domingo, 17 de fevereiro de 2019

três textos gravados e lidos e links



Gravei falas, a partir da leitura de textos, com sons no fundo: duas músicas mescladas e minha voz em cima, nas três gravações. As musicas, eu deixei tocar direto de arquivos do youtube. Gravei o fundo, as músicas, mais a fala numa câmera de vídeo. Deixei a lente fechada, apenas em uma gravação, gravei umas imagens. Abaixo os links para o trabalho final e mais abaixo os textos que foram lidos.




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Ele comprou cinco liquinhos e metros de corda de nylon
amarrou em baixo de carro em alta velocidade, o carro explodiu – isso na véspera de finados; presentinho pra família. presentinho pra família
Semanas no quarto, cansado de dormir, ouvindo uma voz: me faça um favor se mate
Na terceira roleta russa antes do café da manhã, ganhou o jogo
Ia ser despejado e pulou
Ia ser despejado e pulou
Tinha uma dívida enorme no banco, com os últimos mil reais comprou uma arma, estourou a cabeça
Pulou da ponte, ninguém sabe ao certo porque
Werther fez o certo
Hemingway
Cobain
O Gustavo, o felipe, o silas, a adriana, a mae da adriana
O estacio, o valente, o Roni, o seco, o cara que apontou a arma pro cara errado, o idiota que roubou o policial
O hippie que ia ser preso
Todos que iriam ser presos, os caras depois da primeira noite na prisão
O samurai desonrado, o corno, a mina e o mino que foram estuprados

Você não tem mais saída [sida] pode morrer
Você está fodido. é melhor se matar
Semanas no quarto, cansado de dormir ouvindo uma voz: me faça um favor se mate

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Louis Cyfer não criou Espectralia
Lúcifer é Legião, é ninguém, todos, qualquer um;
Gabriel é Lúcifer e Legião
E Deus é exatamente a conjunção de todos estes que formam a Legião
Sim: Lúcifer é Legião é Ninguém todos qualquer um
Sim: Gabriel é Lúcifer e Legião
A lógica do Caos: não existe lógica no caos
O padre carrega os pecados, é seu martírio: se enxergar no espelho todo dia
O romântico não se olha no espelho
Wilde se olhava no espelho de Dorian Gray
Rimbaud era bonito demais para se olhar no espelho
Artaud se olhava, mas via o que ninguém jamais viu
O Anjo Amoroso e seu Amor, seu anjo, não se olham no espelho; espelhos são muito baratos para ELES
As asas rudes do Anjo do Anjo Amoroso são as asas mais lindas
Ele disse a ele, ela disse a ele, ela disse a ela, eles disseram: você é meu amor, já que o amor que você sente por mim é o amor mais belo que alguém já teve por mim, o amor mais belo já experimentado no mundo em todas as eras
O Bruxo que é Lou Cypher, Legião, Gabriel, Rimbaud, Artaud, Wilde, Dorian Gray, Ninguém, Qualquer Um............ o Bruxo é uma casca vazia
A casca é preenchida pelos sentimentos dos outros
Sim, Bruxo é Vlad Tepesh da Valáquia
Ele não suga os sentimentos
Os outros que sentem ele, percebem ele. Esses sentimentos deles são arrebatadores sempre
Eles tem medo, tesão, pavor, desejo pelo Bruxo
E o Bruxo é viciado nisso: nos sentimentos dos outros
O Bruxo zerou todos os seus sentimentos
Zerou
Nada mais sente, não tem mais passado, história
Apenas um sentimento, um sentimento ele guardou para si
Aquilo que ninguém conheceu: amor, o amor pelo seu Anjo.
Sim, o Bruxo é o Anjo Amoroso

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A todos os canalhas de Espectralia
Que fodem todos os canalhas da Metrópole que amam amam amam se foder
A todos os românticos de Espectralia e mais todos os românticos que nunca pisaram na cidade
Românticos primitivos, românticos da floresta, Tibet, centro da terra, cosmos, meu cú
O sol de Espetralia só fica de pé quando a lua de Espectralia está de pé
e isso não é o crepúsculo – o pôr do sol é amado pelos canalhas da metrópole
Os ratos da metrópole cagam merda que criam fungos que quando digeridos tornam o zumbi num espectro
A merda dos ratos é um portal para Espectralia
O rato tá no porão comendo os cabelos do canalha da metrópole
O canalha berra e berra e berra com medo do berro na mão do rato que come seu cabelo
Ele chora e chora e chora já que mamãe está na necrópole
e ele não quer ver ela na necrópole
a necrópole é um portal pro inferno dos canalhas da metrópole
O inferno dos românticos é um outro inferno [eu sou um outro inferno]
O romântico não sofre no inferno, é um dos comandantes do inferno, e o inferno do romântico não tem um anjo ressentido caído que odeia um deus ressentido que vive no seu trono de sei lá o que
Deus se auto castrou quando se auto gerou, sim, o deus dos idiotas canalhas
O deus dos românticos... não há deus dos românticos... os românticos são um bando que se chama Deus Legião
Baphomet é o sexo desse deus
não tenho passado nem futuro – é a idade desse deus
Espectralia
a primeira molécula
o cú do que ama o Mário
A última estrela o número 21.... SIM: 12 21 18 6669 21 28 28 28 212 uma doze uma dose
Um canto da floresta congelada um canto da floresta que queima um canto da floresta quente e úmida facínora
Esses espaços são parte do território de Deus Legião
Seu nome é Legião
seu sexo é Baphomet
sua idade: sem passado sem futuro
sua palavra, seu verbo é uma frase: que se foda
que se fodam todos os canalhas idiotas 

a
todos os canalhas de Espectralia
Que fodem todos os canalhas da metrópole que amam amam amam se foder
A todos os românticos de Espectralia e mais todos os românticos que nunca pisaram na cidade
A todos eles: nós os canalhas
a todos nós: Legião
a todos nós: 21 21 21 21 12
doze neles doses e doses de doze neles
viramos o 12 eles viraram 9 viva o 28 – a suja... a gente já tem ela – o resto é nosso
a partilha é da herança do canalha
nossos 21 21 21 21 21 é o que cai do centro da terra quando somos legião

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domingo, 3 de fevereiro de 2019

monografia diego de carv alho






UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
CENTRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO – JORNALISMO




                     
Diego de Carvalho



                     
                     
JORNALISMO VAGABUNDO       

                    
                   
                    
               


                








São Leopoldo
2006       







Diego de Carvalho



JORNALISMO VAGABUNDO



 Trabalho de conclusão apresentado à Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS como requisito parcial para a obtenção do título de graduação em Ciências da Comunicação – Jornalismo


Orientador: Prof. Dr. Alexandre Rocha da Silva

                    
                           
                               


 São Leopoldo
 2006







RESUMO

 Esta monografia é uma reflexão crítica sobre o jornalismo vigente que ocorre pelo reconhecimento de características - como a subjetividade, por exemplo - ausentes das práticas jornalísticas cotidianas. O principal objetivo deste trabalho é tentar criar novas linguagens para o jornalismo. O método utilizado é a pesquisa teórica, a reflexão e a pesquisa de campo. O trabalho demonstra que é possível criar um jornalismo insubmisso às estruturas do jornalismo dominante.


Palavras-chave: Jornalismo - Artes - Rizoma























 SUMÁRIO



1 Introdução.................................................................................................5

2 On The Road, os Hippies e a Estrada.....................................................9

3 Novo Jornalismo.....................................................................................20

4 O Jornalismo Gonzo...............................................................................27

5 O Jornalismo Vagabundo......................................................................35

6 Notas Sobre a Experimentação em Jornalismo Vagabundo..............50
7 Experimentação em Jornalismo Vagabundo.......................................56

8 Considerações Finais..............................................................................75

Referências Bibliográficas........................................................................78









