algumas coisas. Cheiram bem. Têm um gostinho bom. Me dão um barato, claro que com a visão embotada da loucura. Legal que posso fazer teatro com elas, são minas legais, sem frescura.  Chego na gatinha. Lanço um sorriso cafajeste. Dou umas apertadas. Chamo de gatinha. Tudo com uma voz meio jovem cantor de funk carioca. E a mina sabe que tô atuando, e isso que é legal. Tipo: pô gatinha, e aí gatinha, tá a fim gatinha, qual é o lance, chega no titio. Pô gatinha, lança um beijo, e talz. E dou umas apertadinhas na barriga, cocha e talz. Tudo muito engraçado na minha cabeça. Ridículo. Uma peça. Um dia pedi uns tapas na cara de leve. Ela disse: não! Então eu dei nela. Ela ficou braba e disse: não faz isso aqui. E eu continuei fazendo. Ela naquelas: você tá queimando o filme. E eu: mas gatinha, que filme, meu bem, você tem quantos aninhos? Entra na onda! Rápido perde a graça. Coisas legais, que duram, o espaço não é na noite. Teatro na noite é uma das minhas experimentações dos territórios. Treino uma gestualidade, uma fala. Interessante, que os caras não imitam um débil mental na noite. Têm que manter a pose, senão as gatinhas já eram. Daí eles deixam a barba crescer. Falam devagar. São muito sérios. Se acham sérios. É, não tão mais na graduação, agora são homens e tal. Já comigo é o inverso. Não quero provar nada. Só se for algo mais... problema que não sou um bom piadista, sou um pouco agressivo. Gosto disso, uma rudeza meio da fronteira aqui do sul.  Tipo: ah é mina, então vai te fuder! Meu lance é fazer coisas que não se espera de um acadêmico. Tô treinando isso. Nem sempre dá certo. Aqui acho que sim.     

Fora do Brasil

A gente saiu num ônibus de Madrid. A gente ia pra Bordeaux. Madrid foi massa. Era época de festa. Só que a gente tava passando as montanhas. A gente não tem isso no Brasil. A gente tava nessa estrada. A estrada era estreita. Ao lado, as montanhas. Tava todo mundo dormindo no bus. Me deu um barato. Comecei a olhar pra direita e pra esquerda. Num conseguia focar o campo de visão. Saquei que tava meio louco. Tava com os olhos arregalados. Como todos dormiam, me permiti ficar nessa. Foi uma experiência foda. Longe do Brasil. Longe da família. Tinha ainda duas semanas de viajem. Ia pra França. Ia finalizar em Londres. Tava longe. As montanhas. Tudo isso me fez ficar num belo barato... como se eu tivesse tomado alguma droga. Uma droga forte. Um ácido. Um cogumelo. Pensei: pra que me controlar. Ninguém tá olhando. Surfei essa onda por mais de uma hora. E não era só um barato psicodélico. Era um barato meio anfeta. Meio coca. Coca psicodélica. Acho que aí me liguei: tô em outra banda, meu. Tô longe pra caralho. E tá tudo bom. Não lembro direito no que pensava. Só da loucura.  Parte 2. Anos depois, tava em Barcelona, morando perto duma praça famosa.  Era só caminhar 10 minutos até a praça. Depois, mais cinco, tava na parte nobre da cidade. Um morro com museus. Legal a vista da cidade lá de cima, junto dum museu de história. Não sou um cara museu. Não gosto tanto. Só que não tem como não gostar. A rua, bem a rua, é muito mais interessante. Só que um dia entrei nesse museu de história. Passei a tarde ali. Os caras tavam fechando e eu tava ainda lá dentro. Tava deitado num sofá. Outras poucas pessoas ao redor. Olhei pra cima, uma hora. Um teto muito alto. A construção era um desses patrimônios da humanidade... e me deu um barato tipo o do bus indo pra Bordeaux. Melhor, antes, caminhando no museu, bateu um barato, e melhor.  Tava numa sessão de arte românica. Não quero ficar descrevendo arte, mas sim, o barato...  só que tenho que falar do ambiente. Salas enormes. Escuras. Pouca gente. Partes de construções românicas, como portais, entradas de igrejas. Tudo ainda com pinturas originais. Fiquei horas ali dentro. E o barato. Assim, não choro. Não gosto de chorar. Acho um sentimento muito reconfortante. Sei lá. É pouco. Só que uma hora senti que ia chorar. Não chorei. Mas quase. Não foi uma sensação tão forte do tipo a das montanhas. Mas quase chorar, pra mim, é algo forte, especial. Poderia ter chorado, mas não quis fazer uma cena melosa. Não sei. Tenho medo de ficar com pena de mim mesmo. Aquelas coisas: “Olha ele está chorando. Tadinho.” Tipo olhar pra mim e pensar isso. Ter pena de mim mesmo. Prefiro me olhar no espelho e dizer: “seu filho da puta!”. Prefiro me encarar: “Qual é meu?”.  Parte 3.  Não tem como viajar e não ir em museu. Não tem como fugir disso. Faz parte. O museu de arte contemporânea de Barcelona foi uma experiência legal. Na segunda-feira, a galera anda de skate ali. Dia que tá fechado. Tudo muito correto, europeu. Aqui em Porto Alegre se anda em qualquer lugar em qualquer dia. Um dia tava na frente dum teatro, em Porto Alegre, e a galera do skate fazia manobras em uma escultura.  Isso não acontece lá. Daí entrei nesse museu em Barcelona.  Prédio legal, contemporâneo e tal. Tava rolando um mostra de arte pop da antiga União Soviética. Pintura acho um saco. Escultura também. Olho, gosto. Só que se for pra gostar mesmo, prefiro performance e vídeo. Só que tinha uns vídeos lá. Uma banda dos 80 de som pesado, industrial. Os vídeos em VHS. Umas telas velhas no chão. Umas almofadas pra sentar. Você sentava na frente da tela, via os vídeos sem legendas. Muito massa o tipo de som, o visual. Os caras fardados. O som quase inaudível, muito barulho. Melhor, o vocal cantando como um ditador cantaria na frente de uma massa. O resto do som um barulho cortante. Depois apareciam imagens dos caras falando. Caras que eu teria medo de ter na minha frente. Pareciam prontos pra qualquer coisa. E não pra briga na rua... prontos pra uma revolução, ataques nucleares, prontos pra mortes em massa.

Cinema Strange

Viajo todo dia pra Novo Hamburgo de carro. Cidade que fica a cinquenta quilômetros de Porto Alegre.  Gosto de dirigir, é quando ouço um som. Não ouço em casa, só no carro e em festa. Notei um dia que já fazia um tempo que tava ouvindo só um disco duma banda. Uma banda bem estranha, Cinema Strange. Tão estranha que demorou um tempo pra eu conseguir ouvir ela de verdade. Eu sabia que a banda era boa. Faz parte dum segmento que me interessa: death rock. Um tipo de som gótico, meio puxado pro punk ou pro metal. Então, gostava do segmento, tinha lido sobre a banda, mas não conseguia ouvir. Já em vídeo descia melhor. A banda era muito estranha no visual: moicanos, roupas rasgadas e coloridas. Especial o vocal: alto, magro, feio. Vestido com roupas de mulher. A cara com pasta d’água e batom. Uma cara de palhaço assassino. Na real, queria ver um show deles. Ou talvez, dançar numa festa. Só que ouvir no carro, era muito pra mim. O som era difícil de ouvir. Barulhento, sem melodia, nervoso. Mais, a voz do vocal não tem referência com outros vocalistas. Aguda, não humana. De mulher, de criança? Isso é o que mais me chamou a atenção. Daí, uma hora, notei que tava ouvindo direto no carro. Ouvi muito. Um momento, comecei a ouvir só duas músicas. Fiquei dias ouvindo as duas músicas, melhor, semanas. Não conseguia parar de ouvir. Ouvi esse som enquanto escrevia esse texto. Uma dose de loucura sonora pra compor a loucura textual. Som sem controle (do Cinema Strange, esquisitão), fazendo a trilha duma literatura que tenta ser descontrolada.  

Carta de suicídio

A carta do Kurt Cobain. Parece que não tem muitas cartas do tipo publicadas na internet.  Sei também que no jornalismo não se fala sobre suicídio. Acreditam que suicídio é um lance da classe média. Mostrar pra classe média, os leitores, que os seus se suicidam, não vende. Na real, assusta. Queria ver o que era dito na carta do Kurt, fiquei curioso. Falam muito sobre essas cartas; que as pessoas escrevem cartas antes de morrer. Não sei se funciona. Me parece que servem pro cara se desculpar pelo ato; pra criar responsáveis; se fazer de vítima. Acho o suicídio algo interessante. Só se for feito em um momento legal. Um daqueles momentos que a gente tá bem. Daí tomar a decisão, sem dor, mas com alegria. Acho que o grande fora do Kurt foi ter se matado na idade da morte de Morrison, Hendrix e tantos outros. Gente que se imortalizou por ter morrido com 27. Queria virar mito. E mito da cultura pop. O filme sobre Kurt do Gus Van Sant é ótimo. Mostra um Kurt acabado, fechado em um mundo próprio. Ele nem fala. Não se comunica. Só que também não sofre. Ele toca som. Faz um som ótimo de bateria. Só que nunca demonstra desespero. Só uma cabeça que parece que tá em outra. Do tipo: que se foda o mundo. E de repente a solução do foda-se foi a morte. Cair fora. Um lance hippie. Meio careta. Cair fora do mundo. Abaixo trechos da carta.

 
 [...] Há muitos anos eu não venho sentindo excitação ao ouvir ou fazer música, bem como ler e escrever. Minha culpa por isso é indescritível em palavras. [...]

[...] O pior crime que posso imaginar seria enganar as pessoas sendo falso e fingindo que estou me divertindo 100 por cento.  [...]

[...] Existe o bom em todos nós e acho que eu simplesmente amo as pessoas demais, tanto que chego a me sentir mal. [...] Tenho uma esposa que é uma deusa, que transpira ambição e empatia, e uma filha que me lembra demais como eu costumava ser, cheia de amor e alegria, beijando todo mundo que encontra porque todo mundo é bom e não vai fazer mal a ela. Isto me aterroriza a ponto de eu mal conseguir funcionar. Não posso suportar a idéia de Frances se tornando o triste, autodestrutivo e mórbido roqueiro que eu virei.

Acho que até aqui a carta tá legal, pensa o mundo de forma bem lúcida. Se ele escreveu logo antes de se dar um tiro, ele tava com a cabeça boa. Talvez porque sabia que a carta seria lida por muita gente.

Eu tive muito, muito mesmo, e sou grato por isso, mas desde os sete anos de idade passei a ter ódio de todos os humanos em geral. Apenas porque parece muito fácil se relacionar e ter empatia. Apenas porque eu amo e sinto demais por todas as pessoas, eu acho. Obrigado do fundo de meu nauseado estômago queimando por suas cartas e sua preocupação ao longo dos anos. Eu sou mesmo um bebê errático e triste! Não tenho mais paixão, então lembrem, é melhor queimar do que se apagar aos poucos. Paz, Amor, Empatia.

Já nessa parte, a final, o texto fica mais choroso. Lendo isso fiquei com um pouco de pena dele. E acho pena um sentimento muito feio. Também, fica claro que ele não tinha saída. Não tinha escolha. E não ter escolha é foda. Escolher morrer, acho um lance potente. Claro que a vida taí, deve ser enfrentada. Os caras na prisão não se matam, ou poucos se matam. Fumadores de crack continuam buscando alegrias. Os negros lutaram pelos seus direitos enquanto se fodiam. Os judeus enfrentaram os nazis. Todo mundo tá fodido, e bem fodido, mas a gente luta contra essa merda. Vamos lutar, não se matar. A revolução tá próxima. Kurt caiu fora da luta. Pra ele a luta tava perdida. Se os indignados do mundo todo, se eles caíssem nessa... bem, a gente ia estar engolindo a crise de graça. Os caras vão pra rua e são presos. Uns morrem. Só que fazem isso não pra se destruir, mas pela luta, pela vida.  


Sadomosaquismo   

Um filme sobre o Torquemada, inquisidor espanhol do século 14. O cara usava uma armadura com pregos apontados pra dentro, pro corpo. Queria ser cristo. Dormia com uma espada pendurada no teto, acima da cama. Podia cair e furar ele. Deus manda, mesmo que o Torquemada desse uma ajuda. O lance da dor cristã, um lance triste. Na terra você se fode, no céu é legal. No inferno você se fode, no céu... E por ai vai. Só que dá pra pensar em uma experimentação sadomasoquista e suicida dos religiosos. No senso comum, tudo gira em torno do pecado, danação de cristo, etc. Daí, deixam de lado a parte boa: curtir o corpo, a vida, em contato com a dor e a morte. Tirar a tristeza disso, a parte do pecado, da culpa, aí vira festa. Os góticos têm uma relação legal com o corpo, não extrema, mas têm. Fazem cortes no corpo, bebem sangue. Os playboys fazem algo parecido, o mesmo, só muda o conteúdo. Bem comum entre os mini machos apagar um cigarro no braço, cortar-se com uma lâmina. Eu já fiz isso, os adolescentes fazem, isso não é nada. Se o cara pratica esportes de contato ou radicais, o que é um corte? Uma queimadura de cigarro? A maior parte dos garotos, os que fazem esporte... bem, já quebraram ossos, se meteram em briga, etc. Então, um corte no braço? Fiz pontos nos dois joelhos várias vezes, quando andava de bike. Então, um corte que não dá pontos, não é nada. Até meio engraçado, tipo emos se cortando. Claro que eu não quebrei, digamos, meu tornozelo dez vezes de skate porque queria. E na real, a dor é bem suportável, até gostosa. Só que isso é diferente dum cara que se corta de propósito. Uma diferença muito pequena, mas diferente. Sangue, quem nunca cortou a língua? Ou de repente, cortou a pele em algum esporte e lambeu pra limpar. Sentiu gosto de sangue, só que isso é comum, é um esportista. O cara que se mutila ou bebe sangue de propósito, é algo próximo de um monstro: o sadomasoquista ou o vampiro. Um amigo cortou sem querer o peito: dez pontos. Só que um sem querer diferente. Queria cortar com uma faca só pra ver qual é. Só que foi afoito. O médico olhou pra ele com cara estranha: “putz, um corte reto bem no peito?”. Se cortou, ficou com medo ao ver a gordura. Daí parou e pensou. Abriu uma cerveja. Pegou uma camiseta. Fez um torniquete. Ficou na dele ouvindo um som. Uma hora depois, sentiu um desconforto; muito sangue. Foi pro hospital. Arrebentei a cara andando de skate. Não chorei, não era mais criança. Mas foi meio foda. Só que de noite tava tomando ceva com a cara arrebentada. Tinha que fazer pontos. Deixei assim. Rituais de iniciação entre machos. Roleta russa, algo parecido ao cigarro no braço. Daí é outra história. A pior sensação é ter uma arma apontada em sua direção. Foda. Mesmo se estiver sem balas, o cara pensa: porra, se tem uma bala ali...  Um cara, uma vez, fez a roleta na frente de uma turma. Pegou e apertou o gatilho. Quando apertou meio que tentou tirar a cabeça da mira. Se tivesse bala, teria atravessado o topo da cabeça. No fim, o dono da arma tinha só feito que tinha posto a bala.

Rock  

Tenho um conhecimento de rock. Não sou novo, então passei por vários estilos. Alguns mais marcantes: metaleiro hippie com 11; trash metal, funk-metal, grunge, tudo isso dos 14 até os 18; daí uma fase meio techno, mais pra dançar. Depois um lance meio gótico, quase Black Metal. Só que sempre ouvi de tudo, não tinha como não ouvir. Lia muito sobre. Gostava, acho, mais de ler. Lia coisas maravilhosas sobre o Velvet Underground. Só que era difícil de ouvir. O som bom começou a descer faz pouco. O que é bom ouço e gosto. E tem uns caras que dizem o que é bom, confio. Alguns críticos. Nunca li coisas mais acadêmicas sobre rock. Fico mais dentro da indústria cultural. Não só isso, se determinado tipo de gente ouve certo tipo de som, isso já indica algo. Se toca em certos lugares na noite; se toca em certas rádios...  bem, um problema. O som bom tá em outro lugar, ou em lugar nenhum. Melhor, pouquíssimos lugares. Claro que ninguém vai discutir a história. Pink Floyd, Doors, Zeppelin são historicamente importantes. Só que daí aparece uma gente meio medíocre que gosta; e cai bem a pergunta: sou também um? Todos somos. Ninguém é perfeito. Só que o som que poucos ouvem é algo importante. Som não recuperado. Som não interiorizado. Mas o que não foi interiorizado? Claro que Kurt Cobain nos picos da heroína. O cara se matando. O cara com o pau pra fora na TV. O cara errando no palco. E milhões de jovens viam e ouviam. Bem, isso é bom. Tem umas bandas que não ouço em nenhum lugar. Tô ouvindo elas agora. Só que não tô lendo coisas sobre música. Então não sei se são realmente coisas pra poucos, singulares. Dictators: uma das primeiras punks de Nova York. Um dos vocais se chama: “Manitoba (nome de uma região da américa do norte) do pau bonito”.  Outra banda, New York Dolls: punk glam, teve seu sucesso nos 70, mas não ouço em lugar nenhum. O empresário dos Pistols trampou com eles. As duas bandas apareceram num livro sobre punk lançado no Brasil: Please Kill Me. E a banda que mais ouço nos últimos anos, e mais, tô ouvindo direto um disco só: New Model Army. O som mistura pós-punk, metal, hard rock, punk. Uma daquelas bandas que não fazem parte duma cena. Som singular pacas. O vocal tem uma voz linda. O cara me chama muito a atenção. Tem essa voz meio rouca, meio suave, meio pesada, um tom massa. Só que o cara tem a cara toda arrebentada. Não é um desses bonitinhos. Por isso, o cara é foda.