1 Introdução

Esta monografia dispõe-se a apresentar reflexões sobre um novo tipo de jornalismo a ser inventado. Esse novo tipo de jornalismo diferencia-se em relação ao que considero ser o jornalismo dominante. O jornalismo dominante, para mim, é o jornalismo que é contemplado diariamente, que fala em nome das grandes instituições e que insiste em ser reflexo de um mundo duro, inflexível, mas, ao mesmo tempo, simples demais.
Chamei de Jornalismo Vagabundo essa proposta, pois o Vagabundo simboliza uma forma de insubmissão a toda cultura dominante. O vagabundo vive uma vida em movimento, é indiferente ao estado, não tem patrão, nem raízes. Então decidi experimentar o jornalismo como um Vagabundo para, em uma trajetória parecida, ser insubmisso no jornalismo.  
Mas o Jornalismo Vagabundo não seria apenas um novo tipo de jornalismo, mas, também, um agente de crítica. No momento que tento fazer diferente, eu estou criticando, assim meu trabalho não é apenas de criação e invenção.
Para mim, essa monografia é uma crítica feroz contra tudo que me oprime no jornalismo, mas também na vida. O Jornalismo Vagabundo é a minha tentativa de fugir dos grandes centros de controle, seja na vida ou no jornalismo, o que considero indissociável.
Mesmo tendo pouco espaço e pouco tempo, tentei trazer inúmeras manifestações - que comentarei adiante - na tentativa de absorver exterioridades do jornalismo para pensá-lo diferentemente. Falo muito em arte, pois a considero exterior ao jornalismo. Vejo que literatura, poesia, artes plásticas percorrem os jornais e revistas, pois essas manifestações tão ricas atingem a tudo e a todos, mas para mim o jornalismo as utiliza apenas como uma alegoria, pinta suas páginas com arte, mas de forma fútil.
Além de pretender trazer um novo relacionamento com a arte para o jornalismo, também quero trazer novas formas de vida. Discorro muito sobre as possibilidades que são perdidas quando se produz a partir de fórmulas prontas - aquilo que é conhecido e visto por todos. Existem inúmeras formas de vida que não são vistas, pois o jornalismo dominante se impõe como o reflexo da realidade, como se existisse apenas uma realidade.
Quais formas de vida? Bem, tudo aquilo que não é dito, que causa insegurança, o minoritário, o marginal, o diferente. Trago a arte também por considerar que ela tem poucos limites, até idealizo que ela não tem limites; então trazer a arte para o jornalismo - ou para a vida - seria permitir que tudo fosse possível, em ambas as parte.
Se a arte cria mundos - ou compartilha mundos diferentes -, permitir um jornalismo mais artístico seria ampliá-lo indo ao encontro de novos mundos, ou até de criar novos mundos. Ou seja, buscar o que não é visto, ou buscar a arte são faces da mesma moeda.
Apresento, como referi, inúmeras manifestações culturais na monografia - que comentarei nesta parte - que pouca relação tem com o jornalismo. Também trago duas manifestações jornalísticas ligadas à literatura para demonstrar que existem formas de jornalismo que fazem ou fizeram diferente, que pensaram diferente e que minha intenção não é nova e, sim, um processo.
 Mesmo que critique essas manifestações, elas são importantes para fortalecer minha proposta. Também fiz um trabalho prático dessa forma de jornalismo vagabundo, a parte final de meu trabalho, onde tento expressar todo o processo de estudo durante a monografia.
A monografia está montada da seguinte forma: no primeiro capítulo eu trabalho com uma manifestação cultural, a Contracultura, mais especificamente os Hippies, e uma obra do literato Jack Kerouac, On the Road. Trago essas duas manifestações, pois elas simbolizam a luta contra a cultura dominante e a negação de valores sociais. Tanto Kerouac quanto os Hippies influenciaram o meu pensar e ajudaram a compor esta proposta.
A luta dos Hippies contra a cultura dominante, para mim, foi muito mais importante que inúmeras barricadas revolucionárias. Seu símbolo máximo, a negação, me mostrou que eu poderia negar e ser insubmisso ao jornalismo dominante. Os Hippies negaram de todas as formas o rosto paterno e é exatamente isso que quero fazer no jornalismo: negar o pai-patrão, as estruturas rígidas das redações, os manuais, a moral conservadora que impede que novas manifestações jornalísticas apareçam.
Já Kerouac caiu fora da América conservadora para ir ao encontro de outra América e demonstrou-me que eu poderia perder a identidade de jornalista branco-classe-média, permitindo-me ir ao encontro a tudo que esse olhar branco não enxerga.
 No segundo capítulo eu apresento uma manifestação jornalística de forte importância, o Novo Jornalismo. Proponho-me a dialogar com esse tema pelo fato de que o Novo Jornalismo é um agente importante no contexto cultural do Ocidente e, principalmente, pelo gênero ter possibilitado a expansão da linguagem do jornalismo.
Mas, neste capítulo, muito mais que apologia, eu faço críticas, muitas vezes, agressivas ao gênero, pois mesmo ele permitindo o contato com certa exterioridade do jornalismo, a literatura, essa exterioridade se vê presa a estruturas, o que demonstra que o Novo Jornalismo não quis flexibilizar totalmente a linguagem e não conseguiu fugir de certos vícios. O Novo Jornalismo para mim seria uma forma de não fazer jornalismo.  
Como digo no capítulo: O Novo Jornalismo expôs mais os “draminhas” psicológicos de uma realidade íntegra e fechada em si mesma. O Novo Jornalismo, por querer a todo custo retratar a vida, ficou preso nela não buscando as potencialidades que estão além da realidade cotidiana - fato praticamente impossível em um best-seller, em um ganhador de um prêmio Pulitzer ou de alguém que, por suas obras majestosas, foi imortalizado por Hollywood, ou seja, pessoas que estão irremediavelmente integradas na estrutura social.
No terceiro capítulo eu apresento o Gonzo Jornalismo. Proponho-me a fazer dialogar o Jornalismo Vagabundo e o Jornalismo Gonzo por querer mostrar que o tipo de jornalismo que me disponho a experimentar não é um fato isolado, e principalmente, pelo fato de que o Gonzo fez ligações com alguns elementos que estão relacionados a esta reflexão.
O Gonzo talvez seja o jornalismo marginal mais conhecido do Ocidente. Ele trouxe renovações para a linguagem jornalística a partir de abuso de drogas e choque contra a moral dominante. Mas o Jornalismo Vagabundo, mesmo estando ligado a máquinas semelhantes às do Gonzo, trouxe novas máquinas e ligações, o que torna nossos jornalismos manifestações diferenciadas. O Gonzo, para mim, não é um modelo a ser seguido e sim um agente de diálogo e um tipo sensível de inspiração.
 O quarto capítulo é o mais importante, pois é o momento em que eu apresento o Jornalismo Vagabundo, ligo com as manifestações dos capítulos anteriores, reflito o jornalismo e faço críticas severas às formas de jornalismo que não me interessam. No quinto capítulo eu discorro sobre como o texto do capítulo sexto foi feito - parte onde apresento em prática o Jornalismo Vagabundo - e, ao mesmo tempo, faço uma ligação entre os enunciados dos outros capítulos com essa prática em Jornalismo Vagabundo.
No capítulo sétimo e último demonstro em prática o jornalismo que desejo. O texto a partir de viagens subjetivas e objetivas mostra uma das formas de fazer jornalismo a que me proponho. Um jornalismo artístico, marginal e vagabundo. Também será visto ao longo de todos os capítulos citações e referências de inúmeras artistas, pois, como já referi, o jornalismo vagabundo está ligado à arte.
Os métodos que utilizei para compor a monografia foram quase todos teóricos. Li, absorvi os autores e principalmente refleti muito. Em muitos casos, utilizo as citações para justificar o meu posicionamento e uso os autores apenas como referência. Apenas a parte da experimentação é que programei viagens, fiz entrevistas e trabalho de campo para produzir o texto.
Este trabalho é um ensaio longo. Um texto quase literário, algo entre o didático e o poético. Sei que apenas meu ponto de vista aqui está em jogo, o que é perigoso, pois não há provas científicas. Ele é tão informal quanto minha proposta. Mas não haveria outra forma de tratar de tal assunto.  





2 On The Road, os Hippies e a Estrada

Como pensar em um jornalismo experimentador de novas linguagens? Como ir ao encontro de novas formas de vida, para dar nova vida ao jornalismo? Como aumentar os campos possíveis da linguagem jornalística? Como experimentar o jornalismo como um Vagabundo? Essas perguntas, e muitas outras, são as que eu faço ao longo dessa jornada de busca de um “devir-vagabundo” para o jornalismo.
 Entre tantas possibilidades de linguagens, entre tantas formas de vida, preferi agir, neste capítulo, literalmente, e procurei esse “devir-vagabundo” entre a vagabundagem da cultura do ocidente. Jack Kerouac e os Hippies, os temas desta parte do trabalho, me permitiram compreender a estrada como um caminho de busca e de negação.
A busca, vista em Kerouac, pode ser associada à minha busca por um jornalismo autoral e singular. A negação dos Hippies é idêntica à minha negação em relação às estruturas burocráticas do jornalismo. A estrada é um emaranhado, com poucos limites, que está presente nesses dois agentes e no Jornalismo Vagabundo.
Como disse, eu poderia ter utilizado diversos símbolos, as manifestações culturais que considero válidas na história são inúmeras. Pensei na Revolução Francesa, na guerrilha urbana brasileira, pensei em Rimbaud e em Thoreau, mas a contestação dos Hippies e a busca de iluminação de Kerouac apareceram como uma alternativa menos barulhenta e mais radical.
A contestação dos Hippies em seu símbolo máximo, a negação, para mim foi muito mais importantes que as barricadas revolucionárias, e, como eles, muito mais que o combate direto, pretendo dar ao jornalismo um caráter de negação, negação do pai-patrão, negação das estruturas rígidas das redações, negação dos manuais, negação da moral conservadora que impede que novas manifestações jornalísticas apareçam.
A busca de Kerouac, essa busca egocêntrica de perda de identidade, demonstrou-me que eu poderia perder a identidade de jornalista branco-classe-média, permitindo-me ir ao encontro a tudo que esse olhar branco não enxerga. 
Aqui falo um pouco desses dois símbolos que deram à impulsão necessária que eu precisava para continuar desenvolvendo minha proposta. Em muitos momentos, símbolos que desenvolvo nos Hippies e em Kerouac se misturam, mas esse ato, que é intencional, demonstra que existe uma forte ligação entre ambos, e principalmente, entre eles e o jornalismo que proponho. Pode parecer, à primeira vista, que ponho o jornalismo de lado, mas tudo que falo aqui pode ser aplicado ao jornalismo. Como? Espero responder até o término desta monografia de caráter ensaístico.  .
O romance On the Road, de Jack Kerouac, foi lançado em 1957, após ter ficado anos na fila de espera de inúmeras editoras. Mesmo tendo recebido péssimas críticas, na época, em poucos anos tornou-se um símbolo de forte expressão, sendo considerado uma das maiores obras da literatura norte-americana. (Kerouac, 2004, p. prefácio)
O livro foi (e ainda é) um marco na cultura ocidental, não apenas pela sua disseminação massiva, mas por ter possibilitado renovações cruciais na linguagem literária e ter influência direta em inúmeros movimentos culturais e artísticos.

Toda uma legião de escritores, artistas, cineastas, dramaturgos e músicos foi profundamente influenciada pelo estilo e pelas visões de Kerouac. Difícil imaginar a obra de Sam Shepard, de Bob Dylan, de Bukowski, de Jim Morrison, de Lou Reed, de Tom Wolfe, de Win Wenders, de Hunter Thompson, de Bono Vox, de Jim Jarmush, de Beck, de Tom Waits, de Gus Van Sant sem On the Road. (Keroauc, 2004, p. prefácio)

Conjuntamente a esses artistas renomados que fazem parte da história da arte ocidental, um outro grupo de forte expressão, que irei comentar mais adiante, também foi influenciado pela obra, os hippies – grupo que produziu uma das manifestações mais criativas nos âmbitos sociais e culturais do século 20. Além disso, o livro é a obra mais importante da Geração Beat[1].   
 É inegável a importância da obra que, muito mais que um mero trabalho literário, é um mito pop precursor de inúmeras linguagens artísticas e culturais, situação vista em poucas obras da literatura em nossa história.  
Em relação à mítica que envolve a obra, ela já se manifesta no método inicial de produção textual que o autor utilizou. A primeira versão do livro foi redigida em apenas três semanas.

A versão original de On the Road foi escrita entre 9 e 27 de abril de 1951 num rolo de papel para telex, num total de quarenta metros ininterruptos de prosa em espaço um sem parágrafo, com Kerouac aditivado por doses colossais de benzedrina, suando uma camiseta atrás da outra, datilografando como um alucinado, movido por aquilo que o poeta Lawrence Ferlinguetti certa vez chamou de “febre onívora de observação . (Bueno, 2004, p. 10)
 
Este método, original e diferenciado de trabalho contínuo, gerou mais de 600 páginas. A intenção de Kerouac poderia ser associada a um tipo de escrita típica dos autores surrealistas, a “escrita automática”. Esse tipo de criação textual era “um pensamento ditado na ausência de todo controlo exercido pela razão, e fora de quaisquer preocupações estéticas ou morais.” (Klingsohr-Leroy, 2004, p.6)
O método renomeado por Kerouac como “prosa espontânea”, permitia fluir as imagens e idéias “sem desvios repressivos, sem se enrolar todo em inibições literárias e temores gramaticais” (Kerouac, 2004, p.23) trazendo à tona a pessoa para o texto. Não só a mente pensante, a consciência reflexiva, mas a pessoa como totalidade: suas paixões, emoções, nervos e carne.” (Kerouac, 2004, p. 11)
Mas é claro que a obra foi reescrita a partir de um trabalho sério de edição. O próprio autor relata que fez inúmeras versões para que ela fosse aceita por uma editora. Esse fato é citado por inúmeros puristas que depreciam o livro por ele não ter sido apresentado em forma bruta, mas, para mim, esse primeiro trabalho, esses fluxo, essa catarse espontânea pode ser compreendida como parte de um método maior que gerou a obra em sua completude. Apenas esse método inicial possibilitou a composição da obra final.   
O trabalho editorial e as inúmeras versões escritas por Kerouac compuseram uma obra legível e com linguagem acessível. O texto flui, é prazeroso, causa empatia e, de certa forma, é de fácil acesso. Felizmente, esse fácil acesso à obra não se vincula com um tipo de simplicidade frívola, pois a linguagem do livro é composta de toda uma riqueza de símbolos.
Visões oníricas, percepções extra-sensoriais, pequenos e grandes surtos literários, devaneios filosóficos, contemplações lisérgicas e um tipo de fluxo esquizóide dão um contorno novo para imagens próprias do cotidiano, apresentando o olhar de Kerouac, um olhar muito além das convenções sociais ou artísticas.  Essas visões expostas a partir do olhar de Kerouac, olhar que enxerga além do visível, extrapolam o cotidiano.
 Um dos agentes criadores desse olhar é o abuso de drogas por parte de Kerouac. As drogas permitem, para os beats, encarar e recriar a vida, permitem compor cenários e dar novas significações a cenas e acontecimentos. Inúmeros autores, músicos, filósofos, poetas utilizaram drogas como forma de expansão da mente ou como fuga (fuga que pode ser associada à busca de um exterior criativo).
É conhecido no histórico de grandes mestres como Rimbaud, Verlaine, Poe, Baudelaire, Nietzsche, Huxley, Burroughs, entre tantos, essa busca de exterioridade. Quanto a Kerouac, o uso de drogas teve um papel significativo, mas percebe-se que seu olhar não é apenas um olhar de um corpo drogado. A sua necessidade ou desejo de querer conhecer o outro lado (o outro lado da vida), a própria saúde frágil possibilitou a Kerouac criar um olhar-vidente.
Esse olhar, que atravessa todo o livro, é o ponto chave onde se mesclam o estilo de escrita e o posicionamento de Kerouac frente à vida. A escrita é o fluxo artístico que permitiu verbalizar os aspectos da vida, seja a vida marginalizada que Kerouac tanto persegue, seja a vida dominante da qual ele tenta, de todas as formas, afastar-se.   
O livro, autobiográfico, narra sete anos de peregrinação do autor por diversas regiões dos Estados Unidos, em uma busca constante de um contato com a vida marginalizada, na tentativa de cair fora da vida cheia de amarras da classe média, branca, masculina norte-americana. .
Essa peregrinação foi feita por praticamente todos os Estados Unidos até o México. Kerouac percorreu milhares de quilômetros de carona, em carros destruídos, de ônibus ou, como os andarilhos vagabundos, a pé, tendo sempre a estrada como ponto de fuga e encontro.
A estrada, como cita o próprio título, é o grande símbolo do livro. Foi a estrada que permitiu a Kerouac contatar a América que a América não vê, a América negra, a América latina, a América da arte, a América

onde estão os músicos de jazz, os vagabundos que atravessam o país mamando numa garrafa de uísque ordinário, os mexicanos pobres de olhar cândido que oferecem maconha e mulheres aos forasteiros.     (Vários Autores, 1984, p.60)
 