Me dá 15 anos, saio correndo pros 30

Vivo em Porto Alegre. Estudo em outra cidade, faz uns anos. Em Porto Alegre não tenho saco pra usar bus. Entre Porto Alegre e outras cidades, pior. Claro que já andei muito de bus. Peguei metrô direto entre Porto Alegre e as cidades vizinhas. Qualquer hora do dia e da noite. Só que adolescente, não tinha muito a perder. Não que tenha muito agora, mas tenho mais. Entre 13 e 18 anos, a gente pegava bus e não pagava. Descia pela parte de trás. O cara da passagem liberava. Não tinha como não. Tipo um bus vazio na parte paga e cheio na parte do pessoal que tinha que pagar. Era a gente que ficava ali. Abria a porta e descia. Às vezes, dava problema. Pra mim nunca deu. Eu branco, só que tinha amigos negros que se davam mal. Uma época tinha uma turma que a gente atravessava a cidade a pé. Meninos e meninas. Tudo na boa. A gente não tinha nada pra fazer, não tinha grana, daí caminhava a tarde toda. Auge do corpo. Hoje caminho bastante, mas na esteira da academia. Ficava semanas comendo só cachorro quente e xis. Hoje, tenho que fazer todas as refeições. Melhor se feita por mim. Não choro a adolescência que se foi. Quero distancia dela. Me dá 15 anos que eu saio correndo... pros trinta. Só que penso, e se der merda. Se aparecer uma crise como na Europa. Essa adolescência aparece como possibilidade. A possibilidade de viver uma vida mais simples. Não mais simples, menos superficial. O carro é necessário realmente? Roupas caras? Coisas caras pra casa? Um ap bem equipado? Acho que dá pra viver bem com alguns panos, um rango barato, uma barraca... só que com um bom notebook, um bom smartphone e um bom tablet. Tudo com banda larga máxima. Tecnologia não dá pra por fora. O resto da vida é afeto que não se compra. Televisão e jornal não servem pra nada.  Livro e papel servem pra fazer fogueira. Claro que junto a isso, festa. Teatro e cinema também. O lance da barraca, dos caras das ocupações. Uma boa cama é importante pra quem é mais velho, será? Vi gente velha dormindo nas barracas nas acampadas. Na real, a gente já passou por merda. Todos fomos adolescentes. Retornar é pouco. A gente faz isso quando se sente mal. “Meu pai era um sacana. Eu era um sacana, etc.”.  Um saco. Legal, retornar o que vale a pena. E sempre retorna de forma diferente. E esses caras que acampam, os velhos. Velhice é cansaço? Velhice é impotência? Velhice é aceitação? A história nos diz isso. O senso comum. Só que um velho pode experimentar a juventude, é só querer. E na real, essas classificações de jovem e velho... isso é o pensamento do idiota. Mesmo o corpo a gente constrói.

 Filmes sobre a vida de viciado

Gosto do Drugstore Cowboy, do Gus Van Sant. Burroughs aparece nele. Um padre viciado em heroína. O filme muito inspirado na obra do Burroughs. Heroína, viagens de carro, assaltos, curas de dependência. Van Sant em alguns filmes é meio Burroughs. Tipo o My own Private Idaho. Alucinações, viagens pela américa de carona,tráfico,viadagem. Não muita droga. O centro do filme é a vida de michê. Nos dois filmes aparecem delírios parecidos. Um pouco de surrealismo. Também nos dois, os atores são os queridinhos dos states... bem, Van Sant coloca eles literalmente de quatro. Sid e Nancy é bom também por isso. O Gary Oldman, o astro do Drácula, faz o papel dum Sid esquelético da heroína. Bird, filme sobre o saxofonista Charlie Parker. Acho que comecei a ouvir jazz pelo filme. Filme triste, mas bom registro. Parker era novo, teve sua overdose fatal, daí o legista vê o corpo e pergunta: o cara tem 70 anos? Uma outra parte legal, o pupilo do Parker diz: “entrei na heroína porque queria ser você. Quero oferecer um pico.” Parker diz: “ cara isso não ajuda em nada na música”. O pupilo: “eu sei”.   


Coisinhas

Daí tinha essa mina. Legal. Perfeita no momento. Até certo momento. Depois desapareceu. Como devia. Fez bem. Pra mim. Pra ela. Só que ela levou algo. Bom que continua com ela. Saco quando retorna. Acho que eram uns lances pessoais. Roupas da minha infância. Ou brinquedos. Coisinhas. Dei pra ela. Disse: “tudo que é meu agora é seu”. Era novo. Tinha 15, ela um pouco mais. Queria dar tudo pra ela. Um pouco de nada, na real. Só que às vezes, penso nessas coisas. Vou precisar na velhice? Quando não sobrar nem memória. Eram coisinhas legais. Tipo um pedaço do meu edredom. Um pedaço de mim. Dormi muito tempo com ele. E agora tá em qual lugar? Sempre tanto faz. Só que em certos momentos aparece como falta. Um pedaço de mim. Pedaços de mim. Pensar nisso já é pequeno. Escrever mais ainda. E quando motiva a escrita, pior. Melhor fazer outra coisa. Só que sonhei com isso. E isso ficou em algum lugar. Até o som do meu pensamento parece piegas agora. Melhor parar

Manos da antiga

Tava na baia. Com a mina. Tava curtindo ela. Como sempre. Mina quente demais. E tudo mais. Daí toca o telefone. Atendo. E um cara diz: e aí mano, sou teu mano da antiga, voltei de viagem, tô na banda. Daí fico todo assim: e aí mano, na boa, bom ter ligado e tal. A mina ficou meio puta. Fiquei uma hora no telefone com o mano. Ela queria atenção. Daí eu e o mano, a gente se encontra. Muito massa e tal. Não via o cara uns 10 anos. O cara tinha caído pra Europa. Ele chega e diz: cara você tá igual e tal. Sem essa de que nada mudou. O cara falava que eu tava igual, na nossa amizade. Manos e tal. Na época que a gente se curtia... bem, a gente era adolescente. Caretas. Mas rockeiros. Só que bem caretas. Daí o mano pinta malucão. Só quer saber de pó e putaria. E eu já tinha passado por essa. Tava com minha mina. Só que num ia deixar o mano pra trás. O cara era meu mano e tal. Fiz a noite com ele. Uma merda. O cara só queria pó e putaria. Só queria pirar a cabeça. Encarei a noite. Tudo roubada. Uma merda. O cara só queimava o filme. Dentro do possível. Só que ele queria uma história que não era mais a minha. Um lance que a gente não passou juntos. Fui pra casa; puto pacas. Muita doideira. Eu queria curtir minha mina e só. Daí meti o mano na lista negra. O cara ainda pintou outra hora na baia; o cara tava doidaço. Tive que queimar ele e tal. Mas quando a gente passou a noite juntos, ele me falou da vida dele. Umas coisas legais. O pai do cara era um grande empresário. Rico pacas. Daí disse pro meu mano: faça medicina. Ele fez. Daí quando acabou, o velho disse: faça direito. Ele entrou na faculdade de direito. O cara não era um grande estudante, mas fez tudo certinho. Daí acabou o curso. O pai disse: agora cuida dos negócios da família. Mandou ele pra uma cidade grande e tal. Deu um ap legal. Um carro legal. Uma grana. Nada demais pra quem era um grande empresário. Ele tava nessa quando a gente se reencontrou. Só que um pouco antes, ele meio que surtou. Começou a cheirar pra caralho. Beber direto. Tinha grana pra fazer a mão e pegar vadias. Pra ele tava bom. Virava a noite sempre. Com pó e puta. Depois ia pro trampo. Daí um dia tinha cheirado pra caralho. Tinha bebido. Não tinha mais puta na rua. Pegou a caranga. Se foi pro interior. Doidaço. Uma caixa de ceva no banco do carona. Umas parangas de pó. No interior não tinha controle de velocidade. Então tava dando pau. Tava meio maluco. 100 por hora. Passava os carros. Tava trincado. Começou ficar meio puto. Depois pensou: “se passar mané na minha frente atropelo. Ia ser legal matar um cara hoje”. O cara tava com o demo no corpo. Queria acabar com a vida de alguém. Uma hora foi pegar uma ceva; não olhou pra frente; bateu num carro velho. Quase se fudeu. Desceu do carro. O carro tava legal. Só que o carro velho tava meio que fodido. Desceu dele um cara duns cinquenta; chinelo de dedo, calção. O sol já tinha nascido. O cara desce atucanado. Olhou meu mano. Vê um garotão doidão e parte pra cima: “seu filho da puta. Você quase me matou. Olha o carro, porra.” O meu mano todo mal. Tinha bira no carro. Tinha paranga no bolso. Tava na ruim pacas. O cara chega e diz: “sou cana, você tá fodido, vou falar com seu pai, você vai cair”. O mano fica branco. Não tava com medo de cana. O pai ia encarar a mão. Tava com medo do pai. O velho ia ferrar ele. O cara do carro que meu mano bateu diz: “me dá cinco mil pelo carro e pelos danos morais, senão você vai se fuder. Vou falar com seu pai.” O mano pega o cheque. Faz a mão. Dias depois a grana entra. Cinco mil não era nada. Era festa de um mês. E tinha um monte de mês sobrando. O lance era não se queimar com o pai. Daí, tempo depois, tava fazendo festa. Tinha cheirado e tudo de novo; lembrou do cara da batida:  “filho da puta. Sacou que eu tava doido. Sacou que eu era filho de papai. Passou a perna em mim. Merda de pó, tinha me deixou cagado. Vou cheirar mais, vou pro interior e vou pegar aquele cara.”

Detonação em Porto Alegre

Moro então em Porto Alegre. Merda de cidade do sul do Brasil. Cidade de merda. Nada pra fazer. Tinha o que fazer quando eu topava todas. Hoje, merda, tô noutras. Só que bem... olha só. Saí com uma amiga na segunda de noite. A gente foi nuns picos. A gente queria conversar. A gente não tinha trampo na terça. Daí a gente queria ficar na nossa, mas na rua. Daí o que fazer? Não tinha quase nada aberto. A gente foi nuns postos. Eu tava dirigindo. Daí a gente tava numas de café. Muito café, cigarro. Rango a gente tava pensando pra mais tarde. Uma hora a gente sacou que já tinha encarado todos os postos legais. Daí a gente foi pro aeroporto. Mais café e conversa. Daí a gente saiu de lá às 2 horas da madruga. Só que queria ainda dar mais banda. Daí não tinha realmente mais nada pra fazer. E a gente foi pro ap dela. Beleza. Só que depois das 11 da noite notei que, em alguns lugares, bem poucos, tinha gente. Lugares que eu não queria estar. Daí tinha gente nesses lugares. E essa gente tava bebendo. Era segunda-feira. Era quase madruga. E os manos bebendo ali na Cidade Baixa. Daí me lembrei de uns anos antes na segunda, quando eu quebrava todas; quando curtia todas. E segunda era só mais um dia. Mais importante quando era continuação de domingo. Não mano, era continuação de sábado. Mano, podia ser continuação de sexta. Ou de sete dias atrás. E bem... então, segunda, noite. Nada pra fazer. Pior dia da semana. Tudo fechado.  Só que é noite e o cara tá a fim de festa. E depois da meia noite, o cara tá bêbado e cheirado. Daí vai pra cima e pra baixo. Procura lugar com gente. Sempre encontra, mesmo os lugares sendo boca braba. Só que uma hora não tem mais ninguém. Daí o cara tá num carro com mais três caras. Um amigo e dois caras que você não sabe como tão ali no carro. Todos tão ligados. Têm ceva. Pó na mão. E querem ver outras pessoas. Melhor, querem ver mulher. Daí o que faz? Acho que por isso que vários puteiros ficam abertos de noite toda todos os dias. As putas são gente legal, topam todas. Tão ali pra fazer o serviço. E assim mano, na real elas são legal. São gente como a gente. Só tão na ruim. Só tão a fim de fazer a mão delas. Então... bem mano, daí nasceu o sol. O carro é metade puta, metade uns caras que comem puta sem preservativo. Eles vão num posto. Eles baixam ceva. Eles se revezam no estacionamento. Fodem feito louco. Todos eles têm namoradas. Todos têm emprego. Eles tão na faculdade. E que se foda tudo. Que se foda os dias da semana e os professores. A futura esposa. O patrão. O superego. Que se foda o sol. Que se foda os neurônios. Que se foda.  

Piñero, o filme  

Puta filme. Dos poucos que valem a pena sobre artistas malditos. Piñero migrou de Porto Rico pros EUA. Migrante, então o cara naturalmente já era marginal.  Também curtia, desde novo, rapazes e drogas. Cresceu na onda. Se meteu com teatro e literatura. Foi pra prisão. Tudo de bom pra formar o personagem: latino nos EUA, drogado e homossexual. Além de tudo o cara era bom. Bom pra caralho. Fazia poesia marginal misturada com performance. E o cara tinha uma pegada legal. Se meteu com heroína e morreu de cirrose. Rendeu uma boa biografia, e um filme bom.  






As vilas de Porto Alegre

Uns merdas de garotos. Hoje médicos, economistas, comunicadores, e tal. Um ou outro fodido. Mas poucos. Os caras tinham quinze anos. E nada na cabeça. Eram caras da classe média que tinham levado bomba em colégio particular. Daí os velhos colocaram eles em colégio público. No público, os colegas todos pobres.  Daí os classe média se reuniram e formaram a gangue dos playboys. Diferente dos outros, eles tinham mesada. E mesada gorda. Tinham cigarro caro que pegavam dos pais. E todo o resto, roupas, bons presentes. Bem, só que caíram em outra real. Começaram a fazer amizade com os caras mais pobres. Uns caras de vila, marginais. Interessante como as vilas e bairros ricos se misturam em Porto Alegre, bem Brasil.  Por isso, essa mistura nos colégios públicos. É cara, um dos bairros mais chiques de Porto Alegre, tipo Assunção, só com casas de milionários... Olha só, casa residencial e riqueza, um lance raro hoje em dia. Cara, essas casas tão do lado de um monte de favelas. Favela da Guaíba. Antes tinha uma mais abaixo que virou shopping pra rico. Mais acima, favela Conceição. Mais pro lado, tem a Funil e, uns dez anos atrás, tinha uma vilinha, a Vagão. E pertinho tem uma das maiores, a Cruzeiro do Sul. Da parte alta da Assunção (olha que massa, o nome do bairro é Vila Assunção, vila de rico)... da parte alta dá pra ver a Cruzeiro. E mais legal, no coração desse bairro de ricos tem um colégio público, que mistura os ricos caídos com os pobres. Voltando, pra história. E cara... os riquinhos entram no colégio levando soco; só que no ano seguinte tão dando soco junto com os manos pobres. Entraram na turma. Daí os riquinhos meio que viram a casaca. O cara tem grana no bolso, mas porra, não vai comprar comida no super. O cara compra e vai ser roubado. Daí o cara riquinho rouba também. Vai pagar bus? Os manos vão sacar que tá com grana, melhor descer por trás. E por aí vai. Daí os caras crescem juntos. Aos poucos, frequentam as casas. Aparecem amizades que meio que se fortalecem. Daí vira merda. Vira merda já que muitos dos manos pobres já tavam marcados pra fazer merda na vida adulta. E certos manos riquinhos acham essa uma vida legal. Melhor, usam os manos pobres como trafi, receptor, e tudo mais. 





As porradas dos ricos e as dos pobres

As pessoas olham os adolescentes de alguma subcultura e ficam com medo. Tipo, Punks, Góticos, Metaleiros; garotada com suas tatuagens, piercings. Dói pra fazer tatuagem. Eu tenho tatoos e não faço mais, dói. Mas eles não só rasgam a pele pra pintar ela. Também os caras tomam bira barata. Tomam cachaça pura. Cheiram umas merdas de solvente. Ficam dias sem dormir. Parecem caras corajosos. Fodas. Acho que o medo passa por aí: esses loucos podem fazer alguma loucura. Só que não fazem. Ou fazem pouco. Pega esses playboys. Os caras só fazem merda. São os filhos que visualmente toda mãe queria ter. Escondem bem o jogo. Ninguém muda de calçada quando passa um playboy. Só que eles sempre fizeram esporte. Têm grana pra pagar artes marciais. Têm grana pra fazer uma alimentação pra ficarem fortes. E são jovens com nada na cabeça também. Moro do lado de um estádio de futebol. Quando tem jogo, passam esses playboys. Volta e meia dá merda. Outro dia os boys tavam jogando garrafas de ceva na torcida adversária. Num outro dia, eu tava saindo dum restaurante. Daí um guardador de carro fala com uns caras que tavam tomando ceva junto do carro. Carro do ano. Uns playboys. Os caras não gostam. Então um deles saca uma arma. Corre na direção do guardador. O cara assustado. O play dá uma coronhada no cara. As gangues de nazi tem um monte de boy. Na polícia tem os boyzinhos querendo ser Bruce Willis. Daí ter medo duns punks? Uns caras que pedem grana na rua. Uns caras que comem qualquer coisa pra ficar de pé. Só que tem outros jovens. Esses meio que superam os boys. Acho que os boys têm medo deles. De certa forma, já que o guardador de carro faz parte desse tipo. São aqueles que cresceram na ruim. Sem grana. No morro. Levando porrada direto, do pai, dos vizinhos, da polícia. Esses são fodas. Em parte são do crime. Os que não são... bem mano, mesmo assim, eu não quero encontrar na minha frente. Eu como boyzinho que faz academia. Saca? Tava num festival de música em Poa. Acho que era o Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Tocou uma banda punk. Eu e os punks, a gente tava dançando na pista. Só homens. A dança se chama pogo. Forma uma roda. E todo mundo fica se empurrando de um jeito violento. Às vezes, dá merda. Nem sempre. Daí muda de banda. Entra uma banda meio rock só que pros black. Eles formam a roda. Dançam como no pogo. Fiquei na roda por um minuto. A coisa tinha mudado. Os caras tavam se batendo de verdade. E todos eles eram muito mais duros que os punks. Corpo de madeira. Mesmo uns caras magros.

    

Dois jovens de merda. 15 anos. Playboys do mal, mas do tipo aprendiz. Eles vão pro colégio de manhã. Papai leva eles no colégio. Toda noite antes de irem pro colégio... bem, eles sobem o morro. Pegam duas parangas de pó. O mais viciadinho diz pro outro: mano, você fica com o pó, se você deixar comigo vou acabar cheirando. Daí de manhã, os dois são largados no centro da cidade, no lugar que estudam. Eles entram em qualquer edifício. Vão pras escadas de incêndio. Ninguém passa por lá. Tiram um prato da pasta. Prato, gilete, canudo. Metem o pó no prato. Com a gilete quebram as pedras que viram poeira. Com o canudo dão as cafungadas. Daí eles saem do prédio e vão pra aula. Quando chegam, eles sentem o barato. Como são novos (tão começando na vida), o barato dura até o intervalo. E tudo bem. Só que passa um tempo. Eles na mesma rotina. Tipo dois meses. E a coisa muda. Eles começam a cheirar no banheiro no colégio. Sacam que não tem problema. Até os caras que fazem segurança, ajudam.  Daí começam a dobrar a quantidade. Saem da aula pra dar umas cafungadas. No fim, nem vão mais a aula, só cheiram. Um outro mano meu, o cara tinha no banheiro do colégio: prato, gilette e canudo. Ficava guardado na divisória dos box. Outros cheiravam dentro da sala de aula mesmo.