A América perdida e marginalizada, muito além dos padrões típicos da América Branca dos bem-nascidos e dos bens-alimentados.
Essas Américas de Kerouac podem ser contempladas a partir dos personagens, em boa parte Homéricos, que atravessam o livro.  Aliás, há, no livro, uma tipificação bem estruturada de personagens que poderia resumir quem Kerouac contatou ao longo de sua peregrinação.
 Essa tipificação poderia ser dividida em três: os marginalizados, o cidadão típico e os Beats. Os marginalizados como negros, homossexuais, mexicanos, índios, jazzistas, vagabundos, loucos são tratados ao longo do livro de forma quase mítica. Kerouac, a todo o momento, procura interagir com esses grupos, como se eles fossem à fonte de busca de sua transcendência. Essa busca não se limita a uma busca propriamente literária, para composição de personagens, o que poderia se chamar a literatura dos vencidos, mas principalmente simboliza a busca da superação de si na tentativa de destruir uma marca identitária.
Kerouac, em muitos momentos, se torna negro ou mexicano - vê-se isso em suas inúmeras investidas e casos com garotas dessas raças -, vagabundo - Kerouac vive a estrada ao lado de vagabundos se tornando um vagabundo-, vive na penúria total, trabalhando com pessoas das classes mais pobres ou, simplesmente, entra em delírios poéticos e existenciais compondo um tipo de eu esquizofrênico.
Outro tipo de personagem é o típico cidadão branco, careta, classe média e demasiado racional: o cidadão médio norte-americano. Esses personagens mesmo não desenvolvendo uma atuação poética no livro, servem de contraponto aos personagens marginais, aliás, seria impossível Kerouac não contatá-los. A esses, Kerouac sempre busca distância e demonstra certo repúdio, aliás, repúdio visível. E muito mais que um repúdio, ele busca a perda dessa identidade, pois Kerouac foi (e poderia ter sido) um cidadão típico norte-americano.
O terceiro grupo são os seus comparsas, os Beats. Os Beats seriam uma mescla desses dois grupos. Eles eram jovens oriundos da academia, filhos da sociedade branca que se marginalizaram voluntariamente, e se tornaram o grupo de literatos mais famoso do Ocidente, sendo os primeiros autores da história a terem tiragens de milhares de exemplares em edições de poesia, e, como Kerouac, foram os expoentes e precursores da Contracultura.
Se Kerouac tivesse ficado em sua cidade natal, ele poderia ter encontrado todos os tipos que percorrem o livro. As cidades são feitas da mistura de raças e classes. Kerouac morava em Nova Jersey, um grande centro ao lado da metrópole Nova Yorque, mas aliou a sua necessidade de contatar com o marginal a uma atitude radical: não permitir se enraizar em nenhum ponto geográfico.
A estrada é um símbolo forte, implica movimento, na estrada não se possui família, emprego, não se tem estabilidade, eixo ou centro. Kerouac dormiu com mendigos em estações ferroviárias, dividiu garrafas de vinho com vagabundos em caçambas de caminhões, colheu frutas em pomares, amou garotas negras, ouviu bandas de jazz em todos os pontos da América, fumou maconha com mexicanos e passou noites ao relento. Em sua peregrinação, ele assistiu de tudo um pouco, contatou inúmeras realidades e se transformou, tornando-se outro, ou, melhor, outros.
Ao longo do livro percebe-se que ele torna-se feliz apenas quando está em movimento, e o livro é uma ode ao movimento, como o próprio diz: “Percebemos que estávamos deixando para trás toda a confusão e o absurdo, desempenhando a única função nobre de nossa época: mover-se”. (2004, p.170)
  Na estrada não há nem submissão à natureza, pois o clima na estrada se modifica, estrada aberta, sem fim, como cita um dos personagens em uma passagem do livro, enquanto se preparavam para cair na estrada: “Não há nada no mundo com que nos preocuparmos, e devemos COMPREENDER que, na verdade, REALMENTE, não precisamos nos preocupar com ABSOLUTAMENTE NADA”. (2004, p. 170)
Uma metáfora que simboliza muito bem esse espírito de constante mudança (ou de perda de estabilidade) são as inúmeras imagens que atravessam o livro, detalhando rios. O rio e sua constante mudança e seu fim desconhecido, rio que, muitas vezes, não se finda, pois desemboca no mar, e o que Kerouac e sua trupe procuravam era uma rota idêntica a de um rio, uma rota que os levasse ao desconhecido.
O livro foi lançado em 1957, mas narra histórias acontecidas entre 1947 e 1950, ou seja, os ideais e desejos de Kerouac são referentes a uma época de pouca agitação cultural nos Estados Unidos. Mas, mais de dez anos depois dos últimos relatos de On TheRoad,  toda essa ideologia em busca de uma vida nômade e vagabunda foram as premissas básicas para milhões de jovens, os Hippies.
Se On The Road influenciou diretamente os Hippies – o livro foi considerado a bíblia do grupo – ou se suas idéias apenas coincidiram, não se sabe, mas quase tudo que foi experimentado em On The Road, foi experimentado pelos Hippies. Os Hippies é um capítulo a parte na história do ocidente. Em uma época nebulosa, os anos 60, onde a juventude ganha uma identidade expressiva e torna-se precursora de toda uma cultura de contestação - a Contracultura -, os Hippies foram um dos mais marcantes modelos de juventude.
Essa marca, a primeira vista, pode ser entendida pelo espaço que eles tiveram na mídia. Além de ser um grupo muito expressivo e ter ganhado milhões de adeptos - em boa parte ícones de manifestações artísticas -, essa visibilidade na mídia se deu também pelo seu estilo de vida pacífico, quase alienado, contrastando com inúmeros focos revolucionários que apareceram na época.
Sabe-se que a mídia preferiu dar atenção ao caráter paz e amor dos Hippies, na tentativa de sufocar as vanguardas revolucionárias que eram muitas em todo o Ocidente (Home, 1999 p.110). Como no caso das guerrilhas na América do Sul, dos Panteras Negras e de seus afiliados os Panteras Brancas nos Estados Unidos, dos Situacionistas e do grupo Provos na Europa, entre tantos movimentos que foram encabeçados pela juventude e que tiveram pouca repercussão na mídia nos anos 60.
Mas não negando o valor de todos esses grupos, prefiro aqui dar mais ênfase aos Hippies, pois considero que sua contestação que, a primeira vista, pode ser entendida como alienada, seja muito mais conveniente para o jornalismo que proponho.
Os Hippies aparecem nos Estados Unidos, no início dos anos sessenta, como uma forma de contestação contra tudo que representa a cultura branca, masculina e adulta.
A contra cultura nasce de um choque de gerações, os jovens cansados da cultura dada de seus pais chocam-se contra ela de forma violenta. (Roszak, 1972, p.34)

 Esse choque contra a cultura dominante aparece, principalmente, como revolta contra o rosto paterno. Eles não representavam mão-de-obra produtiva e negavam-se a se submeter ao patrão, envolvendo-se apenas em trabalhos artísticos, comunitário ou, simplesmente, viviam, sem exagero, como mendigos.
 Eles usavam drogas em excesso, eram contra ações como a guerra do Vietnã e negavam as ideologias do Estado. Eles se contrapunham à família norte-americana, tentando se apartar da cultura conservadora dos seus pais. Eles cultuavam religiões não-cristãs, principalmente as orientais, que não possuem um Deus único. Seus mestres eram figuras libertárias e não repressivas como budistas, músicos, artistas, revolucionários, não eram o padre e muito menos o professor. Ou seja, tentavam negar boa parte das formas que os símbolos máximos de repressão do regime patriarcal podem tomar.
A essa luta contra a repressão paternal, associava-se uma necessidade de manter-se jovem a partir de um ideal hedonista. A abundância econômica e certa flexibilidade educativa, que prolongava a vida escolar, nos Estados Unidos, permitiam uma infantilização generalizada, fazendo com que os jovens se acostumassem com a juventude, os levando a repudiar qualquer tipo de disciplina.

Os jovens ao tomar como natural a segurança econômica - sobre ela constroem uma nova e descomprometida personalidade, talvez maculada por um ócio irresponsável, mas também tocada por um espírito sincero (Roszak, 1972, p.41)

(...)

Eles consideram o prazer e a liberdade como direitos humanos e começam a fazer perguntas agressivas aquelas forças que insistem em meio a uma óbvia abundancia, na necessidade de disciplina.  (Roszak, 1972, p.43)


A liberdade e o prazer eram utilizados como axiomas entre os Hippies, culminando em práticas vistas como aberrantes a sociedade e alienadas para os focos revolucionários. Realmente, comparado às vanguardas revolucionárias, a revolta dos Hippies poderia parecer uma revolta infantil. Os Hippies preferiram negar a lutar agressivamente, além de não tentar produzir um retorno de ideais adultos, como a criação de um novo estado.
Mas não querer ser adulto para não fazer parte de uma sociedade que gerou inúmeras guerras e que é portadora de uma moral reacionária, e manter-se infantil para não ser condescendente com uma cultura decadente e envelhecida, é uma atitude contestatória de extrema validade, não?
E mesmo que essa luta fosse silenciosa e os levasse para um tipo de alienação, que apenas nega e pouco faz, essa ação foi tão importante quanto os ideais da luta armada.

Muito embora os radicais da velha linha julguem que lhes falte potencial revolucionário, é claro que os hippies tiveram êxito em personificar a rebeldia radical – aquilo que Marcuse chamou de Grande Recusa (Roszak, 1972, p.50)

A grande recusa dos Hippies foi um dos poucos ideais que funcionaram na época. Todos os movimentos que tentavam criar um estado alternativo ao capitalista foram frustrados. Muito mais que um ideal de salvação geral e de uma busca de igualdade social, os hippies apenas negaram a cultura branca e buscaram uma nova forma de viver, a partir de um ideal egocêntrico e hedonista que foi concretizado.
Parece que os Hippies compreenderam que a luta já estava perdida no início e preferiram a fuga. Largaram tudo, deram um tempo, caíram na estrada, preferiram não lutar e sim viver. Mesmo que essa busca não pudesse ser eterna, pois todos eles foram engolidos pelo “sistema” - praticamente desapareceram no início dos anos 70 -, eles viveram o momento com olhos de quem não enxerga o futuro e sim de quem busca a contemplação do agora, mesmo que seja efêmera.
A busca de uma possível transcendência além dos valores culturais vigentes, a contestação contra o rosto paterno e a manutenção da infância foram permitidas, principalmente, por um símbolo já comentado em Kerouac: a estrada.  “Os departamentos de imigração da Europa registram a cada ano mais ou menos dez mil hippies desgrenhados que se dirigem para o Oriente” (Roszak, 1972, p.44).
E eles não se encaminhavam apenas para o Oriente, eles se encaminhavam para qualquer lugar, qualquer ponto que permitisse a fuga e a perda, eles se encaminhavam em direção ao espírito da estrada usufruindo, ao máximo, do axioma do ser vagabundo: Sem destino.
  A utilização do país (qualquer país) como uma posição geográfica desconhecida, um ponto a ser explorado ou, sendo mais radical, a utilização do planeta como um todo sem fronteiras era o símbolo da busca da liberdade, da inexistência de barreiras e, principalmente, como diz Rozsak: “Muito mais uma fuga ‘de’ do que ‘para’” (Roszak, 1972, p.44).
Falando novamente sobre a estrada, agora enfocando os Hippies, reforço o grande símbolo do meu trabalho: a estrada e o devir vagabundo que ela permite. E a estrada não se limita como símbolo apenas dos Hippies e de Keroauc. Ela é símbolo de inúmeros ícones da cultura Ocidental como Rimbaud, Walt Whitman, Bukowski, toda a geração Beat, Hemingway, Jack London, Van Gogh, Gauguin, os inúmeros exilados políticos, toda uma gama de agentes que tiveram a necessidade de viver uma vida em movimento.
Lembro-me de uma citação de Deleuze em que ele fala sobre a escrita nômade: “A escrita esposa uma máquina de guerra e linhas de fuga, abandona os estratos, as segmentaridades, o aparelho de estado”, (Deleuze, 35, 1995) mas pensando em quem viveu na estrada, essa escrita poderia ser associada à vida, a vida que busca a liberdade muito além das instituições.
Essa vida, anárquica, anti-institucional, que faz apologia e vive o movimento incessante é onde os sonhos deixam de ser subjetivos, onde os encontros e perdas acontecem, onde a vida se encontra em estado embrionário e que tudo que o sedentarismo nos impõe é negado e posto de lado.
Gostaria de finalizar este capítulo com um trecho de um dos textos do maior vagabundo da literatura Norte-americana, Walt Whitman:

Nós não devemos ficar aqui parados, por mais doces que sejam estes armazéns fornidos, por mais conveniente que pareça esta casa, nós aqui não devemos ficar, por mais abrigado que seja esse porto e por mais calmas que estas águas sejam, aqui nós não devemos ancorar; por mais acolhedora que seja a hospitalidade que nos cerca, não nos é permitido desfrutá-la senão por pouco tempo. (Whitman, 1983, p.75)




                                 
3 Novo Jornalismo

Este capítulo tem como enfoque um gênero jornalístico inovador, o Novo Jornalismo. Proponho-me a dialogar com esse tema pelo fato de que o Novo Jornalismo é um agente importante no contexto cultural do Ocidente e, principalmente, pelo gênero ter possibilitado a expansão da linguagem do jornalismo a partir da literatura.
Mas, como se verá ao longo deste capítulo, apresento críticas, muitas vezes, agressivas sobre o gênero, pois mesmo ele permitindo o contato com certa exterioridade do jornalismo, essa exterioridade se vê presa a estruturas, o que demonstra que o Novo Jornalismo não quis flexibilizar totalmente a linguagem e não conseguiu fugir de certos vícios.
Essas críticas aparecem, principalmente, em contraposições entre o Novo Jornalismo e Gonzo Jornalismo; assim, reforço algumas idéias do Gonzo e critico uma estrutura que, para mim, já era envelhecida em seu surgimento. 
Abordo aqui o Novo Jornalismo em sua fase áurea, os anos 60, por isso, em boa parte do texto, falo do gênero no passado. Além disso, apresento apenas três autores, os mais renomados do gênero.
No início do capítulo, exponho fatores positivos e trago referências bibliográficas, o que se contrapõe ao resto do texto, onde trago exposições mais livres e um discurso quase niilista. O Novo Jornalismo apresenta poucas características que se assemelham ao tipo de jornalismo que pretendo experimentar, o Jornalismo Vagabundo, e esse capítulo demonstra principalmente o que não pretendo fazer, ao fazer jornalismo. 

O Novo Jornalismo atinge seu auge nos anos 60, nos Estados Unidos, principalmente nas reportagens de Tom Wolfe, Norman Mailer e Truman Capote. Na época, esses autores influenciaram o fazer jornalístico, criando toda uma moda estilística que era vista em diversos meios de comunicação nos Estados Unidos, como as revistas Esquire e Rolling Stone, e os jornais de The Atlantic Montly e New York Times.
O grande feito do Novo Jornalismo foi unir a veracidade do fato jornalístico com técnicas típicas da literatura. Segundo Tom Wolfe o estilo

se valeu de recursos que por acaso se originaram do romance e os combinou com todos os outros recursos conhecidos da prosa. E que ao mesmo tempo, bem além das questões da técnica, desfrutou uma vantagem tão óbvia, tão intrínseca, que as pessoas praticamente ignoram sua influência: o simples fato de que o leitor sabe que aquilo aconteceu (Wolfe, 1989, p.8)

A tentativa concretizada de alargar o campo jornalístico com algo tão exterior a ele, a literatura, permitiu uma profundidade maior na relação do jornalista com o acontecimento, abrindo brechas para um jornalismo mais introspectivo que dava

importância de se enfocar a atenção na experiência emocional subjetiva, do ponto de vista dramatizado, da sensibilidade única, e de se buscar significados mais profundos ocultos pela aparência.(Wolfe, 1989, p.9)

Esse nível psicológico permitia a caracterização das figuras humanas relacionadas ao fato, possibilitando o desenvolvimento de personagens com um perfil minucioso e detalhado.
 Uma das técnicas mais importantes dos Novos Jornalistas era 

cultivar o hábito de permanecer com pessoas potenciais durante dias, semanas ou meses, tomando notas, entrevistando, observando e aguardando que algo dramático e revelador aconteça (Wolfe, 1989, p.10)


A relação íntima entre o escritor e a figura humana do fato, para extrair o máximo de efeitos psicológicos, poderia ser pensada como uma ação não-jornalística, pois análises desse tipo, por possibilitar diversas formas de interpretação, são irremediavelmente parciais.  
Mas, mesmo com esse mergulho psicológico, os autores utilizavam técnicas de distanciamento como o uso do narrador em terceira pessoa. Essa técnica tornava o texto impessoal, dando a noção de que o jornalista não interferia no fato a partir de opiniões e juízos de valores. Isso fazia com que o texto perdesse elementos literários, ganhando elementos próprios do jornalismo.
O distanciamento da literatura aumentava, ainda mais, por não ser usual, entre os “Novos Jornalistas”, a ficção. Aliás, os grandes expoentes do movimento se engajavam, claramente, em tentar dar a imagem mais real possível do fato, sem distorções. Nota-se, assim, respeito em relação ao leitor e o acordo de que o que era descrito era autêntico.
 Considerando a imersão na realidade que permitia extrair os pormenores do fato, o Novo Jornalismo seria a transgressão dos valores principais do jornalismo diário. O jornalismo que é lido diariamente, pela estrutura das redações, impõe um tempo reduzido para coletar dados para compor as matérias. Também a necessidade de um fluxo veloz de informação impõe um texto claro, objetivo e de digestão rápida e, principalmente, com uma linguagem limitada - praticamente tudo que os autores do Novo Jornalismo se negavam em seus trabalhos.
Não seria possível pensar em um jornalismo diário, com seus prazos, usufruindo de técnicas do Novo Jornalismo como:

A construção cena a cena; a reprodução do diálogo das personagens; a exploração das variadas possibilidades expressivas do foco narrativo (inclusive com o emprego do fluxo de consciência, como nos melhores romances psicológicos); o registro de gestos, cotidianos, hábitos, modos, estilo de decoração, roupas, comportamento e outros detalhes simbólicos, para reforçar a aparência da realidade. (Czarbonai, 2003, p.).