 Ladrões

Traficante sempre foi uma coisa mais aceitável. Isso entre os caras da minha turma. Claro que traficantes pequenos. Caras que vendem mais pros parceiros. E quando o cara se droga, conhece muita gente. Fácil de vender. Dá pra fazer grana só com os chegados. E a grana que se faz é pra poder manter o uso. Tô pensando mais na classe média. Caras que têm grana dos pais. Só que a grana dos pais não dá pras drogas. Daí o cara tá fazendo tráfico, e nem pensa se é tráfico. Só que uns caras faziam pequenos furtos de equipamentos eletrônicos. Invadiam casas ou prédios; tipo uma escola. Ou som de carro. Não lembro de assaltarem alguém na rua. Muito barulho. Tava junto com uma turma, uns caras mais velhos. Eu tinha quinze. Pintou um cara com uma mina. Daí começaram a aparecer. Isso durante uma semana. O cara tinha grana. Baixava ceva direto. Depois me disseram que o cara era ladrão dos grandes. Tinha fugido do presídio Central. Roubava bancos. Eu nem aí. Tava mais preocupado se o cara ia baixar ceva. Bem, acho que a primeira coisa que roubei... acho que foi um lance num armazém. Um lance com tinta pra pixar muro. Outra vez tentei com um mano quebrar uns faroletes dum carro. A gente queria vender. Não sei pra que? Depois em colégio público... a gente roubava doces do super. Minha família tinha casa na praia. Todas as casas da rua eu entrei em baixa temporada. Roubava vinho, biras, nada demais. Tinha uma casa que eu e uma turma a gente entrava direto. O bar ficava exposto. Era só pular o muro. A gente pegava o suficiente pra ficar bêbado uma noite. Tipo três garrafas de vinho. Nunca deu problema. E na real, a gente tinha grana. Fazia mais por curtição. Uma vez eu entrei numa baia. Era casa dumas minas. Entrei no quarto delas. Cheirei as calcinhas. Tinha visto isso em filme de sessão da tarde. Merdinhas. Outra coisa, vandalismo. A gente saia na rua, e os manos pegavam pedras e quebravam os carros. Uma vez, um meteu uma pedra numa vitrine. Outro jogou uma pedra na janela duma casa. A gente saiu correndo, podia dar merda. Mas tudo bem. A gente não tava nem aí. Não parecia nada demais.

Iggy Pop  

Iggy Pop foi num show dos Doors. Gostou pacas da performance do Morrison. Dá pra notar isso em sua dança. Só que Pop deixou as coisas mais cruas. Bem, o cara tornou urbana a dança do Morrison, que era ritual. Um ritual de xamanismo, pagão, tudo isso misturado com ácido. E ácido, bem, nos anos 60 permitia o contato com algo divino. Além da vida. O lance do Iggy era punk. Acho que isso: um Morrison punk, do subúrbio, da heroína, do lixo da vida real. Heroína torna o cara um rato. Ácido deixa o cara, ou deixava numa de “vejo deus”, ou até de “sou deus”. E Morrison dizia isso: sou Dionísio, sou um xamã. Pop deixava bem claro: quero ser seu cachorro, nada mais que isso. Pop dava voltas no palco. Dançava quase no chão. Fazia coisas doidas com as mãos. Pulava. Tudo parecido com Morrison, só que diferente. Mais violento, menos dramático.

Falos & Stercos

Grupo teatral aqui de Porto Alegre. Os caras são uma versão júnior do La Fura dels Baus, grupo catalão de teatro industrial. Acho que a primeira vez que vi o pessoal do Falos, eu era bem novo. A encenação ainda era no palco italiano. Só que já tinha interação direta com o público. Gente da plateia subia no palco pra chicotear uma atriz de quatro. Quando o grupo já tava bem famoso, vi eles no hospital São Pedro. Hospital psiquiátrico que na ultima década dá espaço pra manifestações artísticas. Um lugar meio em ruínas, assustador. Acho que era uma encenação do Grito do Ginsberg. Dois caras de preto; couro preto, carecas. Eles estavam suspensos no vão de um jardim. Uns 5 metros do chão. A plateia embaixo. O som era demais, industrial. E os dois caras recitando poesias... e as poesias do Ginsberg não têm muito sentido. Só que cada frase... bem, elas não falam de florzinhas. A última vez que vi foi em um prédio que era um antigo estaleiro, na Usina do Gasômetro.  Me lembro melhor. O som mais heavy metal. O visual o mesmo. Só que tinha umas gatinhas de peito de fora. Sem fala. Só som e movimento no chão e suspensão. O contato com o público era direto, mas meio que organizado. Queria ver um pouco de violência. Dar umas porradas, tocar nos atores. Tava com a cabeça em algo punk. Tipo Iggy Pop descendo do palco e quebrando tudo. Vomitando na galera. Não rolou isso na peça. Acho que o Genesis P Orridge fez algo do tipo. Contato direto com o público. Festa, carnaval, putaria. Legal isso, tornar a coisa real. Propor pra plateia coisas novas. Numa festa tão a fim de drogas, dança, beijos, e sexo. Esse pode ser um bom passo inicial. Fazer a festa. Acho que o performer poderia até acentuar isso. Propor coisas novas. Li novo um lance sobre as primeiras festas clubber no Brasil. As pessoas se juntavam na pista de dança e se agarravam todos, sem distinção: bolo de carne. Mistura uns tapas. Coloca aí umas chicotadas. Uns cuspes. Um pouco mais de sadomasoquismo. O som certo. Bem, uma bela festa, carnaval punk.  Importante tornar o teatro o mais espontâneo possível. Como nas festas. Sem roteiro, sem definições. Modificações dependendo do clima. E violência, o que é violência? Um pouco de dor, não faz mal. Fazer a plateia sofrer, tirando ela do papel passivo. Saca? Uma vez pedi a uma garota um tapa. Ela deu. Daí disse, pô mina, bate que nem homem. Ele me deu no ouvido um belo tapa. Filha da puta. Fiquei com um zumbido por algumas horas. Só que ok. Nada demais. Vela no peito. Bem, deixa vermelho, dá uma alergiazinha, isso incomoda, mas pouco. Só que a sensação da vela caindo no peito é legal. Experimentar o corpo. Ver o que ele aguenta, e aguenta muito. Os caras se acidentam de carro. Vão pro hospital. Fazem pontos. Uma hora depois tão na estrada de novo.

Larry Clark

Acho que o cara tem dois grandes filmes (pelo menos lançados no Brasil): Kids e Ken Park. Outro, o Bully, é legal também, só que com uma “historinha” bem contada. Kids e Ken Park, eles não têm história. Só relatos. Tem uns personagens centrais. Só que não tem nada como uma história de vida. São jovens, classe média baixa, que curtem drogas e tudo mais. Acho que esses dois filmes me influenciaram em algumas coisas escritas aqui. Sexo, drogas e violência. Sem ingenuidade. Violência com mortes. Suicídio. Sexo sem proteção. Gente com dezesseis e HIV positivo. Muita bira, maconha, ácido e bala. Overdose. Daí dizem: porra, a vida de adulto que é foda. Trabalhar que é difícil. Acho que é fácil e demais. Tanto que todo mundo trabalha. Quero ver um cara adulto, que dá duro, aguentar o que os jovens fazem. Mesma coisa: chamar as prostitutas de mulheres de vida fácil. Porra, estar na madruga na rua. Depender de um filho da puta dum cafetão. Ser viciada. E isso é só uma parte. Elas entram no carro de qualquer um. E mesmo se o cara for bonzinho com elas... bem, vai tratar feito lixo. Se for do mal, pode matar ela. Era novo, tava na rua. Daí tinha uma mina na rua. Era puta. Pensei, vou dar uma carona pra ela. Mina legal. Disse que passava o dia fazendo nada. De noite, trampava.  Disse que chupava e engolia a porra, sem preservativo. Na hora senti cheiro de porra vindo da boca dela. Bem, disse pra ela descer. E isso vira história. Tem gente que gosta. Devem gostar; muitos que escrevem sobre isso são best sellers. Ou mesmo as biografias que vendem e muito de certos artistas. O pintor anão impressionista, Toulouse Lautrec e suas prostitutas. Kerouac escreveu um livro sobre uma puta, o Tristessa. Mesmo os michês de Burroughs. As muitas putas do Bukowski. Encarar todas é um lance meio prostituta; é um lance adolescente; é um lance de drogado. Tudo muito próximo. E rende boas histórias. As de final feliz, as pessoas já têm em novelas e filmes ruins. Uma hora vão querer algo diferente. Daí entra essa tradição. Eu morava perto dum pico de michês. Passava sempre ali, às vezes de madrugada. Um dia parei e conversei com os caras. Uns caras novos. Uns mais fortes. Outros magros. Conversaram comigo na boa. Não notei diferença entre eles e outros jovens. Outra vez, pequei uma puta e dei carona. Mina jovem, bonitinha. Levei ela até uma cidade próxima de Porto Alegre. Eu tinha uns vinte. Ela um pouco mais jovem. Era de manhã. A gente tava numa estrada cheia de carros. Meti meu pau pra fora. Ela ficou acariciando. Tudo muito na boa. Uma garota que eu tivesse ficado na noite... bem, não ia fazer isso no meio de uma estrada. E passava uns ônibus. Bem, rendeu uma história. Também, uma putas eu levava pro meu primeiro ap. Eu bem jovem. Sem nada na cabeça. Só que como eu disse, o jovem tem algo de prostituta: topar todas. Eu tratava elas como igual. Acho que elas não beijavam os caras, mas comigo tudo bem. Algumas vezes, eu nem precisei pagar. E bem... eu não era paternalista. Não era moralista. Só um cara jovem. Curtindo. Pegava gatinha na noite. Só que às vezes só pra curtir algo diferente. Hoje a adolescência distante... acho meio imoral e desnecessário pagar uma transa. Com meu corpo em risco, e com uma moral adulta meio consolidada... Claro que se tivesse grana pra comer uma dessas gostosas da TV. Isso seria diferente.   

Filmes japoneses 

Tava na internet, vadiando.  Vocês sabem, sem nada pra fazer, um link manda pra outro e tal. Chego num fórum. Ali tem um link, com a chamada: filme real de estupro. Lembrei que quando era jovem, tinha ouvido falar em filmes snuffs. Uma época tinha toda uma conversa sobre, em filmes, revistas, até em quadrinhos. Snuffs são filmes de mortes reais. Tinha algumas séries nos anos 90 de coisas parecidas. Os caras juntavam imagens de acidentes reais. Uma delas era a Faces da Morte. Era meio poser. O cara que apresentava era um cabeludo, metaleiro, com a voz meio gutural. No fundo das cenas som de bandas de metal extremo. Ok, daí, abri o link do “filme real de estupro”.  Bem, foi um erro. Me senti um lixo. Acho que as imagens eram reais mesmo. Não tinha como ser encenação. Porque envolvia uma garota duns 13 ou 14 anos, feinha, gordinha. O filme é japonês. Primeira imagem: um vestiário feminino, do que se diz ser de uma casa de massagem. Essas massagens normais. Uma câmera mostra o vestiário. Mulheres trocam de roupa. Colocam toalhas, já que vão pra massagem. Aí pula pra outra cena. Uma mulher de uns 40 anos e essa garota gordinha. Na legenda do filme diz: estupro de mãe e filha. Elas tão sendo massageadas por dois japas. Costas à mostra, toalhas tapando as partes íntimas. Uma hora, um dos caras começa a passar a mão na mulher mais velha. Eles conversam, só que é em japonês. Parece que ela meio que tenta se esquivar. A garota parece que não nota. Daí os dois tentam juntar as macas das duas. E daí começa uma discussão da mais velha com eles. Só que ela sempre meio passiva. Daí começa o hardcore. As duas são estupradas. Bem, é de deixar mal... só alguém com uma mente... bem, isso tá na internet. Daí busquei umas chamadas parecidas no google. E pelo que notei, deve ser uma prática comum no Japão. Achei umas imagens de várias jovens chorando nuas. Japoneses sorrindo e as estuprando. Sociedade machista que trata a mulher como lixo. Notei no primeiro filme que a mulher mais velha, meio que tava aceitando a situação. De repente, isso não era diferente da relação com o marido.   



 Monstros

Só que tem uma grande diferença entre os caras que praticam estupro no Japão e os jovens que fazem merda em todo mundo. A partir do senso comum dá pra dizer que são parecidos: são monstros. Só que são monstros diferentes. Os caras do Japão são parecidos com: Hitler, Mussolini, Pol Pot, os neonazi, as frentes nacionalistas, a TFP, os caras da direita cristã, Bush, os serial killers. Os jovens são monstros de outro tipo; eles agridem de outra forma a moral. Fazem tudo o que não se deve fazer. São ladrões, drogados, michês, prostitutas, e tudo mais. São tudo isso, ao mesmo tempo. Não são nada bem definido. Os caras mais velhos chamam eles de adolescentes. Como se isso explicasse tudo. Pais, os professores, os educadores, os psicólogos fazem de tudo pra entender eles. E não entendem. Monstros já que não podem ser rotulados nem detidos. Um serial killer é fácil de identificar; mas e os monstrinhos? Os pais, o professor, o psicólogo não sabem nada da vida deles. Eles sabem fazer merda no escuro. Não sei como; eles fazem muito barulho. E papai e mamãe são cegos. Os meus amigos escondiam colírio, drogas... só que chegavam pra lá de chapados e falavam com os pais. Isso que é a bandeira, não o colírio. E os pais não notavam. De repente, notavam... falava com um cara mais velho quando adolescente: é os velhos sabem, e sabem que a gente sabe que eles sabem, todo mundo sabe, e tá limpo. Será? Uma história de quadrinhos, do Jaime Martin. O cara é um dos bons cartunistas adultos underground da Espanha. Na história: o personagem principal, de uns 12 anos, chega muito chapado de tudo em casa. Entra correndo no banheiro e vomita. A mãe pergunta: o que você tem? Ele diz: tomei dois chopes. Pra vomitar o cara precisa duns 20 chopes. A cara dele tava acabada de muita coisa. Só que a mãe diz: filho, eu não quero mais que você beba chopes, faz mal. Jaime Martin é meio forçado. Suas histórias sempre têm finais tristes. Só que essa imagem é mais real impossível. Os velhos não entendem. Não sei como; porra, não passaram pelo mesmo, ou algo parecido? Foram jovens, não? Esqueceram? Ficaram cegos? Na real, não entendem. E na real, os monstros são aqueles que querem acabar com o mundo, só que pra construir um mundo melhor, os Occupy. É importante pensar na monstruosidade jovem; como ela se relaciona com a monstruosidade revolucionária; juntar as forças ou aprender, mesmo com as merdas dos jovens.   



Usos da cidade

Os filmes do Larry Clark sempre têm skatistas. Tem um filme ruim dele, com esse tema, o Wassup Rockers. É um bom filme, só que do Larry Clark, esperava mais. Parece que ele repete fórmulas. Imita a si mesmo. Coisas que deveriam ser naturais, como registros documentais de histórias de vida, nesse filme, soam mal. Só que o tema é legal: jovens rockeiros skatistas, norte americanos, filhos de imigrantes mexicanos. Os caras passam um dia curtindo a cidade. Curtindo a arquitetura da forma que um skatista pode curtir. Forma diferente. Os caras do skate, mais os caras do roller, bike, do le parkour, eles usam a cidade de um jeito diferente. Olha só: tem uma praça, o chão é liso. Na praça tem um banco e uma escadaria, como a Praça da Matriz, central em Porto Alegre. A praça das manifestações políticas na cidade. A praça que os Okupa de Porto Alegre tomaram por quatro meses. Essa praça é referência pra turma do skate, acho que desde fins dos 80. Nas praças as pessoas sentam nos bancos, sentam na escada, caminham no piso. Os skatistas pulam no banco, pulam a escada e correm no piso. Uma parede que não serve pra nada, vira um obstáculo. Eles sobem na parede vertical como se fosse o piso horizontal. Mais, daí tem os manos que fazem pichação, ou grafite. Eles pegam a parede e pintam. Tudo meio legal e meio ilegal. Pixar não pode. Andar de skate em certos lugares... o cara não é preso, mas se o pessoal reclamar pra polícia, eles tem que sair. Outra coisa legal: andar bem de skate não significa ser um atleta. O cara anda bem, tem um certo nome entre os manos. Só que esse cara não anda bem pra correr campeonatos. Só quer andar bem pra fazer suas manobras. Não tá nem aí pra competição. Os caras que não jogam nada futebol, basquete, e etc, os caras tão sempre competindo. Dois times. O que vale é vencer. O skatista faz a manobra; legal se a gatinha ou o mano verem, mas faz mais pra ele. O Marcelo D2 que dizia: puta sensação que é, dar um ollie (manobra básica com variações). Daí o cara passa a tarde numa calçada fazendo manobra. Ninguém vê, mas ele se sente bem. Não tem como jogar futebol sozinho, vôlei; basquete é um saco ficar treinando sozinho. Pratiquei esses esportes. Tudo feito num quadrado, às vezes, pequeno. No skate o que importa é cidade. A cidade é o território. Uma cidade que se usa de forma diferente. A praia do surfista é algo sem graça comparada com a cidade do skatista. Claro uma cidade grande, metropolitana, com bastante asfalto, chão liso. Dói mais cair no chão do que no gramado. Só que no basquete e futebol de salão, o cara não se machuca tanto quanto no skate. Pular uma escada de dez degraus. O cara vai cair certo. Uma hora nem mais dói. Fiz basquete e futebol por anos, me machuquei pouco. Acho que as machucadas de futebol foram propositais, como tostão, uma joelhada na coxa. De skate quebrei a perna uma dezena de vezes. Acabei com meu queixo. E parei exatamente quando começou a doer as quedas. Por isso, que nos filmes do Larry Clark, tem skate e violência misturados. São coisas próximas. Os maninhos do skate têm o corpo duro. De pedra. Por isso que tem a ligação com o rap, com o hip hop, com a pixação. Os caras são meio blacks. São fodas. Iggy Pop tava doidaço de heroína. Mal parava em pé. Todo mundo tava puto com ele: “pô, o Iggy só queima o filme”. Era a fase decadente. Foi descer uma escada. Caiu. Escada enorme. O pessoal disse: o cara morreu. Daí ele se levanta e continua caminhando. Isso é skate. Por isso, que o skate no Brasil nos 80 era coisa de punk. Skate é punk, é o pogo. Dançar na pista chutando todo mundo.  

Gatinha 1

Pô, gatinha. Hoje quando chamam você de gatinha, são esses merdinhas que tão a fim duma mina mais velha e gata. Só que pra eles, na real, gatinhas são aquelas que eu chamo de crianças. Você era mulher, onze, doze anos atrás. Daí eu tinha medo. Só que agora você é a gatinha. Gatinha, sou eu que envelheço. Eu que fico velho, você sempre mais gatinha. E você fica puta quando eu chamo essas menininhas de gatinhas. Mas entre nós é diferente. Você é mais velha, sempre foi... só que quando você sorri; quando seus peitinhos empinam; quando você fala; e você dança quando fala; e quando você caminha e rebola as coxinhas e  a bundinha. Mina, você é a gatinha, demais. É, você diz: mas você chama todas as vadias de gatinha, eu sou o que então? Você é essas coxas delicadas, mas fortes em mim. Essa boca que sabe muito bem o que quer. Daí fico aqui esperando, envelhecendo em uma madeira meio nobre. Só que a gente quer. Você quer. Eu quero. E a gente se encontra. Então, antes que a gente morra. Antes que ele volte. Ou que ele apareça. Ou antes que  a dança vire um bocejo. Antes que a gente vire o que não devemos. Seja minha gatinha. Vai deixar essas crianças terem o que seu? Meu corpo. Deixa assim, mas não comigo. Comigo não vai ser assim. As suas pernas viraram história. As minhas são mais fortes. Isso é bom pra nós. Sem complicação. No gelo você sabe muito bem se virar. Dança bem com o seu terninho de couro. Sabe muito. Só que quando você sorri e geme, meu bem, a gente tá jogando o mesmo jogo. É só deixar de imitar aquele tipo de gatinha. Você sabe mais. Posso tratar você daquele jeito. Você deixa, mas se sente mal. Então, vamos fazer direito. Como deve ser feito. A gente não vai casar. Não vai ter filhos. Vai curtir. E só. Fecha as pernas, meu bem. Mas fecha com o meu dentro. Me machuca que eu machuco, e isso é bom. Como você sabe fazer. E eu faço em você.   