O detalhismo metódico de apuração de dados que era aliado a uma construção textual calma e bem pensada, compondo relatos com uma necessidade de ir muito além do aparente e do superficial, deu ao jornalismo uma nova função. No caso do leitor, esse tipo de texto elevou a apreciação jornalística à função artística de permitir fruição. No caso do escritor, impôs um trabalho de escultor típico ao do literato, deixando de lado os vícios típicos do jornalismo fast food e sua necessidade de quantidade e não de qualidade.
Mesmo sendo visto em matérias de jornais e revistas, o ápice do Novo Jornalismo se deu no formato de livro – uma evolução do jornalismo que era esperada. Se o romance é o ponto máximo da literatura, o livro é o ponto máximo do jornalismo, pois permite que a reportagem seja fechada em um formato muito mais duradouro. Também o status de se publicar em um livro é muito maior, principalmente em um livro de um único autor, o que cria uma obra fechada e autoral, “a marca do autor para a eternidade”.
Dentre os livros mais importantes do Novo Jornalismo está a obra de Truman Capote, A Sangue Frio, lançada em 1966. Truman, para compor a reportagem que narra fatos de um assassinato de uma família no Kansas, cultivou anos de contato íntimo entre diversos protagonistas, mergulhando no fato para extrair um dos registros mais importantes de não-ficção do Novo Jornalismo. Toda sua trajetória, para a composição da obra, foi retratada no filme ganhador de Oscar em 2006, Capote.
Outro livro, que poderia ser considerado um clássico do Novo Jornalismo, é Décadas Púrpuras, do autor de diversos best-sellers, Tom Wolfe. Tom Wolfe, que se considerava a voz dos anos sessenta - condição que ele citava superar o poder da literatura em retratar a sociedade norte-americana (Wolfe, 1989, p.8) – no livro, quase conseguiu isso.
Décadas púrpuras expõe os focos de manifestações culturais e sociais nessa década tão conturbada – em boa parte, o que acontecia de interessante no país. O livro é recheado de histórias sobre colunáveis marginais, Panteras Negras, artistas famosos, correntes artísticas alternativas e um relato memorável sobre um grupo de hippies que distribuía drogas em happenings.
Outro relato interessante, que deve ser considerado, é A Luta, do ganhador do prêmio Pulitzer, Norman Mailer. O livro narra uma das grandes lutas de boxe da história, mas é muito mais que uma mera peça sobre esportes. A Luta é um relato intimista e audacioso, rico em detalhes, com uma linguagem que difere, em muito, do jornalismo esportivo, sendo uma narrativa literária que tem como pano de fundo um acontecimento esportivo.
Aliás, Mailer é um caso especial entre os Novos Jornalistas por, ao longo de sua carreira, ter escrito e contatado diversos escritores marginais norte-americanos. Ele é citado por Bukowski em seu livro Hollywood, além de ter escrito relatos sobre os Beats e ser um admirador confesso de William Burroughs - um dos escritores mais radicais do século passado.  
Todas essas características retratadas apontam para diversos lados, tanto positivos, quanto negativos. Um dos lados positivos é óbvio: a permissão de um aprimoramento do jornalismo a partir de um relacionamento com a literatura. Um dos lados negativos é que essa relação cria um tipo de segregação, pois necessita de um leitor mais intelectualizado que o do jornalismo tradicional.
A literatura é um dos gêneros máximos da arte ocidental, e é elitista. O Novo Jornalismo, por compartilhar desses elementos literários, requer leitores que tenham a mesma bagagem cultural que os leitores de literatura. Além disso, no caso das obras em formato de livro, há uma necessidade de se despender de dinheiro e tempo para adquirir e ler a obra.
 Em relação à produção de uma obra no estilo, são poucos os jornalistas que despendem de tempo para manter uma rotina de trabalho tão árdua, e mais ainda, são poucos os que têm o refinamento para produzir um texto de caráter introspectivo.
O Novo Jornalismo talvez seja um tipo de insurreição do mundo jornalístico contra uma possível pobreza da linguagem jornalística, e uma glorificação da maestria e grandiosidade da literatura. Mas essa idolatria da literatura talvez não seja nada mais que uma idealização “romanceada” de um gênero secular. 
Mesmo assim, o Novo Jornalismo apenas se tornou grande dentro da linguagem jornalística, não conseguindo se igualar à literatura. Tudo é permitido na literatura, tudo. Mundos se criam, o céu cai, Fausto faz um pacto com o demônio, demônios atingem o poder da terra. Em Kafka, um homem torna-se barata. Em Borges, o tempo é retorcido e perde sua linearidade. Em Allan Poe, uma realidade assustadora toma o poder da realidade cotidiana.
Um dos processos em literatura, citando Deleuze,

é sua capacidade de transpor fronteiras, como aquelas existentes entre o animal, o vegetal, e o mineral, ou entre o humano e o inumano, o individual e o coletivo, o masculino e o feminino, o material e o imaterial. Devir-mulher, devir-animal, eis algumas das passagens de que se é capaz e que a escrita favorece. (Bart, 2000, p. 69)

Tudo é permitido - é claro que desde que seja exposto na linguagem literária. Condição que o Novo Jornalismo nunca conseguiu ou nunca quis. É claro que aqui deve-se pensar no Novo Jornalismo como uma máquina jornalística, com todas as suas limitações, e não com essa liberdade da literatura. Mas se for lembrado o Gonzo Jornalismo, será visto que a liberdade do jornalismo é muito mais flexível que a proposta pelo Novo Jornalismo. 
Considerando o Gonzo, nota-se que as potencialidades do jornalismo são enormes. O Gonzo muito mais que um retrato do real - ou um retrato psicológico do real, como no Novo Jornalismo - foi um produtor de realidades.
Os textos do Gonzo radicalizaram na subjetividade, mas a subjetividade buscada como encontro com o exterior, com o pensar diferentemente, com o que difere do real dado e, principalmente, a subjetividade buscada como perda de uma racionalidade dura, inflexível e controladora.
Os delírios do Gonzo simbolizam o máximo de choque contra tudo que representa o “dominante”, pois ele apresentou um pensamento minoritário e uma destruição dos grandes valores da “vidinha” em todos os pontos do seu corpo, até na cabeça. 
Já o Novo Jornalismo expôs mais os “draminhas” psicológicos de uma realidade íntegra e fechada em si mesma. O Novo Jornalismo, por querer a todo custo retratar a vida, ficou preso nela não buscando as potencialidades que estão além da realidade cotidiana - fato praticamente impossível em um best-seller, em um ganhador de um prêmio Pulitzer ou de alguém que, por suas obras majestosas, foi imortalizado por Hollywood, ou seja, pessoas que estão irremediavelmente integradas na estrutura social.
Outra aspecto a ser referido é que o Gonzo nunca teve medo de se expor. Os textos Gonzo prescindiam de um jornalista como transmissor dos fatos. No Gonzo, Thompson, o pai do Gonzo, era o fato. Ele sempre foi corajoso ao ponto de ser a história. Já o Novo Jornalista sempre ficou de lado como um agente passivo - imagem idêntica a do Deus que tudo vê, nada faz e, em um acesso de megalomania, transmite as tábuas divinas, contendo o que ele considera ser “bom” para seus filhos.
Além disso, as narrativas do Gonzo, por buscarem o máximo de liberdade dentro do jornalismo, permitiram empatia por todos que buscam novas realidades e se regozijam com a liberdade. Já o Novo Jornalismo atingiu o panteão da cultura ocidental, sendo apreciado por quem se regozija com grandes efeitos, grandes obras e por uma falsa erudição que possibilita um status vazio e falacioso.
É claro que os “Novos Jornalistas” em sua fase áurea, os anos 60, foram de certa forma transgressores da linguagem jornalística. Trazer a literatura para o jornalismo não pode ser considerada uma atitude qualquer, mas, falando em transgressão, o Gonzo jogou para todos os lados. O Gonzo chutou os Estados Unidos e sua moral, chutou a si mesmo e seus resíduos de homem branco. Já o Novo Jornalismo retratou os Estados Unidos em uma foto a ser guardada em um porta-retratos ao lado de um Prêmio Pulitzer. 



4 O Jornalismo Gonzo

Em minha intenção de construir um jornalismo autoral - o Jornalismo Vagabundo - entrei em contato com diversas linguagens e manifestações. Três delas foram apresentadas nos capítulos anteriores: a Contracultura e a obra de Jack Kerouac, On the Road e o Novo Jornalismo.  Aqui neste capítulo eu conecto a proposta a um tipo de jornalismo que nasceu junto com a Contracultura e teve uma relação com Kerouac, o jornalismo criado por Hunter Thompson, o Jornalismo Gonzo.
Proponho-me a ligar o Jornalismo Vagabundo ao Jornalismo Gonzo por querer mostrar que o tipo de jornalismo que me proponho a experimentar – um jornalismo diferenciado do dominante – não é um fato isolado, e principalmente, pelo fato de que o Gonzo fez ligações a alguns elementos que estão relacionados à proposta aqui defendida.
O texto a seguir, até agora, foi a parte mais difícil de meu trabalho, pois  existem poucos materiais sobre o estilo, no Brasil. Encontrei apenas um trabalho acadêmico e alguns livros Gonzo publicados, o que é estranho, pois o Gonzo é quase um ícone pop entre os jovens brasileiros.
Há inúmeras confrarias, principalmente na internet, de escritores que aderiram ao estilo - uma turma de escritores e jornalistas que encontraram no Gonzo uma saída alternativa para a composição de textos jornalísticos.  
Poderia ser pensado que trazer um estilo de jornalismo dos anos 60 para os dias de hoje é uma ação retrógrada - dessas que tentam a todo custo negar o presente em função de uma época idealizada.
Mas não vejo assim: a ação de tentar um retorno ao Gonzo não é uma negação ou alienação do presente, e sim uma forma de dialogar com uma época rica e com um bem cultural importante.
O jornalismo dominante insiste em manter certas estruturas - que vão desde a formatação da linguagem até a ideologia institucional – de que não se pode escapar sem se tornar uma aberração ou qualquer coisa que não seja jornalista. Por isso, uma gama de jornalistas ou se negam a fazer jornalismo, partindo para outras linguagens, principalmente a literatura, ou, como Thompson, usurpam da linguagem sua rigidez e inflexibilidade.
No meu caso, até pensei em desconsiderar o Gonzo neste trabalho, pensei no meu tema e nas referências bem antes de ter contato com o estilo, mas acredito que ele reforce minha intenção da possibilidade de imaginar abdutivamente um jornalismo diferenciado.
O engraçado é que não iniciei no Gonzo para chegar à Contracultura, aos Beats e a Kerouac, caminho óbvio e possível, mas fiz o inverso. Talvez por sorte (e por coincidência) eu tenha bebido em fontes parecidas às de Thompson, o que pode tornar nosso jornalismo parecido, mas acredito que não idêntico.
Não pretendo seguir a risca os enunciados do Gonzo, apenas quero um diálogo com os elementos do que considero ser uma manifestação rica dentro do jornalismo.
 O Jornalismo Gonzo aparece no final dos anos 60 como uma forma diferenciada de se fazer jornalismo. Criado pelo jornalista Norte-americano Hunter Thompson, o Gonzo é uma expressão típica de uma época onde os valores se reformulam, e uma busca de novas formas de viver é experimentada a partir de uma revolução cultural que atingiu, praticamente, todos os âmbitos sociais.   
Por isso, não poderia falar do Gonzo sem falar dessa revolução cultural. Estados Unidos, fim da década de 60. A rebeldia juvenil toma de assalto a cultura. Os hippies, o abuso de drogas, o amor livre, o rock psicodélico, as manifestações pacíficas contra a guerra do Vietnã, as manifestações violentas contra o “sistema” são elementos que representam uma insurreição juvenil contra a cultura adulta: a Contracultura.
A premissa básica da Contracultura era a liberdade em contraposição a todas as formas de repressão. Assim, os jovens atacaram de frente a família, o comportamento pequeno-burguês, a tríade pai, pátria e patrão e todos os agentes de dominação que impedissem a expressão de uma vida que tentavam viver além das instituições.
Um dos maiores símbolos que personificaram essa revolta foi a arte. A arte serviu como agente de combate, tornando-se porta-voz da Contracultura. A arte, como símbolo da libertação dos valores adultos, rompeu com as instituições e perdeu seu caráter elitista, tornando-se pop, ou melhor, popular.
Assim, apareceram as performances, os happenings, o cinema independente, as publicações alternativas, e, principalmente, o Rock Psicodélico, que se transformou no grande agente desta cultura. Conjuntamente a essas manifestações, um Hippie mais letrado e agressivo, um Beatnick menos afetado e erudito, abraçou o “espírito dessa época” e o transpôs para a linguagem jornalística, criando o Gonzo Jornalismo.
Como tudo que foi feito com esse “espírito” de liberdade máxima e sem barreiras, o Gonzo tornou-se uma expressão radical da liberdade dentro da linguagem jornalística. O jornalismo antes do Gonzo nunca tinha sido experimentado de forma tão intensa, e as investidas de Hunter Thompson, seu criador, mostraram que não existem estruturas que não possam ser rompidas, pois até essa linguagem, de certa forma rígida, a jornalística, poderia ser reformulada.
O Gonzo Jornalismo poderia ser pensado, à primeira vista, como uma extensão do Novo Jornalismo - esse estilo jornalístico inovador que fez o casamento entre o jornalismo e a literatura -, mas de forma alguma poderia ser classificado como tal, pois as inovações de Thompson foram caóticas e agressivas se comparadas com as propostas do Novo Jornalismo.

O Gonzo Journalism é um gênero que, apesar de ter se originado a partir do movimento do New Journalism, apresenta características singulares e, portanto, deve ser considerado de forma diferenciada. (Czarbonai, 2003, p.)

 O Novo Jornalismo permitiu que o jornalismo se renovasse, talvez tenha possibilitado a existência do Gonzo, o próprio Thompson fez investidas no estilo, mas penso muito mais em outras referências, quando penso no Gonzo.
Como os Beatnicks (ou Beats, estilo comportamental e literário já citado no capítulo sobre a Contracultura e Kerouac), que consideravam que obra não se dissocia do autor, que o autor “deve transformar-se em uma obra de arte (...), deve ser tão autêntico quanto um poema” (Vários Autores, 1984, p. 14), Thompson, em seus relatos, se expunha em primeira pessoa, colocando-se em primeiro plano e, principalmente, agia de forma singular, mais parecendo um personagem literário - pelo menos de literatura maldita - do que um jornalista.
 Se o jornalista médio for considerado como o porta-voz de uma instituição e for feito o seu perfil, provavelmente seria imaginado alguém que faz o possível para manter uma imagem respeitosa, e Thompson poderia ser considerado a antítese desse tipo de jornalista.
Ele gostava de se meter em confusões, falava mal abertamente do governo e se chocava, sem pudores, frente à moral burguesa em discursos ou em prática. Seus textos eram recheados de brigas, problemas com a polícia, uso voraz de drogas e, principalmente, ele falava de forma aberta sobre tudo isso. 

E se eu fosse escrever, por exemplo, que recentemente passei dez dias em São Francisco e estava chapado constantemente... que na verdade fiquei chapado por nove noites de dez e que quase todo mundo que lidei fumava maconha com a mesma casualidade com que bebia cerveja.

(...)

Se existe uma verdade óbvia sobre as drogas psicodélicas é que qualquer um que tentar escrever sobre elas sem experiência direta é um tolo e uma fraude. (Thompsom, 2004.p.176).


                 À primeira vista, se fosse apresentado, na área jornalística, um texto com uma fala tão amoral sobre o uso de drogas, seria pensado em um tipo de suicídio de imagem, mas com Thompson aconteceu o inverso. As transgressões das normas sociais, transcritas em reportagens, deram mais validade para a primeira pessoa que estava exposta no texto, no caso Thompson, pois a ação de romantizar a vida marginal e falar abertamente sobre ela é uma ação típica a boa parte da tradição artística do Ocidente. 
Faz parte da biografia de grandes autores a vida desregrada. Baudelaire fumava ópio em tabernas parisienses. Rimbaud deu um tiro em seu namorado Verlaine - um escritor viciado em absinto. Genet, tão vangloriado por Sartre, foi preso durante anos. Sade foi encarcerado em um hospício, após maltratar e seviciar prostitutas. Burroughs era homossexual assumido e mantinha relações com inúmeros rapazes, após assassinar a esposa. Van Gogh cortou a própria orelha e, anos depois, após uma temporada em hospícios, se deu um tiro. Artaud, além de ser viciado em morfina, passou mais da metade de sua vida confinado em instituições mentais.
Eu poderia enumerar miríades de artistas célebres que viveram uma vida desregrada e, de certa forma, marginal. E esse estilo de vida foi glorificado e imortalizado em biografias ou pelos próprios artistas em suas obras, pois existe um tipo de apreciação, por quem se interessa por arte, pela vida que vive muito além dos valores e normas sociais da vidinha cotidiana.
Thompson, no momento em que pôs no papel suas histórias que apresentavam uma vida desregrada, fez nada menos que se impor no panteão dos autores marginais da história do Ocidente. Pensando assim, Thompson é relacionado não apenas aos Beatnicks, mas também a essa linhagem de artistas tão importantes em nossa cultura.
Bem, sei que é estranho estar falando em arte quando me refiro a um estilo jornalístico, mas o estilo de jornalismo de Thompson excede em elementos que podem ser associados à arte. Conjuntamente à vida marginal, seu estilo textual buscava potencialidades estranhas ao jornalismo, como a ficção.

O Gonzo é um estilo de reportagem baseada na idéia do escritor William Faulkner segundo a qual a melhor ficção é muito infinitamente mais verdadeira que qualquer tipo de jornalismo – e os melhores jornalistas sempre souberam disso.  (Thompson, 2004, p.46)


E Thompson, em uma estrutura em que a veracidade e os fatos são soberanos e o relato objetivo é essencial, não apenas trouxe a ficção, mas a utilizou ao extremo.

Para o Gonzo jornalista é permitido o uso de personagens e situações que nunca existiram, se isso contribuir para aumentar o nível de informações dispensado ao leitor e conferir maior dramaticidade à cena que está sendo descrita. É importante também que a diferença entre ficção e realidade não seja jamais explicitada.  (Czarbonai, 2003, p.)

 Thompson mergulhava nesse fio que separa ficção e realidade. Aliás, ele mergulhava na realidade para dela extrair a ficção, ou quem sabe para criar novas realidades, algo próximo da arte fantástica em que o “O objetivo não é a representação do real e sim a criação de um mundo próprio” (Schurian, 2005, p.2)
Mas o Gonzo, além de ser uma forma de aumentar os campos possíveis da vida a partir da fantasia, buscava formas de vida, digamos, “reais”. Thompson correu atrás de realidades ao extremo. Ele passou anos no Brasil, cobrindo as movimentações da ditadura. Viveu entre Hell’s Angels por quase um ano. Peregrinou por bairros boêmios norte-americanos durante diversos meses. Cobriu eventos caretas esportivos junto ao cidadão médio, tentando extrair da vida banal seu insólito. Ele contatou uma fauna que servia como ponte para tocar a margem da vida cotidiana.
Diferente de, digamos, Tom Wolfe, um dos pais do Novo Jornalismo, que para Thompson: “as pessoas com quem ele se sente a vontade são mais entediantes que merda de cachorro velha” (Thompson, 2004, p. 49), ou seja, os materiais de análise para suas reportagens não buscavam certos potenciais da vida tão prezados pelo Gonzo.
Sua relação com a vida - essa vida marginal - era uma aproximação íntima que poderia ser associada à forma com que os Beatnicks interagiam com a realidade e depois a transformavam em literatura. Os Beatnicks não faziam trabalho de campo, eles não saiam de mochilas pelo mundo para compor personagens, eles caiam fora da vidinha cotidiana em busca de iluminação, iluminação encontrada entre negros, marginais, músicos, drogados. Esse contato era tão íntimo que eles experimentavam a realidade que tocavam. 
Se os Beatnicks buscavam a todo custo a iluminação muito além da vida careta da classe média, Thompson trouxe uma relação íntima com a vida marginal para o jornalismo, o iluminando.  E a iluminação do Gonzo feita com o jornalismo foi extrema, pois trouxe para o jornalismo a anarquia em todos seus âmbitos, principalmente na linguagem.