Festa no centro  

Pegava metrô direto pras cidades vizinhas de Porto Alegre. Ia pra Canoas, Esteio, São Leopoldo, Novo Hamburgo, quando tinha entre 13 e 20. Muitos amigos viviam nessas cidades.  Um dia tava no metro. Tava voltando dum campeonato de skate. Era quase meia noite. Aparece um mano. Conhecia meio mal o cara. Só que a gente começou a conversar. O cara disse que tinha brigado com a mina. O cara era mais velho. Tinha brigado com a mina e tinha recebido a grana do trampo. Aproveitei a situação: mano, baixa uma ceva. A gente foi num bar bem no centro. Uma ceva virou umas dez das grandes. O mano tava bebendo feito água. Eu seguindo a onda. Eu morava na zona sul. Saía só nos picos rock de gente branca. Esse mano era negro. Daí ele disse: vamos num pico que tem som e umas gatinhas. Era também no centro, do lado do Mercado Público. O dia era um domingo. Eu disse, vamos, já que ele tava baixando a festa. O pico era só um salão com um bar. Nada demais. Só que o público era bem diferente do que eu tava acostumado. Metade brancos metade negros. E a aparência física das minas era... elas eram todas meio gordas.  O som que tava tocando era música regional. O pessoal dançava abraçado. O mano tava doido. Começou a pegar as minas. O cara pegou uma cinco em pouco tempo, umas feiosas. Daí meio que entrei na onda. Tava dançando com uma mina muito feia. Conversando com ela. Daí ela disse que no bar as minas eram todas prostitutas. Só que tavam ali curtindo a noite. Eu pensei: putz... as putas mais caídas da cidade. Daí o mano meio que se grudou numa feinha e ela nos convidou pra ir pra outro pico. No centrão, o mano encarou uns caras. Pediu pó. Os caras venderam. A gente deu uns tecos na rua. Quando dei a aspirada no lance... porra meu, deu um baque. Eu puxei o pó e cuspi. O cara tinha vendido uma merda. Fiquei com medo. O mano nem aí, continuou cheirando. Daí a gente foi pros bares da parte alta do centro, do lado da Santa Casa, um hospital. O som no pico, mais eletrônico, só que brega. Tinha um grupo de minas. Umas bonitas. Cheguei nelas, eram tudo lésbicas. Daí o mano apagou. Dormiu no bar. Eu peguei uma grana no bolso dele pra pagar o bus. Caí fora. Nunca mais vi o cara.   

Pobreza

Tava meio que namorando essa mina. Era bonitinha. Cabelo loiro, olhos verdes, pele meio bronzeada. Era gatinha. Ela era duma cidade do interior, da serra. Vinha pra Porto pra gente se pegar. A gente transava direto. Era bom. Bem, ela tinha a buceta meio larga. Mas tudo bem. A gente trepava e um dia eu tirei o preservativo. Gozei dentro. Na hora que gozei me deu pânico: tô fodido. Só que passou. E a gente transava na boa. Primeira transa nossa, a gente tava com uma turma. A gente chegou na casa dum parceiro. Todo mundo foi dormir. Ela disse que ia tomar um banho. Eu abri a porta. Ela tava tomando banho. Eu entrei. Tomei banho com ela. A gente foi pra cama. Foi legal. Daí ela pintava aqui em casa. Eu dizia que tava apaixonado. Só que tava apaixonado por outras também. E ela meio que deixava assim. Daí eu comecei a namorar outra mina. E a mina da serra desapareceu. Um dia eu tava numas... bem, queria festa. Queria dar uma corneadinha na namorada atual; daí liguei pra mina da serra. Fui pro interior ficar com ela. A gente tomou várias. A mina era boa de copo. Ela me convidou pra ficar na casa dela. Uma casa velha de madeira. Por dentro tudo em cacos. A mãe dela, a mina tinha me dito que era alcoólatra. Eu não sabia o significado da palavra. Dormi com ela num puxado atrás da casa. Acordei de madrugada. Fui tomar água. Vi que tinha na mesa da cozinha uma garrafa de um litro de cachaça cheia. Olhei e fiquei meio assim. De manhã, acordei com a mãe da mina mexendo na minha mochila. Pensei: qual é? Me levantei um pouco depois quando a mãe saiu. A mina ainda tava dormindo. Fui na cozinha e a garrafa de canha tava vazia. Foi a coisa mais extraordinária que já tinha visto. A velha matou a garrafa de canha na manhã mesmo.  

Traficantes

Era novo, tava começando a fumar um. Gostava do lance. Problema era conseguir. A gente não subia morro. Conhecia pouca gente que vendia. Daí um mano disse que um cara vendia fumo. A casa dele era bem perto da minha. Numa rua movimentada. Uma cerca de compensado na frente, guardando um terreno bem jogado, e uma casinha de madeira. Fui lá na cara dura. Atraquei o cara. Me vende um fumo ae! O cara ficou meio puto. Porra, um moleque queimando o filme. Só que o cara queria grana e vendeu. Comecei a ir com certa frequência. Só que uma hora ia direto, e fumava até de graça. O cara era alto e muito magro. Com barba. Tinha uns 35 anos. Só que bem envelhecido. A mina dele era acabada. Era loira, tinha olhos claros, já tinha sido bonita. Só que agora, a mina tava acabada, meio careca até. O cara tinha três filhos. Entre três e oito anos. Crianças bonitas, mas tudo bem magras. Uma era uma mina, duns cinco anos. A cara da mãe, bonitinha, um amor, mas esquelética. O cara não trampava. Ele vendia fumo e era viciado em pó na veia. Vivia ali no barraco de favor. Um dia cheguei na baia dele. Pedi fumo. O cara tava desesperado. Disse pra mim: “cara, não tem comida na baia faz uma cara. Tá todo mundo morrendo de fome aqui.” Olha só, eu tinha 14 anos. Não tinha nada na cabeça. Fiquei puto, não tinha fumo. E só. Podia ter ido em casa pegar umas latas de rango e ter dado pra eles. Só que peguei minha grana e fui buscar fumo em outro lugar.

 Demônio e revolução   

Um cara chegou uma vez e disse: cheirei pó e tudo ficou de cabeça pra baixo, o demônio tava me chamando. A fórmula de física, ou matemática, sei lá: deus vê tudo e o diabo vê tudo virado. Quando o cara tá louco dizem: tá com o demônio no corpo. O cara louco fica com a cabeça virada. O símbolo anticristo é a cruz virada. O nome do demo é o nome de deus virado: Dog - god. E revolução é isso. Quando tudo vira. Quando tudo muda. O carnaval é assim em alguns lugares. Troca de papéis como forma de resistência a partir do riso. Deus está em cima, os caras de cima mandam. O diabo está em baixo; os caras de baixo que lutam. A revolução é deles. Eles são os demônios pros capitalistas. São os demos pros caras que ovacionam a democracia. São os demos pra moral dominante. Por isso todos têm medo deles.  

Experimentação da marginalidade

Acho que é melhor falar na marginalidade como um todo. Não pensar só em coisas específicas. Tudo se liga. A prostituta se droga e rouba. O drogado faz michê e rouba. E por aí vai. Daí tem essas crianças. Eles têm entre 12 e 17 anos. São amparados pela lei. Os de classe média por papai. Daí eles fazem o que querem. Não vão ser presos. Eles não são drogados, michês, putas, ladrões profissionais. Só que eles fazem isso tudo, e parte por curtição. Depois ficam adultos e a coisa muda. A maioria não se torna viciado, muito menos ladrão e profissional do corpo. Pra mim, isso é uma das riquezas da juventude: experimentar a marginalidade, de um jeito espontâneo e sem paranoias. E mais importante: quando adultos, têm a possibilidade de experimentar algo que tava presente na adolescência. Não sendo marginal, mas algo ligado ao marginal, um marginal possível. Pode ser na escrita, na arte. Na relação com a esposa ou marido. Na relação com o filho. Na relação com os alunos. No trabalho, com o patrão ou empregado. Na vida, na relação com a vida. Pode ser até nos pensamentos. Manter o coração com o jovem, o marginal, não como um lance paternalista. Ser parceiro de sua própria adolescência.

Moda

Você encontra muitos adolescentes de classe média ligados a subculturas. Um lance legal dessas culturas é a relação com a moda. Cada estilo com suas roupas. Punks com roupas sujas, rasgadas e cheias de adereços e escritos. Metaleiro: calça preta e camiseta de banda. Góticos: coturno e o resto preto. Black metal é uma mistura de gótico com metaleiro. Hippies: calça jeans desbotada, camiseta colorida e all star; ou bermuda e sandália. Os mods com roupas vintage.  Indies de franginha. Interessante que eles não compram roupas em shopping pra compor o estilo. Até são contra roupas de marca, coisa de mauricinho. Os skatistas, surfistas, rappers, os clubbers, daí a coisa é diferente. Essas subculturas foram recuperadas pelo mercado. Usam roupas de marcas. Bem, mas fico com aqueles avessos ao shopping. Talvez esses estilos, tipo punk, metal, hippie, etc, sejam mais presentes em gente da classe média branca baixa. Só que têm muitos que são da classe média. Essa relação com estilo, modas, pra mim faz parte da experimentação da pobreza dos jovens. Roupa é um lance interessante. Depois da casa, do carro, vem as roupas como símbolo de status. Você anda com o carro mais caro, marca sua posição. Sai do carro, entra no shopping, daí as roupas dizem quem você é. Só que um cara pobre pode economizar a grana do mês e comprar roupas de uma outra classe. Pode fingir ser mais rico do que é. Tinha amigos de classe média baixa ou pobres quando novo. Eles trabalhavam como office boys. Eles se vestiam muito bem, usavam o salário pra isso. Outra coisa, os caras que não trabalham, mas assaltam, pra ter os panos da moda. Só que o interessante é essa gente da classe média das subculturas que se vestem com roupas baratas. Isso é importante pra eles. Um mano falou que numa cidade do interior quase todos os jovens da classe média eram hippies. Era uma cidade universitária. Usavam calças rasgadas e camisetas lisas. Um visual meio mendigo. Ele disse que a mãe dele pegou suas calças. Elas imundas. Ele tinha posto elas na qboa pra perder cor. O tecido ficou frágil. A calça toda rasgada. A mãe pegou pra usar como pano de chão. Ele a pegou de volta e continuou usando. Acho que esses tão mais perto da revolução. Bem pouco, mas tão mais perto do que os jovens que tão sempre no shopping.

Otimista quanto aos jovens?  

Parece que estou fazendo apologia ao lixo. Ou vendo só lados positivos. Todo o lixo da adolescência a gente conhece, e bem. Faz parte do discurso dominante. A gente vê isso na TV, lê sobre no jornal e em revistas. O lixo dominante são as nóias, as crises, os conflitos entre gerações, droga como culpa, sexo como culpa, e por aí vai. O lance que trato aqui é o adolescente fazer a experimentação sem virar um pária. E isso pode ser sem drogas. Só que pouco é possível pra eles. Sobre a vida adulta, trato na pesquisa acadêmica: política, filosofia, arte, campo do saber. Restou isso, os jovens.  Por isso, trato aqui. São prisioneiros. Pensam neles como se fossem idiotas. Não têm movimentos políticos pró-adolescência produzidos pelos adolescentes com demandas reais. Nem sei se precisa ter. Como minoria são representados por gente como pais, psicólogos, policiais, gente da saúde, políticos. A maioria dos marginalizados se representam a si mesmos. Já os jovens, tão perdidos por aí. Tentando fugir, com poucas armas, ou desarmados. Também só falo nos jovens de classe média. Melhor, falo mais neles. Isso à primeira vista. Falo não em classe, mas naquilo que atravessa as classes. Não importa as classes, mas a experimentação.      

Saló do Pasolini

Um grupo de adultos representantes do poder. São o poder. Eles raptam jovens do povo. Impõem a eles todo o tipo de perversão sexual. Tudo apresentado em ciclos: de merda, sangue, etc. Simulam um casamento de dois jovens. Na hora da consumação, curram os dois. Uma garota que tenta se matar é impedida. Após, vai sofrer as piores torturas. Uma linda gatinha é obrigada a comer fezes. Festa do poder. Eles fazem o que querem. Alguns jovens aceitam. Não podem fazer nada. Tão fodidos. Pra que lutar? Interessante que não há conflito. O poder é absoluto. Não há lugar pra fugir. O que resta é um pouco de união, de camaradagem, de parceria, que é sufocada. Só que mesmo entre os que são tratados como animais, os governados, há os X9s. Aqueles que amam sofrer o poder. O modelo perfeito do masoquista, melhor, do bom cidadão.  

La Edad de Oro e Genesis P Orridge

Programa dos anos 80 duma TV espanhola. Tem arquivos bem completos no site da emissora. Pacotes com os melhores programas. Na maior parte, é música. Shows e entrevistas com as melhores bandas dos 80 e 70. Nick Cave, Lords of New Church, Psychedelic Furs, Smiths, The Sound, Kiling Joke e por aí vai. Tem uma parte brega, com bandas dos 80 com um som que não vingou. Também apresenta documentários sobre artistas visuais e filmes curtos. O melhor pacote da série é o de número seis. Nele, de bandas: Psych Tv; vídeos: Derek Jarman; artistas visuais: Vagina Dentata, Mapplethorpe; performance: La Fura dels Baus. Este último, aparece no início da carreira. Hoje é um grande grupo de teatro. Veio ao Brasil algumas vezes. Eu vi uma peça deles em Barcelona. Uma peça secundária, em catalão. Achei chato. Muito texto. Muito drama. Não era o que queria ver. Só que valeu a pena. Derek Jarman é um cineasta inglês marginal. Trabalhou com vídeos também. Temática do sexo homossexual muito presente. Tem um filme sobre o pintor Caravaggio, com muito sexo. Vagina Dentata é uma performance do Jordi Walls, artista espanhol. No programa ele esfaqueia quadros que estão em uma parede. Um órgão faz sons estranhos. Cães estão presos em coleiras. Uivam. O melhor: Psych Tv. Som industrial, vídeos e a performance do Genesis P Orridge. O cara participou de vários grupos de pós-arte desde os 70. A banda antes era mais de performance. Na época tava centrada em música. O cara faz uma boa interação com o público. Depois que vi o programa busquei informação sobre ele. Tem um projeto de body art. Acho que pode ser chamado de arte existencial. Usa não só o corpo como campo de experimentação, mas também a existência. Fez várias cirurgias plásticas para deixar o corpo feminino. Veste roupas de mulher. Age como uma mulher. Na vidinha isso é comum. Os travestis e trans fazem isso. Tinha um trans no último big brother. Até bonito. Não que sejam incluídos. Só que não é tão marginal como era. Só que na arte, fazer isso na arte... isso é diferente.  




Sadomasoquismo

Os Acionistas de Viena filmavam imagens de mutilação do corpo. Um coletivo de pós-arte dos 70. Nada muito extremo. Queimar a glande do pênis e rir. Coisas do tipo.  Suspensão é um lance que fiquei sabendo nos anos 90. Implantam argolas no corpo. Prendem as argolas em correntes postas no teto. Daí o cara é suspenso. Pode ser na pele das costas, pernas, mas corre o risco de a romper. Algo mais raro. Quando fiz minhas primeiras tatuagens meus pais odiaram. Só que na época já era moda. Hoje mais que comum. Donas de casa com tatuagens. E quando donas de casa fazem algumas coisas, deve estar acontecendo outras mais interessantes. Tatuagem, piercing tão ligados à suspensão. São coisas da mesma onda. E o pessoal do S&M... bem, meio que precursor. Couro preto, correntes, coleiras, cortes, sangue, violência. Corpo como experimentação.    

Fuga pro oeste

Lembro da fórmula duns caras: numa guerra, se endurecem as coisas no leste e no oeste, ou no norte, a galera faz a festa no sul. Sempre dá pra fugir. Sempre se foge. Tem uns caras que não param de sair de clínicas de reabilitação. Não param de ser presos por porte de drogas. Acho que não adianta, o cara vai seguir resistindo, até a morte. Mais da metade de uma vida na cadeia, vale a pena. Claro que se o resto da vida tenha sido prazeroso. E prazer muitas vezes tá na marginalidade. O aluno naquele filminho dos anos 80, o Clube dos Cinco. Ele fala uma palavra pro diretor, como: dane-se. Cada vez que repete, ganha um dia de detenção. Só que ele continua falando: dane-se; e o diretor: mais uma detenção. Por alguns segundos de rebeldia, o cara dá um dia inteiro, um sábado, o dia mais importante da semana. A galera continua indo pra rua, e são presos. Nos movimentos por outra globalização, no início do século, tinha grupos que encaravam fazer coisas só para serem presos. Desviavam a atenção da polícia, cometendo atos ilícitos. Negri, o maior pensador contemporâneo, por uma postura ética, ele voltou pra Itália pra ser preso. Um gesto, uma atitude, por isso ele ficou 10 anos em cana. Fora todas as lutas contra as ditaduras. Os caras estavam preparados pra morrer. Ser preso e torturado era uma questão de tempo. Daí podem dizer: ah, eles queriam se foder. “O drogado quer alguém que o pare, o tranque.” Acho que ele faz de tudo pra ter aquele momento. O momento da resistência, seja qual for o preço. Fechar alguém, todas as saídas. Isso não existe.  

Sala de aula  

Uma coisa que me parece absurda, extrema: ficar duas horas sentado em uma aula de matemática do segundo grau ou primeiro. Melhor, ficar em uma sala de aula, a maior parte do tempo sentado, em qualquer matéria do primeiro ou segundo grau. E eles ficam durante dez anos nessa. No mestrado e doutorado a coisa é diferente. As disciplinas têm ligação com o que a gente estuda. Mas sou o que mais sai em sala de aula. Vou ao banheiro. Busco água. Fumo cigarros. Faço isso por um motivo: pra mim, aula não funciona. Dois extremos: colégio e pós-graduação, e ambos não funcionam. Sobre a graduação, todos entram felizes na universidade. Daí tão na maior boa vontade. E o lance é diferente mesmo do colégio, mais flexível. Você faz quase tudo o que quer. Dentro do possível. Sair da aula. Ir até o mato, até o bar. Entra a hora que quer. Tem professor que não faz chamada. Tudo mais leve. Só que e daí, tá todo mundo interessado? Como deixar todos interessados, melhor, a maioria. Impossível. Só que o pessoal da faculdade, esse são mais velhos. Esses tem autonomia, trabalham, pensam melhor. O pai não fica mais em cima. Ganharam privilégios. E os adolescentes? Esses que me preocupam. O colégio é mais rígido, o pai é mais rígido, só o Estado é menos, em parte. Eles não podem beber, fumar, entrar em festas. Claro que têm a tarde livre. Estudam menos que o cara da universidade. Só que com a cabecinha deles, vão fazer o que além de se detonar? Eles podem ler, podem participar do grêmio do colégio... e o que mais? Sobre a leitura, vai demorar um tempo até ficarem por dentro do que leem. E mesmo se escreverem algo, ou se fizerem política, eles são adolescentes. Ninguém tá aí. Aquele lance dos “caras pintadas”. Era um lance macropolítico. Não era sobre a escravidão dos adolescentes. Quando eles saem organizados pra rua é contra outra coisa. Só que a gente vê eles na Rua Lima e Silva, em Porto Alegre, nos domingos. Ficam na frente dum supermercado; tomam vinho barato. Todos se detonam. Os adultos odeiam quando eles fazem isso. Odeiam por qual motivo? Quando eles tão se detonando estão fazendo sua representação, lutando por um pouco de autonomia.




Gatinha 2

Não precisou de muito. Muito a gente já tinha. Só que a gente deixa rolar. Isso é bom. E fica rolando. Daí, uma hora pinta. Bom que pintou. Não que fosse a hora certa. Só que tava um clima legal. Daí, você mostrou seu corpo, que eu já conhecia. Me deu o que eu queria. Daí, muito bom o que você sabe fazer. E não foi o fim do mundo. Mas foi bastante. Bastante gostoso o que você sabe fazer. E sabe muito bem o que eu quero e gosto. E não é muito. Sem exageros. Sem muita história. Não estamos na frente do vídeo. Nem estamos competindo. Quem sai vencedor, é outra história. Ele e ela que se fodam; eles perdem. Só que quando rola, e tá rolando e vai continuar...  somos  nós e pode ser três ou quatro, depende do clima. Ou muitos, depende de nós.  E quando chamo você de gatinha ou baby... bem, baby gatinha, o lance é que você tem que saber que isso tá saindo da minha boca. E tô sempre numas de dar novos significados pras coisas. E meio que trabalho com palavras. Só que o mais importante é meu tronco forte, minhas pernas fortes. Tudo isso acho que tá em jogo. Você não precisa fazer muito. Já que a neurose parece que... você deixa em casa. E você sabe que isso faz com que eu saia correndo. E acho que... você quer que eu esteja perto. Então, baby gatinha, tô aqui. Tô por aí. Fácil me encontrar. Encontros dos bons. Sem exageros. Sem muita arte marcial verbal; já física, depende da lua. Bom quando a gente nem nota que tá subindo as paredes. Só vê isso depois, porque tá bom demais. Bom assim. E acho que isso vale mais que um diário de bordo. Aqui só umas palavras, pra lembrar o que tá rolando. Acho o surf um esporte legal. Rola uma onda, encaixa legal, depois flui na boa. Bom a quebradinha na espuma. A machucadinha na areia. Ralar um pouquinho os joelhos. Você queimadinha de sol, com a pele num bronze e não mais branquinha. 

 gatinha 3

Gatinha, sou todo teu pra sempre. Amo você gata, muito. E você é gata demais. Linda.  Toca aqui no meu peito. Olha só, bate por você bem forte. Ele tá forte por você. Muito forte e vivo só pra você. E só pra você; pra você pra sempre. E você sabe que é verdade. Pra sempre. Tipo hoje é sábado. Pra sempre, até terça. O meu coração forte pra sempre. Forte pra você pra sempre. Desde hoje pra sempre. Desde sábado até terça. E isso é muito. Você sabe, baby, é muito. É o máximo que se pode ter. O coração que pulsa forte. Pulsa muito. Só pra você gata. Sabe disso. A sua boca faz coisas maravilhosas. Sua saliva é um drink dos bons. E isso misturado com seu sorriso. Com seu cheiro. E não para por aí. Isso que importa... a forma como você dança. E como você dança. Você dança como ninguém. Tudo compondo um lance que me faz ficar muito apaixonado por você. Pra sempre, meu bem... até terça. E sei que estou sendo sincero demais. Eu estou sendo demais. É muito pra mim. O suficiente. Paixão total. E quando você dança seus olhos aparecem e desaparecem entre seus cabelos. E muita coisa que era pra ser importante, não é mais. Não quero saber sua idade. Nome não importa; você é a gatinha, minha deusa. Porque eu sei muito de você quando você fala, sorri, beija e dança. E como você dança gatinha. Dança que vai ficar muito bem guardada. Você vai ficar muito bem guardada. Lá em casa pra sempre. Eternamente. Até terça. Não quero ver você na ressaca do dia seguinte. Neurose não combina com a gente. E não precisa. Depois a gente pega outro sábado e faz tudo de novo. Mesmo que você, daí já seja outra. Mas vai ser tão bom quanto. As ondas batem. Cada uma diferente. Ainda mais se for um dia, uma festa, uma cidade, um país diferente. Tudo tão diferente. Só que tão bom quanto. Porque eu atravesso a cidade. Eu abro a porta. Só pra ver você dançar. Porque você é gata demais. E se isso não diz muito na boca de “gatinhos”... bem, eu não um gatinho. Nasci na selva. Devo ser filho de lobos. Algum felino ou canino selvagem. Então gatinha me lembra algo.... você sabe;  se  não sabe, deixa que eu mostro pra você.

Gatinhas  

Meu bem, eu posso ser o que você quiser, e não vou ser falso. Teatro não é falsidade. É uma coisa legal da vida. Tem gente que até paga pra ver um teatro. Faço pra você de graça. Não tá bom? Você quer uma peça especial pra você? Você quer aquele lance que tanto quer? Tanto assim?  Então, deixa assim.  Sei bem que o problema é que você não sabe o que quer. Daí vira qualquer coisa. Você sai correndo do meu ap pra me ver. Estranho, não? Depois ligo, você não atende. Pô baby, teatro é um lance, mas drama psicológico... Você menstruadinha? O lance baby, deixa que eu faço o que tem que ser feito. Eu faço a história. Deixa eu fazer uma história. Um pouco mais do que isso, já que o corpo tá envolvido. Deixa que eu armo tudo. Deixa eu guiar. E não estou sendo o macho que guia. O braço forte. Meu braço é forte, sim, naturalmente. Posso alcançar o céu com esses braços fortes. Então deixa, baby. Sem onda. Sem neurose. Eu sei o que você quer. Está aqui nas minhas mãos. Estou olhando agora de frente pro que você quer. Deixa de frescura. Não precisa me chamar de tio, mesmo eu conhecendo bem sua mãe. E mesmo que seu pai tenha medo de mim. E bem, meu bem. Deixa de ser... melhor, deixa que seja. Sem onda.

Gírias drogadas

Muitas gírias se referem a coisas ligadas a drogas, ao uso, ao usuário. Segue uma lista. Massa: uma coisa legal. Massa é a maconha da boa. Palha, uma coisa ruim. Palha é maconha fraca. Fraca como uma palha.  Na loucura, doido, são palavras dúbias. Podem se referir a um cara do tipo sem noção, um bobão, ou um cara legal que faz merdas que não sujam. Sujeira e limpeza: sujeira com os canas, com os pais, com os amigos. O cara que tá com o filme queimado. Limpeza, um cara tranquilo, um lance que pode ser feito sem problema. Nóia é um cara meio sujeira. Que viaja. Viagem: lance também bom e ruim. O cara é uma viagem, é uma figura, é massa. Ou é um viajão, o cara tá fora da casinha. Tipo o cara que pirou da bola. Na antiga, todo mundo falava de artane: uma bola, remédio, que levava o cara à loucura, uma sujeira. Da boa: maconha forte. Fazer a mão: comprar droga. Fazer algum lance, uma história. “Faz a mão então, busca as biras. Dá um jeito”. Frito: o cara que fritou do pó. A ressaca do pó. Que coisa: redução de coisa boa. Droga boa. “Essa é da boa”. Tá ligado: o cara é ligado, antenado. O cara que saca das coisas. Quem tá ligado curtiu uns estimulantes. Desligado, largado: o cara chapado de maconha. O cara que não tá nem aí pra nada. Furar a mão: o cara que não cumpre o que prometeu. “O cara disse que ia estar com o fumo tal hora e não apareceu”. Alto, alturas: o cara que tá podendo; tomou algo bom. Cai da boca: o cara que tá na boca de droga queimando o filme. Sai fora. Dá um tempo: o cara que larga as drogas pra fazer a cabeça careta. Cabeça feita: um cara ligado, dos bons. Careta: o que não se droga. Careteou. O cara que deixou de fazer a mão. Roubada: ser passado pra trás. O cara compra droga malhada. Melado: alguma combinação não realizada. Melou a história. Melado é o pó que fica no sol e vira uma pasta grudada. O cara só pode por embaixo da língua, depois frita. Se queimar, queimou. Queimar a cabeça: usar muita droga. Parece que a cabeça, os neurônios tão queimando. Ficar burro: usar maconha. Não é só uma coisa ruim. O cara fuma e fica burro, mas numa legal. Legal: inversão de ilegal. O cara faz um lance ilegal, se droga, mas pros drogados isso é legal. Ilegal pro Estado, legal pros manos. Mete a história: tipo: “faz a mão. Dá um jeito”. “Mete a história rápido, a droga rápido. A polícia pode chegar”. Ou os pais. Cortar: misturar droga. Coca com farinha. Cair a casa: dar tudo errado. Polícia atracando o barraco. Enquadrar: sacanear. Tirar. Ser preso pela polícia.  Onda: curtir uma onda, fazer onda. Onda da maconha. O cara viaja em alguma coisa. Fica uma hora divagando sobre algo mínimo. Meio nóia. Dar um brilho: fazer algo legal. O cara ligado de pó. Acabado: cansado, falido. O cara que tomou todas, tá acabado. Se acabar: fazer as coisas ao extremo. Fez demais.  

Akademia

Os caras da academia são bons; dizem que eles são os melhores. Na minha experiência... bem, os caras do mestrado não são os caras da graduação. Na graduação, eu conhecia uns caras que faziam pesquisa, e os caras eram muito inteligentes. Comparando comigo e com os outros. Os caras do doutorado, tão muito na frente dos caras do mestrado. Daí, tem os professores de PPG, esses são ídolos. Inteligência em PPG é o que não falta. Transborda. Só que bem, todo mundo sabe isso, e não vou ficar falando o que todo mundo sabe. Umas coisas me incomodam. Mestres agindo como bons alunos de graduação. Pela lógica, foram os melhores alunos, o problema é que às vezes eles esquecem que estão em outra situação. Permanecem assim os mesmos. Vão em todas as aulas; ficam sentados a aula toda; fazem todo trabalho pedido. Mais, leem religiosamente todos os textos. Fiz isso no mestrado. Tava numas de ser bom aluno. Um pouco antes já tava nessa. Só que na graduação, bem, eu era da turma do fundo. Não parava em aula. Muitas disciplinas, passei enrolando. Como já tinha uma leitura, era mais fácil de enrolar. Fiz jornalismo, e as disciplinas de escrita sempre me dei bem, rádio também, tirava notas altas. O resto, passava ali, era muito malandro. Tinha parado de fumar maconha, mas era mais legal sair com os manos pros matos da faculdade do que ficar em sala de aula. As aulas de teoria me davam vontade de vomitar. Como disse, fui pra outro caminho no mestrado. Só que agora, hoje, tô no meio. Só que um meio muito bem pensado. Um cara disse em aula com orgulho no doutorado: “fiz um curso de ciências políticas com 13 anos. Estudava muito no colégio.” Meio que fiz uma comparação: eu com essa idade comecei a fumar maconha direto. Meu pai queria me matar porque eu fugia do colégio pra andar de skate. Eu fazia colas imensas pra passar nas aulas de matemática. Meus amigos eram todos losers. E foi assim por um bom tempo. Claro que sempre dava uma parada nas drogas e daí dava uma de leitor. Lia boa literatura, um pouco de filosofia maldita. Só acho que mais importante foi minha caída na vida: drogas, putaria, rua, etc. Tudo que meu pai odiava em mim e não dava valor. Tudo que o cara que fez curso de política aos treze não fez. Ou se fez, não dá valor. De repente, traça a fuga da vida no porre de sexta, mas é o seu valium. Me graduei na vida adolescente. Não quero passar por isso de novo, não tenho corpo pra isso. Só que passando tudo, foi melhor assim. Passei coisas que poucos passaram, vi coisas que ninguém viu. Como diz a música dos Doors: atravessei pro outro lado. Minha riqueza da adolescência. Tudo aquilo que pais, psis, professores, policiais, gente mais velha, pais de amigos, tudo aquilo que eles queriam que eu não tivesse experimentado. Não basta fumar um, cheirar pó no fim de semana, tomar ácido de vez em quando. Isso muitos fazem. E se muitos fazem...  legal é fazer o que poucos fazem. Mas quem tá preparado pra se fuder? Pra quebrar a banca realmente?


Fumantes, minorias  

Tava tomando meu café com cigarro. Era noite. Tomo café até o meio da tarde normalmente, porque me deixa meio tenso se tomo de noite. Só que no final de semana me permito. O tempo rola de forma diferente. Daí tava nesse posto com meu café e meu cigarrinho. Tinha um rapaz do meu lado. Cara atleta, meio surfista. Me pediu fogo. Achei massa. Um cara atleta fumando. Outra coisa, ele foi super educado comigo. Sorriu quando passei o isqueiro. Daí tava logo depois dando uma banda e me veio um lance na cabeça. Tem relação com o método de pesquisa. Não quero trazer conceitos pra não deixar o texto pesado. Só que vou tentar expor a ideia. Uma pergunta, pesquisa é feita de perguntas: o cara fazer parte de uma minoria, tipo fumante, tá mais aberto a relações com outras minorias? Falei do sorriso do surfista quando passei o fogo. Achei algo legal, talvez um afeto diferente do dominante. Ele um cara forte, atleta, mas fumante. Seu sorriso tinha algo de feminino. Não tô falando de homossexualidade. Falo mais de uma relação diferente com os outros, pode ser com a vida. Uma relação minoritária.  No caso específico, uma relação de parceria que pode ter relação com uma afetividade feminina. Diferente do estilo jovem dominante aqui no sul: vamos quebrar todo mundo. Outro exemplo, um pai gaúcho que descobre que o filho é gay. Foi um desastre pra ele e pra família no início. Só que esse pai com o tempo aceitou. Isso deu uma nova sensibilidade nele, em relação ao filho, aos homossexuais. Uma relação nova com a arte também. Ficou também mais tolerante. Isso acontece de forma visível nos caras que ouvem rock. Não dá pra saber se o rock que mudou a vida do cara, ou se ele já tinha uma abertura. Só que o território do rock, que em certos casos diz respeito a minorias, como certas subculturas, envolve toda uma afetividade homossexual. Esta vista na dança, nos gestos, nas roupas, nas letras. Daí o menino usa roupas apertadas, dança de um jeito mais mole, fala de um jeito mais musical.  Quer ficar parecido com o ídolo. E de repente o ídolo é gay. E ele sabe e não se importa. Claro que o garoto odeia quando os amigos dizem que ela tá meio bichona. Ele é meio fascista, mas continua ouvindo o som, se vestindo de forma diferente e dançando.

Lutar pela “nossa” revolução

Não penso em voltar. Só que se tiver que voltar, tô pronto.  Perder tudo por uns quilinhos... não só pelo pó, mas perder tudo que tenho. Ir pra rua. Me queimar com todos que amo. Não quero isso. Mas é uma possibilidade. E se já passei por isso... bem, sei que é uma possibilidade. O próximo passo é a morte. E quando eu crescer morte não vai ser coisa ruim. Isso que falo. A gente tá preparado pra muita coisa. Importante mapear. E se a gente tiver que pegar em armas, cair na rua, na marginalidade, ser preso... acho que a gente tá pronto. Como dizem os punks gaúchos dos Replicantes: lutar pela revolução.

Fora da infância

Eu era novo, tinha uns 11 anos. Admirava a vida do meu irmão e dos manos dele. O cara era metaleiro. Comecei na idade comprar discos de metal. Deixei o cabelo crescer. E mais, comecei a imitar o jeito que eles falavam e andavam. Lembro de falar mais devagar, e caminhar com os ombros caídos... só que eu não sabia, mas tava imitando os caras chapados. O cara da maconha fala mole e o corpo fica mole, caem os ombros.  E assim, não era uma admiração com o cara mais velho, era uma vontade de cair fora... cair fora da infância. Era isso. Hoje meio que volto à adolescência, mas reconhecendo isso. O que me interessa: usar a potência adolescente na escrita. Uma postura também do tipo: que se foda. Não quero imitar, mas usar uma parte que conheço bem pra quebrar o texto acadêmico. Melhor, dar novos contornos.



Gatinhas 2

Você tá com medo como sempre. Repara em tudo que eu faço. Cada palavra, cada gesto. Tá esperando que role alguma merda. Que eu faça alguma merda. Que eu aponte uma arma. Que eu pegue você na força; amarre você na cama. E eu torne você um monstro como o monstro que eu sou pra você. Gatinhas têm medinho de monstrinhos. Leram muitos contos de fadas. Então, você sabe que eu não sou o príncipe. E isso é bom. Já economiza muita conversa. Mas eu não vou amarrar você na cama. Não vou tirar do armário meus apetrechos. Não vou dar a você uma bela noite de sadismo. Eu vou fazer pior. Tenha medo. Muito medo. Depois do que vai rolar as pessoas não vão mais respeitar você. Você não vai mais ter coragem de olhar na cara do seu pai. Nunca mais vai sentar no colo do vovô. Não vai mais poder dar selinho no seu irmão. Você vai ser um monstro. E gatinha, eu não estou brincando. Quem brinca aqui é você. Com seus medinhos. Com seu jeitinho de fada. Com sua educação. Com esse seu jeito de criança. E isso... bem, isso já era. Porque chegou a hora. Sou legião, você sabe. E você vacilou. Entrou na minha casa. Bebeu vinho comigo. Bebeu demais, aliás. E você me deixou beijar você. Você entrou na jogada. Agora a chave tá lá embaixo. Joguei pela janela. Não tem mais ninguém por perto. Ninguém vai ouvir você. E você pode rezar. E você pode até relaxar. Você pode me chamar de meu bem. Até dizer que me ama. Mas nada disso vai ajudar você. Porque a jogada agora é outra. Você ficou muito tempo fantasiando que eu era um monstro. E agora eu quero entrar na jogada. Vou entrou com a fantasia. Eu entro com meu corpo. Com minha vontade... de enlouquecer, você.   



Mano que fugiu da desintoxicação

Estava andando de carro pela cidade. De tarde. Estava na Cidade Baixa. Tava perto do viaduto da Borges. Passei rápido por dois caras, moradores de rua. Passei e não dei bola. Continuei dirigindo. Só que me veio na cabeça a imagem de um dos dois: era loiro, com cabelo comprido, meio de surfista. Ele tava abraçado num cobertor com um cara novo negro, esse bem com visual de morador de rua. Achei estranho. Continuei dirigindo. Passei pela Rua da República. Entrei na Lima e Silva. Estava fazendo meu trajeto de sempre. Tava passando pela Cidade Baixa, olhando as garotas nas ruas, nos bares. Acho o melhor lugar pra fazer isso, olhar as garotas. O lugar cheio dessas mulheres novas e lindas, gatinhas do sul. Segui a Lima e Silva. Atravessei a perimetral. Entrei numa ruazinha e cheguei no mesmo ponto que tinha visto o cara loiro com o morador de rua. Avistei ele de novo. Parei num semáforo e foquei a minha visão nele. Como disse: tinha cabelo de surfista comprido e tava enrolado num cobertor. Além disso, ele tava de chinelo havaiana com meia. O chinelo meio pequeno pros pés. Tava de jeans e camiseta. A camiseta tava meio curta nele. A barriga dele tava grande saindo da camiseta. Ele tinha uns 25 anos. Olhei pra cara dele, ele tava com um sorriso estranho. Olhos mareados, a boca meio puxada, sorriso de quem tava chapado. Então, ele tava com esse cobertor velho em volta do corpo. Tava frio. E tava acompanhado dum cara que era morador de rua mesmo. Saquei o cara loiro. Tinha certamente fugido de uma clinica de reabilitação. Tava na rua de novo e se chapando. Era óbvio que não era morador de rua, visual de classe média. A barriga grande era de quem tinha saído das ruas e tinha sido internado; o cara engorda um monte na clinica. Tava de chinelo, tinha trocado o tênis por droga. Fugiu da clinica e a primeira coisa que fez foi se chapar. Tava feliz, aliviado, já que deu um jeito de voltar pra pedra. Tava tão feliz por voltar pra vida, que pegou o primeiro cara na rua e abraçou ele como mano. Eram iguais agora. Ele não era mais o surfista classe média em recuperação, era agora o viciado de rua que faz qualquer coisa pela pedra. A vida da classe média, a vida média, na média, é um tormento. Trocar isso por nada; melhor, trocar tudo isso por alívio, por um barato constante e tudo que vem junto... acho que a escolha tem que ser pessoal.  

Curtindo as gatinhas na rua

Eu estava passando, e passou ela... só que ela passou muito rápido, não deu bola pra mim, e eu me fiz também, não dei bola pra ela. Deixei assim. Só vi que era bonita. Fiz minhas coisas. Subi umas escadas, comi minha janta, tomei meu café. Queria sair correndo pra fumar meu cigarro. Só que fiquei na fila pra pagar a conta. Ela apareceu de novo. E ela me olhou, de um jeito... e a gente ficou numas; nada direto; nada na cara. Só que a gente sabia que a gente tava ali, e que somos jovens e... então, eu estava atrás dela; a gente tava caminhando juntos no corredor. E ela estava na minha frente. E claro que eu estava olhando pra ela. Alta, bem alta. Cabelos claros, sem muita preocupação. Magra. Ombros largos. As costas bem escavadas. Fiquei nas costas, escavadas, com uma blusa meio aberta, não muito... mas dava pra ver as costas dela, com as asas de anjos bem excessivas. Mais abaixo uma lordose acentuada. Ela não tinha a bunda grande, mas era bonita pela lordose. Também notei que o porte dela era um pouco... a posição do tronco era um pouco irregular. Formava um tímido arco da cabeça até a bunda, atingindo um pouco as pernas. Linda demais. Deveria ser uma modelo, de passarela... dessas que com uma produção ficaria exótica e mais linda ainda. Estava descendo a escada, como dizia. E tentei não ficar com o olhar em cima. Sei ser discreto. Uma hora não sei se foi a luz que mudou, ou a forma que ela caminhou, mas consegui olhar pra abertura da blusa. Consegui ver melhor as costas dela. Uma visão meio raio x talvez. Mas vi que ela tinha da nuca até a bunda um traço na pele. Um traço fino, mas que pude notar. Era uma cicatriz fina, mas muito comprida. Uma cicatriz cirúrgica. Não era muito recente. Já tinha meio que se mesclado à pele, mas dava pra notar. Eu não estava em cima dela. Estava apenas olhando quando dava. Não queria constranger ela e a mim, nem as pessoas que estavam comigo e com ela. Apenas olhava como dava. Daí saquei: a cicatriz, o formato da coluna, o porte dela, as asas de anjo, a lordose, tudo isso que deixava ela linda, tudo isso era fruto de algum problema na coluna. Algo sério. Talvez uma má formação. Algo que ela tenha nascido. Ou de repente, um acidente, grave. E pensei: ela precisou passar por tudo isso pra ficar linda. Deve ter sofrido muito. Mas sem dramas, lembranças, e as neuras que isso pode trazer... mas sem a cicatriz ela não teria ficado tão linda.  Dois. Estava num bar fazendo minhas coisas. O que se faz em bares. Só que era cedo, era dia ainda. E as pessoas de dia são diferentes das pessoas da noite. Mas são as mesmas de certa forma. Estava esperando alguma coisa. Nada sério. Não muito. Aquilo que o dia pode dar. Luz demais, sol demais, sorrisos demais, gente saudável demais. Parecia um pouco de paraíso. Pouco mas, depois do dia vem a noite. Isso que importa. Tava sentado, atrás de um cardápio. Tava olhando pra ver o que ia pedir. Não queria muito. Queria me esconder do sol, e de tudo que vem junto. Então veio essas garotas. Elas vierem juntas. Falaram com a atendente. Pediram algo. Duas garotas acima do peso. Não me chamaram a atenção. Talvez mais tarde. Só que uma se juntou a elas. Veio do nada. De cara, vi que era muito bonita. Alta. Magra. Cabelos longos castanhos. Muito bonita. Foquei a visão nela. Não tinha como não focar. Não olhava diretamente. Mas ela me interessou. Não tinha como não.  Estava de vestido. Os pés com uma rasteirinha. Era alta, não precisava se preocupar com saltos. Algumas tatuagens, nos pés e nas costas. Ela sorria de leve, sem exageros. Era muito bonita. Uma hora pegou o celular. Mexeu nele. Eu estava num lado do bar e via mais seu perfil. Vi daí como segurava o aparelho. Com o braço esquerdo apoiava, com o direito, com as mãos do direito mandava uma mensagem. Ele não tinha o braço esquerdo. Não era talidomida. Era muito nova pra ter isso. Mas não tinha o braço esquerdo, apenas um toco com algo que se assemelhava a dedos. 

Ficar sem é horrível

Tem esses manos na rua, não são muitos. Em Porto Alegre a gente vê muitos meninos, um pessoal de vinte e poucos anos e uns caras velhos. Quem ataca os carros pedindo grana são as crianças e esse pessoal jovem. Dizem pra não dar grana pro pessoal que mora na rua. A gente ouve no rádio quando a gente tá parado no semáforo e o pessoal tá pedindo grana. Não deem grana, senão eles ficam na rua. Ficam aí vadiando, se drogando, bebendo, roubando. A gente tem que tirar esses caras da rua. Eles têm que viver como a gente vive. Eles têm que ter uma casa, oportunidade, carros, contas pra pagar. Têm que ser como nós. Como alguém pode ser de forma diferente? Nossa vida, a vida da casa, da família, do emprego. Na real, eles têm que ir pra periferia, viver mal e trabalhar para nós. Eles têm que se foder, mas ser fodidos por nós, não por eles mesmos. E a gente dá sopa, pão e sermões, a gente faz isso até que eles encontrem o bom caminho. Sempre vejo então eles, e quando dá, dou uma grana. Não gosto de dar grana pras crianças, prefiro dar grana pro pessoal de vinte e trinta anos. Acho que esses que tão fodidos. Esse pessoal, tá mais tempo afundado em muita coisa, principalmente drogas e álcool. Gosto de ajudar eles com grana ou com cigarros. Até já pensei em fazer um rancho com cigarros baratos e canha e distribuir pra algum grupo. Só que grana é melhor, daí fazem o que querem. Parece que todos eles tão afundados no vício. Então ajuda mesmo grana pra se drogarem. Álcool alimenta mais que comida. Quem se droga não pensa em comida. Penso que tão nessa não só porque não têm oportunidades. Acho que eles gostam também dessa vida. As duas coisas se misturam. E deixem os caras se drogar. Viver a deles. Levar outra vida. E isso é impensável pra familinha pequeno burguesa. Esses dizem: eles são uns vagabundos, têm que trabalhar. Se eu estivesse no lado deles; se eu fosse pobre e preto; se eu tivesse como possibilidade de vida apenas limpar merda de classe média; certamente, eu estaria na rua, me drogando, curtindo a cidade, me fodendo de outro jeito. Então, acho que eles tão certos. Melhor se fuder com muita droga na cabeça, não servindo a burguesia.

Os fodidos

Eles tão fodidos e bem fodidos. Já nasceram fodidos. Daí resolveram dar uma amenizada na fodeção. Se é tudo é foda que se foda! Que se foda a cabeça. Que se foda o corpo. Que se foda a rotina, o trabalho, a escravidão. Que se foda tudo. Eles dizem: me dá só um barato que tá bom. O resto que se foda. Que eu me foda também; mas se eu tiver com o barato na mão, tá bom. Que eu me foda do meu jeito. Daí dizem: não! vocês não podem se foder da forma que você querem. Vocês têm que se foder da forma que a gente quer. Na real, não dizem, mas a gente sabe que eles tão dizendo isso, até quando respiram: sejam fodidos por nós! E tem uns outros caras; esses caras dizem: não, a gente não quer foder com vocês, mas a gente quer que vocês não se fodam. A gente quer que vocês caiam fora da rua. Deixem de ser fodidos. Mas não só isso, a gente não é que nem os outros, a gente quer que vocês não sejam fodidos por ninguém. Esses são os caras do bem. Os padres, os pensadores, a gente da esquerda, a gente do bem. Esses são aqueles que se orgulham de quem são. Se dizem contra toda essa merda. Só que esses não são muito diferentes dos sacanas que a gente saca de cara; porque eles dizem: vocês são uns coitados e a gente quer mudar a vida de vocês. A gente quer por vocês num mundo melhor. Um mundo que a gente está construindo. Um mundo pra vocês e pra nós... pra todos nós, pra gente viver feliz. Só que eles deixam bem claro que no mundo melhor não vai mais ter a rua; não vai mais ter a droga; não vai mais ter nem o que chamam de sofrimento. Na real, o mundo melhor não deixa de ser como o próprio mundo deles, o mundo que eles vivem – esse  pessoal humanitário, legal, que quer ajudar os desafortunados. Bom apenas se a gente vivesse e pensasse como eles. Vivesse a vidinha de classe média, e pensasse numa via que alguns chamam de esquerda. Pra esses a rua não é opção, a droga não é opção, se foder não é opção. Todo mundo é obrigado a ser feliz, como eles são.

 Ex-gatinha  

Conheci você na sua melhor fase. Posso dizer que eu fui a sua melhor fase. Deixei você linda, gostosa, poderosa. Tornei você a melhor foda da cidade. E não me diga que estou sendo egocêntrico; você sabe que é verdade. Por isso, esse corpinho que tá aí, agora tão longe de mim, continua sendo meu. E nem me venha dizer que eu fui a pior coisa da sua vida. Menina, veja bem: se sonhos são caros, pesadelos valem uma fortuna. E eu criei um pesadelo só pra você, pra nós, e bem, pra muitos. Você era tão inocente; tão infantil; tão chata; tão filhinha da mamãe. Uma putinha de merda que sacaneava todos os caras com os joguinhos de sempre. Metida, nojenta, mimada. Você não abria as pernas pra ninguém; só pros dedinhos na banheira antes do beijinho na testa da mamãe. Claro que você não se orgulhava de ser a purinha; mas você gostava de se manter purinha, só pra deixar os caras na mão. Batia umas punhetinhas pra eles de vez em quando só pra dar mais vontade. Deu uma chupadinha no namoradinho que deixou ele louco e... daí você se viu obrigada a dar. Você sabia que tinha que dar, senão a coisa ia ser na força. Daí perdeu aquela coisinha, pedacinho de pele e... ficou mais nojenta. Daí você se tornou uma gatinha que dava. Os caras corriam mais atrás. E você ria dele. A pior das vadias. Então, você me encontrou. Foi horrível pra mim. Uma criança mimada jogando um joguinho. Só que eu não era o seu vizinho; eu não era o seu primo; eu era um cara que não tava nem aí com sua mãe e com sua família. Não tava nem aí pra você. Você pra mim era mais uma. Mais uma festa, e só. E por isso, você gostou. Você gostou de um cara que mostrasse pra você que você era nada; porque na real era assim que você se via. Peguei você de jeito. Mostrei pra todos a puta que você era e você se apaixonou. Você me ligava todo dia. Você dizia pra todos que estava me namorando. E daí... bem, caí no jogo. Mas só caí quando você me chupou no cinema; quando você me deu no banheiro do bar cheio de gente; quando você me deixou comer o seu cú, e depois disse que adorou. Então, entrei na jogada, e entrei bem, porque era a sua melhor fase. Corpo firme; bundinha empinada; peitos fartos; limpa, muito limpa, eu podia comer você sem proteção. Você me pegou de jeito, mas do meu jeito. Foram alguns meses de foda contínua, todo dia, toda a hora, em qualquer lugar, de todos os jeitos. E eu coloquei você nas piores situações: fiz você transar com outras mulheres e outros caras; fiz você aceitar que eu transasse com quem eu quisesse, fiz você abrir a cabeça. Eu dei a você a melhor fase da sua vida. Deixo isso como recordação. Agora que você está casada, com três filhos, gorda, tomando bola o dia inteiro, tendo que trepar com um cara que você odeia.

Vidinha

Você me quer ao seu lado. Pra sempre, como você diz. Você quer que eu seja seu braço forte. Que eu cuide de você. Poderia ser qualquer um. É, alguém que seja um cara parecido com seu pai.  Então você quer que eu construa uma casa pra você. Quer que eu pague a maior parte das contas. Quer que eu deixe o dinheiro que você ganha nas suas mãos. É, pra fazer compras no fim de semana no shopping. Quer que eu cozinhe para você. Quer que eu trate bem você. Quer que eu fique de pau mole durante a semana, já que você só transa aos sábados. Quer que eu goste de seus pais, de sua família. Aquelas pessoas asquerosas que você odeia. Quer que futuramente eu lhe de um filho. Que eu troque fraldas e leve vocês dois pra passear no fim de semana. Você quer que eu fique sentado de noite ao seu lado vendo tv. Que eu comece a gostar de novelas. Você quer que eu fique sentado ao seu lado e lhe ouça. Já que você gosta de falar e falar. Quer que eu fique em silêncio quando você estiver menstruada. Você quer que eu lhe ache bonita. Que eu não olhe pra nenhuma mulher na rua. Você quer que eu me sinta feliz ao seu lado. Que eu sorria sempre. Que eu sorria pra você e seus amigos. Mesmo que você sempre esteja triste. Você quer que eu cuide da minha saúde, já que tenho que viver pra cuidar de você. Quer que eu esqueça das  minhas ex namoradas. Que eu não faça festa no fim de semana. Na real, você não sabe o que quer. Mas sempre quer. Você quer que eu aceite o seu jeito. Você quer que eu aceite a sua indecisão. Você quer que eu queira você. Que eu finja pelo menos. Você quer que eu seja infeliz, mas não demonstre isso. Você quer que eu seja infeliz ao seu lado como você é ao meu.

Rua Lima e Silva

Saiu uma matéria no jornal gaúcho, Zero Hora, sobre uma rua de Porto Alegre, a Lima e Silva. Diz que a rua estaria sendo invadida, aos domingos, por jovens que a tornam um “antro” de sexo, drogas e outras coisas.  Eles fazem sexo em banheiros de estabelecimentos comerciais, usam drogas, brigam. Não se sabe se é verdadeiro o relato do jornal. Expõe apenas o ponto de vista de certos moradores. A rua se tornou, nos últimos anos, “o local” da noite da cidade. Boa parte do pessoal que mora ali e nas imediações é gente jovem. A rua corta o bairro Cidade Baixa que fica perto da universidade mais famosa da cidade. O bairro é boêmio, e lucra com isso. Já a Zero Hora é um jornal família, pras famílias de classe média. Gente que gosta de uma vida calma, sem barulhos. O jornal é conservador, defende “a moral e os bons costumes”. O mais interessante é que os jovens que se drogam e transam em banheiros são os filhos dessa classe média. O jornal postou fotos com legendas do tipo: “sem limites”. A maior parte era de garotos e garotas se beijando. As fotos estavam desfocadas. Uma foto era de um garoto deitado no chão, bêbado. E se rola mesmo sexo em qualquer lugar e se todo mundo se droga? Os jovens fazem isso como resistência exatamente a esse discurso e essa vida criados pelos meios conservadores, a classe média, papai e mamãe. Volta e meia alguém fala da “adultificação precoce das crianças”; mas a questão é exatamente o contrário, da infantilização prolongada. Tentam punir e vigiar, tentam controlar os jovens, impedindo o mínimo de autonomia. Eles não podem beber, não podem entrar em festas, não podem se divertir. Tentam tornar o mundo da juventude algo sufocante: “eles deveriam estar em casa com papai e mamãe, como a criança está”. O emprego que oferecem para eles é precário, impossível ter autonomia financeira para sair de casa e fazer a vida. Autonomia intelectual também é difícil, considerando que impõem uma educação idiotizante, não lhes dão alternativas. A saída é se agarrar no que é mais fácil para criar um mundinho: ser punk, emo, metal, hip hop, ou fazer parte de guetos relacionados à sexualidade. Quanto à droga que atravessa todos esses estilos, ela é a possibilidade de liberdade, pelo menos até o barato acabar ou até bater a ressaca. E não importa se isso é bom ou ruim, mas o que motiva os jovens: a fuga da disciplina, do controle, a busca de autonomia, resistir. As drogas e o sexo são os seus aliados. Estão sempre ali, prontos para os acolher. Eles não têm limites, dizem as legendas. Essa é a real, eles estão cheios dos limites, dessa vida de todo mundo que constroem pra eles. Passaram mais de uma década trancados em casa. Vivendo como refugiados. E ainda dizem que ser criança é ser feliz, mas não há nada mais triste que ser um refugiado, um prisioneiro político, o que as crianças são. Quando o corpo fica mais forte e a cabeça começa a funcionar, o jovem diz: quero minha vida; uma vida singular, e faz ela, uma vida não muito rica. O mundinho dos jovens marca o limite: nós não queremos ser como vocês, adultos. E a vidinha tradicional da família não aceita isso.  

Rua Oswaldo Aranha

A Rua Oswaldo Aranha foi o marco da cultura underground de Porto Alegre. Era o paraíso pra galera, o inferno pra papai e mamãe. Paraíso que não era frequentado por anjinhos. Melhor, eram todos anjos, mas de um tipo diferente. Anjos movidos por um desejo de cair fora das regras, do controle. Sempre rolava um beijo em uma desconhecida sem precisar de uma palavra. Alguém começava a falar do nada como se fosse seu melhor amigo. Baseados apareciam. Grupos se acumulavam na rua sem a existência de barreiras. Um grupo interagia com outro grupo que interagia com outro grupo, formando uma quadrilha. Talvez uma matilha jovem que tinha muito mais o que fazer do que tentar seguir pequenas convenções e etiquetas. Quando as coisas esquentavam mesmo, ou seja, sempre, o clima enlouquecia. Alguém saia bêbado da Lancheria e era atropelado por uma ambulância, depois por um carro e continuava caminhando. Um rapaz, louco de Benflogin, engatinhava entre a massa no Escaler. Algumas pessoas sorriam. A maioria nem via. Um garoto abordava um grupo fugindo de policiais e o grupo o acolhia. Sem perguntarem o porquê da confusão, se embriagavam juntos. Dias depois d o garoto começava a namorar uma das garotas do grupo. 10 pessoas tomavam chá de cogumelo e viam anjinhos e estrelas voando em plena rua. Uma briga entre gangues resultava em um garoto esfaqueado. Garotos, que nunca tinham visto o agredido, o ajudavam. Dois jovens trocavam beijos sobre a grama do Araújo Viana. Pela primeira vez despiam alguém de outro sexo. Ali mesmo, entre o gramado verde, transavam. Após alguns beijos, um rapaz abraçava uma garota pelas costas com seu casaco. Em frente à Redenção, dentro do Ocidente, junto a mais de 300 pessoas, a penetra sem preservativo. Uma garota, louca de bolinhas, caminhava na pista de dança do Ocidente em linha reta. Cada menino ou menina que aparecia em sua frente recebia um beijo.
Mais uma noite
Tinha ficado meia hora na fila pra entrar na casa noturna; só com os cigarros. Nem olhava pras garotas, boca muito seca. Acabou a fila; entrou correndo no pico e comprou três doses de qualquer coisa. Chegou no balcão do bar. Ela tava atendendo, mas ele apenas disse: quero isso, mostrando os tickets. Ela jogou as três doses de destilado no balcão, meio puta. Ele nem pensou: tomou uma, duas, três, e vamos lá. Daí sacou que ela – a garota que tava sempre no balcão – era linda. Sacou que havia gatinhas antes na fila. Sacou que a festa tava começando. Atravessou a pista, só curtindo. Empurrou uns caras, passou a mão em algumas minas, dançou com um grupo. Chegou no fumódromo. Pediu fogo pra uma gatinha. Ele tinha fogo, mas queria o dela. Acendeu um crivo, filtro vermelho. Ali tava todo mundo rindo. Elas se fazendo. Uns viadinhos. Mas a noite ia ser mesmo um saco se estivesse em qualquer lugar. Lançou uma piada prum grupo de garotas. Elas fingiram que não gostaram. Ele sacou. Sabia que devia se aproveitar da situação. Mas bateu a sede. Atravessou correndo a pista. Deu um empurrão numas gatinhas, só de curtição e elas curtiram. Dançou com um grupo. E depois outro. Beijou uma gatinha. Sorriu pra ela e saiu fora. Encontrou um mano. Falou com ele. Chegou no guichê; comprou mais três doses. Furou a fila do bar, chegou no balcão e lá estava ela. Linda ela, demais. Só que o balcão está entre nós, pensou. Mas sorriu pra ela, o primeiro sorriso verdadeiro da noite. Ela jogou mais três doses no balcão. Ele bebeu. Bateu um pouco de barato. Se sentiu meio mole. Pegou um pouco de anfetamina no bolso. Aquelas doses que se compra no centro por quase nada. Meteu um punhado na boca. Saiu correndo do bar. Passou a pista de dança. Empurrou garotos e garotas. Não importava quem. Dançou com um grupo. Estava bom. Tinha uma gatinha, mas tava bom só dançar. Quando a música acabou, continuou andando. Não olhou pra trás e chegou no fumódromo. Alguém tem fogo? Surgiram vários isqueiros. Ele pegou qualquer um. Acendeu mais um filtro vermelho. Depois outro, depois outro. Se ligou que tava com uma gatinha no canto: é, é uma gatinha. Uns beijos. Umas puxadas. Umas palavras de carinho. Uns tapas. Só que se ligou que tava também com sede. Saiu correndo. E tudo de novo. E estava no balcão. E só via ela. Linda como sempre. Ainda sorrindo. E ela jogou no balcão o que havia pedido. Ele nem aí. Só queria ver ela. Ela sorrir e ser legal com ele, de um jeito que ninguém era. Não tinha mais bola no bolso. Entrou no banheiro. Alguém lhe deu umas carreiras de pó. Meteu pra dentro. O barato mudou um pouco. Ficou mais esperto. Esqueceu a gatinha do bar. Entrou na pista. Estava dançando junto com uma outra gatinha. A dança estava legal. Uns toques. Umas palavras. Logo um beijo. Mas a dança continuava. E isso era bom, como ela dançava; como o corpo dela se encaixava com o dele. Ele jogou ela no canto. Tinha umas 100 pessoas na pista. Mas ele não via mais ninguém. Só ela, só ela. Disse que a amava. E era verdade. Pra sempre, disse pra ela. Só que sem pensar saiu correndo na pista. Chegou no balcão e ela lhe deu um dose. Nem tinha comprado. Ela foi legal com ele, como sempre. Ele saiu pra pista de dança e encontrou a gatinha que tava antes com ele. Tudo de novo: beijou ela, empurrou na parede, disse que a amava; só que daí sacou que não era ela, era outra. Mas e daí? Os dois continuaram se pegando e tava tão bom. Uma hora o som parou. Acabou a festa. O sol tinha nascido. E eles caíram fora. Ela tava legal ainda, queria beber mais. Ele só queria ela. Daí ela levou ele pra casa. Cuidou dele a manhã toda, até o meio dia. Depois, deixou ele dormir até o fim da tarde. Quando ele acordou, ela lhe deu uma ceva. Os dois transaram de novo. Ele caiu fora sem dizer uma palavra. Foi embora sozinho. Tinha que voltar pro bar pra ver ela.

Adolescentes

Caíram da infância mais cedo que os outros. Nenhum motivo em especial. Quem os dava eram os pais, psicólogos, orientadores educacionais. Essa gente lerda e burra que não entende nada. Só que eram novos e não tinha muito o que fazer. Ficar trancados no quarto longe da sala e da televisão. Fugir do pai e da mãe quando convidavam pra ir pra praia no fim de semana. Fazer desenhos no caderno em sala de aula. Só que daí a cabeça começou a funcionar. Sacaram que tinha outros na mesma e montaram a turma. Venderam os brinquedos. Compraram pranchas de surfe, skates e roupas de gente mais velha. Começaram a ouvir e tocar rock n’ roll. Os caras mais velhos começaram a notar eles. Nas festas ofereciam bebidas. Bebiam, se detonavam, enquanto os outros dançavam e tentavam pegar aquelas crianças, gatinhas mimadas. Não tinha mais razão pra ficar em sala de aula. Eram os únicos que saiam na hora que queriam. Os professores tinham medo deles. Deixavam assim. Todos juntos, na frente do colégio, fumavam cigarros. Os caras mais velhos trouxeram uns baseados. Não tinha motivo pra não fumar. Fumaram um, dois, três, quatro, cinco vezes, e nada. Na sexta vez bateu o barato. Daí a vida realmente começou. Sete horas da manhã, todos juntos no campo de futebol. Uma turma grande da galera de 13 e 14 anos. Tinham pegado fumo com os caras mais velhos. Um ou dois já sabiam enrolar. O baseado era grande, parecia ser de duas sedas e bem grosso. O baseado passava de mão em mão. Depois entraram na sala de aula. Riram dos professores. Riram dos alunos. E eles faziam as gatinhas rirem. Rápido, já eram um dez baseados por manhã. Depois do terceiro nem mais fazia a cabeça. Almoçavam meio chapados com os pais. Fumavam mais um depois do almoço. De tarde, tocavam com a banda de metal. Andavam de skate. Caminhavam pela cidade. Não bebiam muito, mais no fim de semana. Sexta caíam pra Oswaldo Aranha. Eram os mais novos. Mais novos que eles só as crianças que estavam em casa dormindo. E a maioria da idade deles tava vendo tv com papai e mamãe, ou indo pras festinhas que eles odiavam. Papai e mamãe ficaram putos o dia em que eles chegaram em casa de manhã cedo no sábado. Passaram a noite na rua. Chamaram até a polícia. Eles disseram pros velhos: agora é assim que as coisas funcionam. Papai achou 50 gramas de fumo. Eles disseram pros velhos: não se metam na nossa vida. Eram novos, mas pegavam as gatinhas mais velhas. Pegavam as de 16 e 17. Mentiam a idade e pegavam as de 18. Bêbados no bar do João, na Oswaldo Aranha, entraram no banheiro. Um cara mais velho esticou umas carreiras, todos cheiraram, e eles disseram: a vida começou. Em pouco tempo, não precisavam mais dos caras velhos pra se drogar. Aliás, os caras mais velhos começaram a buscar eles pra se drogar. Eles subiam o morro a qualquer hora, em qualquer dia. Terça de madrugada. Sobem uma parte da vila Cruzeiro do Sul, junto do bairro Cristal. Não tem pó junto ao asfalto. Decidem subir o morro com um morador. Tudo escuro. Ruas estreitas. Podia ser mortos. Entram na casa do traficante. Era uma mina velha. Ela oferece pó. Eles cheiram. Ela pergunta se eles não querem pó de graça; era só deixar ela chupar eles. Um deles diz: eu topo. Ela chupa no quarto ao lado. Os outros ficam rindo: olha só o cara, olha só. Depois disso, ela sempre liberava pó pra turma por uma chupada. Um deles meio que começa a namorar ela. Uma noite, tavam passando pela Vila Conceição. O ônibus tinha deixado eles longe, já que não tinham grana. Motorista filha da puta. Passaram por um bar fechado. No mezanino três caras negros endolavam uma montanha de pó. Os black olharam eles e disseram: tão a fim? Cheiraram as maiores carreiras que já tinham cheirado. Os blacks só diziam: vai fundo meu. Daí mandaram eles cair fora, mas liberaram de graça umas gramas.  Iam todo dia pro Parque Marinha. Lá junto da pista de skate, toda a galera se encontrava e daí eles fumavam vários. Uma época uns manos iam até o Gasômetro e buscavam fumo mesclado. Maconha com crack. Eles fumavam de vez em quando, mas o barato era a maconha e o pó. Uma hora só queriam saber de pó e era caro. Então pegavam maconha e vendiam pra galera no cursinho. Ali no centro de Porto Alegre, naquela praça ao lado do hospital Santa Casa. Todo mundo comprava fumo deles de manhã. De tarde. pegavam a grana e compravam pó. Um dos manos um dia cheirou muito. Tava com 50 gramas na mão. O cara morreu, mas foi ressuscitado por paramédicos. Ainda eram jovens, não estavam viciados. Mas quando acabava o pó doía na alma. Queriam mais e mais e mais. O pai de um deles tinha dólares guardados. O mano sabia a senha do cofre. Eles pegavam e iam pro morro. Os traficantes ficavam felizes em ver grana estrangeira. De noite tavam sempre no Timbuka. Bar famoso no bairro Assunção. Ali fumavam, vendiam, cheiravam. Não tinham medo da polícia. Pegavam o prato e esticavam as carreiras na rua mesmo. Os mais velhos ficavam putos. Só que agora os mais velhos tinham medo deles. As gatinhas estavam sempre em cima. Umas minas meio caídas, mas não importava. Eles liberavam pó pra elas, e elas faziam o serviço. Já tavam fazia anos nessa. Não iam mais pra escola. Já haviam sido internados. Saiam e entravam da clinica. Os pais enchiam o saco, mais os psicólogos, toda essa gente.  Eles só queriam curtir. O que tem de errado em curtir a vida? Eram jovens, o corpo era forte. Os outros, os integrados viam eles como lixo. Com vinte anos a coisa mudou. Alguns deles pararam com tudo. Outros deram um tempo. Uns se integraram mais ou menos. Outros caíram na vida, continuaram. Uns morreram de overdose. Outros tão com aids. Os mais espertos, caíram de casa, montaram negócio, se formaram. Só que nos fins de semana tão na noite fazendo a cabeça.

Neurose   

Ela era um saco. A filhinha problema. Desde nova aprontava. Pintou os cabelos de verde com quinze anos. Fez tatuagens. Colocou piercings. Ouvia new metal. Ia direto na a Oswaldo Aranha com uma turma do rock. Fazia festa, mas não se detonava. Não podia beber muito porque tomava remedinhos controlados desde cedo. É, tentavam controlar a anorexia dela e suas investidas constantes contra papai e mamãe. Faziam isso desde que ela disse: fodam-se. Um dia conheceu um cara. Ele pegou ela de jeito. Foi legal com ela, mas meio sacana. Fez com ela o que os outros não faziam. Meteu ela na parede. Deu uns beijos. Disse: vamos pro meu ap. Ela foi. O cara era mais velho, tinha uns 25. Morava sozinho. Ela ficou trepando com ele por três dias. Os pais ficaram loucos. Chamaram a polícia. Pensavam: ela não toma os remédios faz dias. Ela chegou em casa. Os pais choraram. Disseram: mas como você faz isso com a gente. Nós amamos você e você faz isso. Eles não bateram nela; não meteram ela de castigo. Já estavam acostumados com ela e sabiam que isso não adiantava. Daí ela se sentiu um lixo. Oh, eles me amam e eu faço isso. Daí ela pegou duas caixas de remédios controlados e tomou tudo. Primeira tentativa de suicídio. Levaram ela pro hospital. Fizeram lavagem estomacal. Meteram um tubo na boca e deram algo que a fez acordar. Ela acordou com os pais no pé da cama chorando. Diziam: não faça mais isso, a gente ama você. E ela disse: é mentira, vocês não me amam. Os pais queriam internar ela. Ela não quis. Trocaram de analista. O cara receitou bolas mais pesadas. Ela não tomava direito os remédios. Em certas fases, ficava em casa, se emboletando. Em outras, caia na rua, e se drogava. Quando se sentia uma merda, isso com frequência, quando não se sentia amada, tomava uma overdose. Ela não queria se matar, queria ouvir eles dizendo: não faça mais isso minha filha, a gente ama você. Em cinco anos tentou umas dez vezes o suicídio. Tentou nada. Tomava o suficiente pra assustar os pais, e só.  Se casou com o primeiro cara que apareceu na frente. Era a cara do pai. Casou pra cair fora da casa dos velhos. Odiava o cara. Não saía mais a noite. Não pintava mais o cabelo. Não se drogava mais. Se fechou cada vez mais em si mesmo. E quando não segurava a onda tentava o suicídio pra chamar a atenção dos pais e o do novo pai, seu marido.

Revivendo


Fazia tempo que ele não cheirava. Fazia uns cinco anos. Tinha sido um bom cheirador por muito tempo. Parou porque mandaram ele parar. Um monte de gente: namorada, pais, treinador, psicólogo, policia, pombos, ratos, e mais um monte de chatos. Ok, parou, e parou mesmo. Cinco anos sem cheirar. Nesse tempo, virou o senhor bom cidadão. Virou um cara bom, um amor, o filinho da mamãe, o esposinho que abre a porta. Olhava para o espelho e se sentia orgulhoso. Percebia como os outros olhavam pra ele e se sentia orgulhoso. Empinava a cabeça e estufava o peito não mais por causa do pó, mas pelo orgulho. Até os policiais quando passavam por ele, olhavam com admiração. Só que um dia, apareceu um mano. O mano tava com a mão, não muito sabe, só umas cinquenta gramas de pó. E ele deu um teco. E depois outro, e depois outro. Quando viu tinha passado o final de semana e o pó tinha acabado. Daí ele subiu o morro sozinho e pegou mais umas vinte gramas. Pegou um quarto de motel barato. Esticou umas belas carreiras. Se olhou no espelho e disse pra si mesmo: vou vender tudo que eu tenho. Vou comprar tudo em pó. Quando acabar o pó, vou me dar um tiro, e já era. Decidiu isso porque não queria ficar preso na rotina. É, a rotina do pó: conseguir grana, comprar, cheirar, depois ficar sem, ter que roubar pra ter mais. Incomodação demais. Se tivesse pó na mão pra sempre, não se mataria, mas não é assim que funciona. Sempre acaba. Então, não queria a rotina do pó e, muito menos, a rotina do bom cidadão, do filinho da mamãe, do babaca que ama uma babaca. Vendeu tudo, comprou tudo em pó. Se enrolou com uma mina muito louca porque ela tinha um ap. Esticou as carreiras. Fez a festa. Uns três meses de festa. Pó, canha, sexo, brigas, grana pra polícia, bares, putas, muitas pessoas, tudo a cem por hora. Ele sabia que se ele resolvesse não se matar, a ressaca seria tão grande que acabaria se matando. Ou seja, o tiro na cabeça já era certo. Tava na praia de Ipanema em Porto Alegre. Tava no carro. Não tinha vendido o carro porque pó e carro andam juntos. Tava na praia, tava com as últimas parangas de pó. Esticou uma carreira com tudo que tinha. Deu uma longa aspirada. Botou tudo pra dentro. Esperou o pó descer. Esperou o brilho começar a se apagar. Pegou a arma. Meteu na boca. E já era. Parte dois. Ele namorou ela por cinco anos. Ela meteu ele nos eixos. Fez ele parar de sair, de beber  e se drogar. Ele virou o caretão. E gostava disso. Dizia: agora eu sou um homem. Encarava de frente o pai, não ouvia mais o velho o chamar de “um imaturo que só faz merda”. Tomava cerveja apenas no almoço de domingo. Enchia a cara junto com o sogro. Depois via tv com toda a família da namorada. Viam o jogo de futebol todos bêbados. Ele era novo, tinha 28 anos, mas já se sentia um senhor. Falava sobre casamento. Falava sobre ter filhos. O pai ofereceu uma grana pra montar seu negócio, e seguir em frente, fazer sua família. Montou uma empresa. Em pouco tempo começou a dar dinheiro. Fez uma grana. Marcou o casamento. Todos estavam tão felizes. Ele podia se casar, tinha autonomia que nenhum amigo tinha. Uma semana antes do casamento ele disse: tô fora. Não quero mais me casar. O pai, a família dela, ela ficaram loucos com ele. Mas ficou firme na posição. Primeira coisa que fez depois de toda a novela, foi num bar. Tomou todas com os velhos amigos. Fumou uns baseados, cheirou umas carreiras. Depois foram numa casa noturna. Pegou uma gatinha duns 20 anos. Levou ela pra casa. Transou com ela. Era a primeira transa em cinco anos com alguém diferente das ex-quase esposa. Transou com ela feito louco. Parecia uma transa que nunca tinha experimentado. A coisa foi demais. A partir daí começou a sair direto. Na sexta, no sábado, no domingo. Em pouco tempo, voltou na ativa do pó, mas de uma forma diferente. Não tava viciado como já tinha sido. Durante a semana o negócio até ia bem. Trabalhava normalmente. Mas não passava um dia de trabalho sem que pensasse nas festas. Na real, pensava o dia todo nas gatinhas, nas drogas. Só que sabia que tinha que ser um lance eventual, senão ele não ia ter como se manter. Tinha que trabalhar. Era sexta, tava na noite. Rolou mais uma gatinha. Levou ela pra casa. Transou com ela. De manhã, ainda tava cheirando umas carreiras na sala, vendo tv. Ela dormia no quarto. Como disse, ele não tava viciado em pó, estava encarando de uma forma diferente o lance. Isso não era o mais importante. O que ele queria era a noite, a festa, as gatinhas, tudo isso, sempre. Mas só tinha a opção da festa apenas no fim de semana. Sentia uma dor por dentro. Daí decidiu o que fazer.  Vendeu tudo que tinha. Não falou pra ninguém. Vendeu o carro, móveis, o que era seu da empresa. Pegou toda a grana do banco. Foi pra Europa. Tinha grana suficiente pra fazer festa durante cinco meses direto; e fez. Curtiu. Se apaixonou por garotas, curtiu festas, usou drogas que nunca tinha usado. No fim, quando acabou a grana, comprou uma arma. Estava em um quarto dum ap que dividia com estrangeiros. Tomou uma dose de uísque.  Meteu a arma na boca, e já era.  

Porto alegre nos anos 90

A gente tava na Oswaldo. Tava fazendo a cabeça no João. Tava rolando aquelas cachaças da boa. Alguém pegava um copo grande e botava na roda. Aquela merda era muito forte. Um golinho de vez. E de gole em gole o barato batia. A gente ia até o Escaler e pegava um fumo. Uns trafis vendiam atrás do bar. Ali numa viela sem luz. A gente fumava. Voltava pro bar. Pedia mais uma canha. Sempre rolava algo mais. Umas minas vendiam hipofagin e inibex. A gente comprava. É, a gente tava lá. A gente tava curtindo. Chegaram uns boys. Eles tavam de carro. Era uma saveiro. Disseram pra gente: sobe aí, vamos dar uma volta. A gente subiu na parte aberta da caminhonete. Eu, um mano e duas minas. A gente tava doido de bola, fumo e canha. Os manos da direção, os boys meteram o carro na rua. Alta velocidade. E a gente ali atrás. A gente tava passando pelo Parcão, numa descida. Os caras não tiravam o pé do acelerador. Era nos anos 90. Não tinha essa de lei seca. Não tinha essa de que menor não pode entrar em casa noturna. Não tinha essa de que menor não pode comprar cigarro. Os postos todos enchiam de gente que se reunia pra beber. A gente fazia a festa. A gente tava descendo a lomba ali do Parcão. Na traseira tava o mano, viajando. Junto tavam as duas minas. Uma delas eu tava ficando fazia um tempo. Só que a outra era muito gata. Dei uns beijos na mina que eu tava ficando. Vi que a outra ficou com a cara fechada. Saquei que ela tava a fim. Beijei ela também. Ela gostou. Quando vi, nós três, a gente tava se beijando. Eu com duas garotas. E elas também se beijavam. Primeira vez que fiquei com duas garotas ao mesmo tempo. Primeira vez que duas garotas se beijavam na minha frente. O carro voltou pra Oswaldo. Os boys eram parceiros. Dei uma paranga de fumo pra eles. A mina que eu tava ficando me chamou prum canto. A outra desapareceu. Parte dois. A gente saiu da Oswaldo, eu e um mano. Era no meio dos anos 90. A gente tava doido de bira e bola. A gente passou pela universidade federal. Tava tudo meio escuro. A gente tava quase no centro e passava por uma rua estreita. Daí meu mano disse: cara, tem uma galera ali na frente. Era uma gangue duns 50 caras, blacks, de vila. Eles tinham saído das festas no alto do centro, ali do lado da Santa Casa, e se concentram na rua. Tavam atrás de confusão.  Eu e meu mano, a gente tava doido. A gente nem deu bola e passou por eles. Os caras nos tiraram. Falaram dos nossos tênis de marca. A gente nem olhou pra eles. E eles deixaram assim. Devem ter pensado: esses caras são loucos de passar por nós. Daí a gente parou numa outra ruinha. Ficava entre o centro e a Cidade Baixa. A gente tava ali esperando o ônibus que não passava. A gente ficou conversando. Putos já que não tinha mais crivo. Putos porque não tinha mais fumo. Mas a gente tava na boa. A rua, a gente já tinha sacado, era lugar que uns michês faziam ponto. Eles pegavam putos ali. Mas isso só rolava de vez em quando. Mas daí a gente não ficou surpreso quando um viado passou e nos ofereceu carona. A gente entrou no carro.  Pediu crivo pra ele. Ele deu. Perguntou se tinha fumo. Ele disse que não tinha. Daí ele disse pra gente: vamos fazer programa? Eu e meu mano a gente disse que topava. A gente disse que podia rolar na Usina do Gasômetro. Lá tinha um estacionamento e ninguém passava. Era junto do rio Guaíba. O viado parou o carro, e disse pro meu mano: quero fazer primeiro com você. Quero chupar você. Saí do carro. Meu mano tava na carona. O viado baixou as calças dele. Meu mano deu uma joelhada na cara dele. Eu abri a porta na parte que o viado tava. Empurrei ele pra fora. Meu mano veio junto. A gente encheu ele de chute na cara. A gente chutou ele até apagar. A gente pegou a carteira do cara. Ele tava cheio de grana. A gente empurrou ele até a areia. Deu mais chutes na cabeça pra apagar ele de vez. A gente pegou o carro, e se foi. Eu era o único que sabia dirigir, a gente tinha só 16 anos. Meu mano do meu lado, tava tremendo todo. Começou a falar: será que e gente matou o cara, será que a gente matou. Eu também tava nervoso, tinha ficado careta com toda a história. Daí disse: cara, vamos até a Cruzeiro, a gente deixa o carro ali perto. A gente pega essa grana e compra pó. Não se preocupe. A gente deixou o carro numa rua. Subiu o morro. A gente pegou toda a grana em pó. Deu umas 10 gramas. Tava de boa. A gente cheirou, e daí esqueceu do cara. Nos dias seguintes a gente ainda tava com medo. Podia dar merda, a gente podia ter matado o cara. Mas não rolou nada. Três semanas depois a gente tava no mesmo ponto que tinha pegado o cara. A gente queria pegar mais um viado e roubar o cara e fazer a festa.





Fim de século

A gente fumou um, dois, três. A gente tomou umas cevas, várias. A gente era: eu com 13 anos, mais três manos de 18. Eu tava com eles porque era um cara legal. Eu fazia a festa e ficava no meu canto; e quando eu fazia merda, todo mundo se divertia. Era um garoto que tava aprendendo com o pessoal mais velho. A gente tava em algum bar, jogando sinuca, no bairro Menino Deus. Hoje em dia o bairro é um desastre. Muitos restaurantes pra classe média. Muitos edifícios pra classe média. E só. Mas o bairro já foi legal. Tinha uns bares pra galera. Um tempo, tinha prostituição de mulheres e travecos. Só que eu tava com os manos, e era época boa. A gente jogava sinuca. Bebia. Fumava. Eu tinha 13 anos e ninguém me incomodava. Eu podia fumar e beber. Eu podia estar na noite. Já era meia noite. A gente saiu de carro e foi num show. Não lembro a banda, mas me lembro do lugar. Era o Fim de Século. O bar foi um dos mais famosos do underground da cidade. Depois mudou o nome para NEO. Daí o pico virou um lugar pra cena clubber. Mas na primeira década do século tinha festas de subculturas. Um das poucas dedicadas pra turma gótica em Porto Alegre teve seu apogeu na NEO.  Daí, a gente tava lá no Fim de Século. A gente tava se detonando. Muita bira. Meus manos já tavam queimando o filme com as minas. Eu tava mais de canto.  Mas uma hora meio que enlouqueci. Tava na pista de dança. A banda tocava algo meio punk. Uma mina loira parou na minha frente. Era mais velha. Ela tava agarrando outra mina. Uau, eram lésbicas. Nunca tinha visto algo assim. Eu tava atrás delas. Eu tinha só treze anos. Agarrei a loira, por trás. Ela continuou dançando. Dei uns amassos por trás. Dei um beijo no pescoço. Ela se virou e me deu um soco. Fui pro chão. Chamei ela de vadia. Meus manos todos riram. Isso virou a história da semana entre nós. Parte dois. Fazia anos que eu não ia na NEO. Uns dois anos. Tava namorando uma mina e a gente não saía. A gente tinha se conhecido ali, numa festa gótica. Larguei a mina e a primeira coisa que fiz foi ligar pruma amiga que eu já tinha ficado algumas vezes. Ali na NEO também. Peguei ela em casa. A gente chegou na festa. Era festa dum parceiro. A gente entrou. Eu não conhecia mais ninguém. Só o pessoal que organizava a festa. Tudo tinha mudado. E eu também. Tomei todas. Dancei. Curti. Tinha voltado a ficar com essa mina que me levou na festa. Só que uma hora me desliguei dela. Senti vontade de outras. Legal que nas festas todo mundo tá a fim de conhecer gente nova. A gente pode conversar com gente que nunca viu. Tá todo mundo aberto, e demais. Tava no banheiro falando com um viadinho e uma mina. Ele disse que tava a fim de mim. Eu ri alto. Mandei cair fora. A gente tava na frente do banheiro, um lugar com torneiras e espelhos. Quando vi era só eu e ela. Ela tava de preto. Com a cara pintada. Era nova e bonita. Era metida a gótica. Só me lembro de uma imagem depois. Eu no banheiro com ela. Eu penetrando ela. E com certeza eu tava sem preservativo. Depois lembro que voltei a falar com a mina que eu tinha ido na festa. De dançar com ela. E dançar com outras. De ficar com outras. Só que não importava. O que importava era que eu tava livre de novo. Eu podia curtir a noite. Não tava mais preso com namorada. A juventude tinha voltado com tudo. E eu merecia. Parte dois. Eu tinha recém entrado na faculdade. Ainda era novo. Tava conhecendo gente diferente. Tava fazendo turma. Eu tava na turma dos caras que andavam de preto. Todo mundo de calça preta, sapatos de bico fino e jaqueta de couro. E todo mundo tinha banda de rock pesado. Todo mundo era legal, todo mundo fazia festa. Na segunda, a gente tava na Rua Independência. A gente fazia festa direto e depois ia pra aula. Depois na quinta a gente tava no Cabaret. Depois a gente ia pro Garagem Hermética. Fim de semana a gente tava na Oswaldo. A gente tinha sido foda. A gente tinha curtido todas. A gente encarou o colegial. E a agora a gente era gente de faculdade. Num fim de semana a gente tava na NEO. Rolava som eletrônico. A gente era do rock. Mas não importava. A gente tava dançando. Eu tava com uma gordinha. Tava curtindo ela. Era bonita, mas pesadinha. Chegaram outros manos. Eles trabalhavam numa loja de roupas de gente IN. De gente ligada. De gente que tava por dentro. Larguei a gordinha. Peguei uma ruiva que tava nesse grupo de gente da loja. Tava dançando com ela. Tava beijando ela. Tava muito a fim. Pintou um mano. Ela tava muito doido. Ele ofereceu pra mina um ácido. Eu só fiquei olhando. Ela ofereceu um pedaço pra mim. Eu aceitei. Era um pedaço de uma dose. Um papel bordô dupla face. Eu encarei. Tomei. Mastiguei o papel.  Meia hora depois desceu o barato. Sentia ventos passando por mim. Sentia ventos de palavras de pessoas me acariciando. Sentia ventos dentro de mim. Um pouco gelado, uma delícia. Tava dançando. Isso que importava. Dançava nos ventos. Tava voando. O beijo dela. A música. As pessoas. Tudo junto. Já era de manhã. A gente tava no Gasômetro. A gente tava fumando um. O barato do ácido tava se indo. A gente via as pessoas na rua. Alguns já começavam o dia. A gente tava terminando a noite.  Mas a gente não tava nem aí. Só importava que depois de dormir a gente ia acordar. E ia rolar mais ácido, mais fumo, mais gatinhas, mais festa, mais noite.  Porto Alegre era uma merda, mas a gente tornava ela um lugar melhor pra se viver.

Pega de carro 

Virada do século. Ele vivia em porto alegre. Tava na faculdade de administração. Tinha recém entrado. Estudava em são Leopoldo. Aula todo dia. Um saco. Fim de semana ia nos lugares que tinha pra ir. Durante a semana ia em alguns lugares que tinha gente. Sempre tinha uma festa, um ou outro dia que não. O dia mais chato era terça. Fazer o que? Fazer o que? Não tinha nada pra fazer. Uns baseados e nada mais. De noite uns postos, umas cevas. Daí tudo morria. Tinha que ir pra casa dormir. Só que não. Na noite de terça o pessoal pegava as carangas e ia pra rua. Eram poucos, mas muitos. Qualquer um jovem que tivesse a fim d eficar na rua. O pessoal se reunia junto da Nilo Peçanha. A rua depois ficou uma merda pra rachas de carro. Colocaram pardais em toda a pista. Só que era virada do século e as coisas eram diferentes. Era uma terça como qualquer outra. Fumou uns. Tomou uma cevas. Tava de carro com um mano. Tinham saído da zona sul e tavam ali na Nilo perto do Iguatemi. O carro era como qualquer outro. Podia ser o do pai ou o da mãe. Tanto fazia. Não era playboy pra envenenar carro. Só queria curtir. Passaram o Iguatemi e pararam num sinal. Era o carro deles, mais dois carros com uns caras. Algum dos carros começou a roncar, depois o outro, depois o outro. O sinal liberou. Meteram o pé na estrada. Seguiram em linha reta em alta velocidade. Chegaram a mais de cem. Passaram por sinais abertos. Depois os sinais fecharam e eles continuaram dando pau até a Protásio Alves. Cada carro seguiu uma direção. Decidiram ficar na rua. Foram até a Oswaldo. Depois cruzaram a Cidade Baixa. Chegaram na Ipiranga. Pararam num posto. Tava ainda aberto. Tomaram umas. Voltaram pra Ipiranga. Sinal fechado. Um carro do lado. Uns boys. Os dois motores roncaram. Meteram o pau. Quando eles viram tinha passado na frente do palácio da polícia a mais de cem por hora. Que se foda, pensaram. Parte dois.  Eles tavam na Oswaldo. Era domingo. Tavam no João tomando todas. O Escaler tinha fechado. Pegaram o carro e foram pra Farrapos. Passaram pelas putas. Umas gostosas. Outras não. No fim da rua tinha os travecos. Eles passaram e berraram: seus viados. Depois passaram pelo aeroporto. Decidiram voltar pro centro da cidade. A noite tinha morrido. Não tinha nada pra fazer. Só tinha os postos. Só tinha o morro. Só tinha as putas. Ou seja, muito pouco. Só que queriam esquecer que na segunda tinham que trabalhar. Que tinham que ir pra aula. Que tinham que acordar na manhã de segunda vendo a cara da mãe e do pai. Não tinham o que fazer. Só dar pau na noite. Percorriam a cidade. Encontravam manos na rua. Faziam pegas. Queimavam um fumo. A cidade era deles. Não tinha nenhum policial na rua.  Decidiram ir pra zona sul. Tinha um bar que talvez tivesse aberto em Ipanema. Passaram o Menino Deus. Passaram o estádio do inter. Quando chegavam no Cristal, na curva do Estaleiro, o carro derrapou, entraram num poste. Uma puta colisão. Um bateu a cabeça no vidro o outro na direção. O Santana tava arrebentado. Os dois começaram a catar o fumo nos bolsos. Pegaram as garrafas de ceva dentro do carro. Levaram pra bem longe. Limparam a área. Logo, carros pararam. Os dois tavam sangrando. Tinha dado merda; os pais iam incomodar. Chegou a polícia. Falaram com eles. Eles só diziam: a gente perdeu a direção. Os policias levaram eles prum hospital. Levaram pontos. O carro tinha sido levado pro DETRAN. Daí tavam os dois fumando um cigarro na frente do hospital. O dono do carro pensou: meu pai vai me matar. O carro já era. Tinham cartão no bolso. O cartão compartilhado com os pais. Pegaram um táxi. Foram pra farrapos. Fizeram a festa num puteiro. E que se foda.


Anarquismo

Recebo informações sobre grupos anarquistas na Europa, faz um tempo. No início da crise já recebia muita coisa, principalmente da Grécia.  Interessante que hoje chegou notícia de um grupo que havia expropriado um supermercado. Os caras pegaram produtos essenciais, e a grana, meteram fogo nela. Interessante que a primeira notícia do tipo, recebi uns dois anos atrás. Um ato comum. Uma tática anarquista: vamos pegar o que nos interessa, já a grana é lixo capitalista, vamos meter fogo. Os caras podiam pegar a grana e comprar coisas. Gasolina pra coquetel molotov. Podiam comprar umas roupas negras pra não serem reconhecidos. Podiam pegar a grana e fazer o que dá com grana. Muito, ou tudo. Mas num ato simbólico queimaram o dinheiro. Quem queima grana é louco. Isso diz o senso comum. Não só louco, um louco anarquista. Alguém que quer que tudo mude. Que o mundo mude. Alguém que luta pela revolução. Mudar tudo. Até os valores. O mundo de vocês a gente quer que acabe. A gente quer foder com isso. Foder com a moral de vocês. Vamos foder com tudo que vocês acreditam; foder com o que vocês querem e valorizam tanto: grana. A gente quer um mundo sem grana. A gente quer um mundo sem distinção. Viva o nosso poder, de fazer coisas que vocês não suportam. Queimar o que vocês dão valor. Queimar a vocês se for necessário. Botar fogo em tudo e que se foda. Botar tudo abaixo. E vocês vão sofrer. A gente não quer o mundo de vocês. Mas vocês querem o mundo que a gente luta. Quando chega o fim do mês; quando o patrão faz merda pra vocês; quando vocês pensam nos seus filhos, que vão se fuder; quando pensam na sua vida. Quando vocês olham pras coisas que têm em casa, e veem que isso é muito pouco; quando sacam que mesmo a riqueza seria pouco.  Quando veem tudo isso, você são dos nossos. Apagam o desejo de vocês de uma nova realidade na TV e quando dão grana pra vocês comprarem mais e mais. Vocês gostam disso e querem mais... mas lá dentro querem outra vida. Vocês se sentem uns putos no trabalho e seus filhos vão encarar a mesma coisa. Suas mulheres sofrem por serem mulheres. E você querem uma vida melhor. Já a gente não quer de jeito nenhum a vida que vocês levam. A gente luta por um mundo melhor. Por nós. Entende? Vocês querem fazer parte de nós, mas têm medo. E é pra ter, porque a gente vai acabar com tudo isso que vocês amam tanto.   


[1] Baixista da banda punk mais famosa dos anos 70, os Sex Pistols. Vicious criou fama principalmente por ser viciado em morfina e um péssimo instrumentista.
[2] Na primeira pessoa, só pra ficar num tom mais pessoal, mas a questão é entre quem luta e o poder.
[3] Primeiro vocalista do Pink Floyd que acabou enlouquecendo pelo uso de LSD.
[4] Jornalista contracultural, usuário abusivo de todo tipo de drogas.
[5] Escrevi isso após um duro semestre no doutorado. Desde o mestrado está claro pra mim que o ambiente de sala de aula (mesmo de palestra) é desnecessário. Ultrapassado. Me sinto enclausurado, meio doente.  Sobre isso a carta.