Por quanto tempo manteremos esta situação? - ponderei. Quanto tempo até que um de nós comece a falar de forma descontrolada e sem sentido com este garoto? O que ele vai pensar, então? Este mesmo solitário deserto foi o último lar conhecido da família Manson. Ele fará esta desagradável conexão quando meu advogado começar a gritar coisas sobre morcegos e gigantescas arraias descendo até o carro? Se sim - bem, teremos que cortar sua cabeça e enterrá-lo em algum lugar. É desnecessário dizer que não podemos deixá-lo ir. Ele nos denunciaria rapidinho para algum tipo de autoridade nazista, que nos perseguiria como cães. (Czarbonai, 2003, p.)

Como pensar em qualquer estrutura jornalística em um texto escrito dessa forma? Drogas, terror, uma liberdade de linguagem assustadora, uma língua ferina sem medo, sem pudor. Seria mais fácil pensar na língua de um esquizofrênico, ou na língua de um poeta radical, ou na língua de um pintor de arte fantástica, e não na língua de um jornalista, proferindo essas palavras, não? 
O Gonzo foi a grande negação da estrutura jornalística, e a apologia em prática da destruição dos valores do jornalismo tradicional.

O gênero tem sua força baseada na desobediência de padrões e no desrespeito de normas estabelecidas” (...)Ao contrário de outros formatos mais rígidos, o Gonzo Journalism encontra dificuldades em ser definido com precisão por ser personalizado de acordo com as demandas e expectativas do escritor... Esta afirmação se relaciona com a anarquia e libertinagem que o gênero permite, uma vez que não existem regras.  (Czarbonai, 2003, p.) 


Lembro-me de uma citação de Deleuze que eu poderia associar ao Gonzo:


Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer... não se buscará nada compreender em um livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexões com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua (...) a única  questão quando se escreve é saber com que outra máquina a máquina literária está ligada, e deve ser ligada para funcionar (Deleuze, 1995, p.12)


E a quais máquinas o Gonzo estava ligado? Ou melhor, o Gonzo ligou o jornalismo à quais máquinas? Uma máquina artística, uma máquina marginal, uma máquina drogada, uma máquina, por que não, revolucionária.
Pode ser feita uma divisão do jornalismo em antes e depois do Gonzo, sem exageros. O jornalismo antes do Gonzo ainda permanecia como a boa imagem de uma realidade idealizada, intocável, harmônica em seu caos, segura. Depois do Gonzo, o jornalismo apresentou a vida exatamente como ela é: Caótica, mas formidável.


                            
5 O Jornalismo Vagabundo

Inúmeros elementos me cativaram ao ponto de me inspirar a experimentar um possível – ou, quem sabe - um impossível jornalismo. Como foi visto ao longo dos capítulos anteriores, a obra de Jack Kerouac, On The Road e a Contracultura - mais especificamente os Hippies, o Gonzo Jornalismo, o Novo Jornalismo, parte da tradição marginal da arte Ocidental e algumas idéias de Deleuze e Peter Pál Pelbart - foram as manifestações com que dialoguei na tentativa de justificar o Jornalismo Vagabundo.
 À primeira vista, essa salada de frutas da cultura ocidental que criei para legitimar o Jornalismo Vagabundo pode ser considerada diversa e ampla, mas, pensando bem, ela é de certa forma simplista, pois eu poderia ter utilizado referências à exaustão.
Dialogar apenas com essas manifestações culturais me dá a sensação de que deixei muitas possibilidades de fora. Quantas realidades escaparam de minhas mãos? Quantos cineastas, poetas, dramaturgos, revolucionários, loucos, jornalistas, vagabundos, que poderiam ter fortalecido meu trabalho, foram relegados à indiferença pelas minhas limitações?
Mas tive que selecionar para tornar legível e acessível meu trabalho, para formatá-lo ao estilo da monografia. Nesta parte do trabalho eu ponho em choque com o Jornalismo Vagabundo todas essas manifestações que até agora apresentei. Espero que, aqui, o Jornalismo Vagabundo seja justificado e (desculpe o egocentrismo) dado ao mundo.
 Pode parecer estranho, inusitado ou, no mínimo, diferente tentar pensar um tipo de jornalismo a partir de símbolos tão exteriores a ele - aqui, no caso, essa exterioridade é vista nas manifestações culturais como a Contracultura, a literatura de Kerouac ou a de outros autores que cito, na escola de pensamento de Deleuze e, principalmente, na arte, agente que dialogo, em muito, ao longo deste capítulo - mas é exatamente este grau de diferença que busco.
Acredito que apenas agentes estranhos ao jornalismo me permitiriam pensá-lo de uma forma diferente e, assim, visualizar um jornalismo diferenciado. Quando falo em jornalismo diferenciado, eu me refiro a um jornalismo que não faz parte do jornalismo diário e cotidiano, do jornalismo fast food, do jornalismo das grandes instituições, do jornalismo dominante que compartilha com a moral dominante.
Esse jornalismo que domina os meios de comunicação e é tão bem interiorizado, de certa forma, compartilha com elementos que cito como exteriores, como a arte e a literatura, mas os coloca em um lugar confortável, não permitindo que a máquina literária e artística realmente se manifeste. Artes plásticas aparecem em páginas de jornais, mas elas são usadas como um adorno para embelezar, como se fossem um mero bibelô.
A literatura, que trespassa algumas matérias, não passa de um artifício para fingir que a máquina não é tão rígida, nos dando uma sensação falsa de liberdade. A literatura, que em uma de suas funções permite a viagem do imaginário, é usada como fuga da dureza da linguagem. Imita-se a literatura, mas não se vai a fundo nela.
Sei que é estranho falar em um jornalismo dominante, seria mais estranho ainda se eu falasse que esse jornalismo dominante faz parte de uma grande mente que tudo engendra e acaba com a diferença, máquina que impõe segurança ao caos da vida, mas para mim essa é uma generalização inevitável.  
Segundo Deleuze:
O pensamento é fruto de um encontro, o encontro é sempre encontro com o exterior, mas esse exterior, não é a realidade do mundo externo, porém concerne às forças heterogêneas que afetam o pensamento, que o forçam pensar, que arrombam o pensamento para aquilo que ele não pensa ainda, levando-o a pensar diferentemente (Pellbart, 2000, p.59)

Para chegar a esse exterior no jornalismo, para pensar o jornalismo de uma forma diferente, além de captar os elementos que citei acima, pensei muito na estrada - agente que faz parte da trajetória de, praticamente, todas as manifestações que trabalhei até agora. A estrada é o exterior da cidade. A cidade apenas se move em função da estrada. A cidade apenas se modifica com o contato com a estrada. O crescimento e o desenvolvimento da cidade dependem dessa relação com esse seu exterior.
Imaginem Paris e seus imigrantes africanos que entram na cidade, expandindo as possibilidades da identidade cultural. Imaginem Porto Alegre dialogando com as cidades do RS, passando os fluxos de informação política que são decididos no Piratini. Imaginem os Fluxos da droga que sai do México, o fluxo da moral provinciana que sai das pequenas cidades dos Estados Unidos ou o Fluxo da cultura cosmopolita que sai de Londres. Todos esses fluxos que entram e saem das cidades dependem da estrada.  
Mas existe outra estrada, ou melhor, outro trajeto. Um trajeto desvinculado dos centros das grandes cidades ou de blocos de regiões - que são organizadores por serem detentores de unidades de capital, de personalidade social, de nichos institucionais e de cultura. Um trajeto em que o movimento é a lei, por não existir possibilidade de se desenvolver uma vida sedentária e tudo que isso possibilita, como sociedade, Estado, história.
Um trajeto percorrido por um ser tão desenraizado que não trabalha, não tem família, nem documento; ser que não pode ser reduzido a uma identidade única por estar sempre em movimento; ser nômade para o qual as instituições não importam; ser movido pela busca constante, não para ir ao encontro, mas para buscar a perda - perda dos grilhões sociais e do eu; ser sem face, o Vagabundo.
O trajeto percorrido pelo Vagabundo cria uma relação com a cidade, a partir da estrada, rizomática. O Vagabundo desterritoriliza a cidade, a cidade reterritorializa o Vagabundo que se desterritoriliza em si mesmo na cidade. Há uma evolução a-paralela entre a cidade e o Vagabundo. A cidade e o Vagabundo fazem rizoma em sua heterogeneidade.
Segundo Deleuze: “O Rizoma é um sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem general (...) unicamente definido por uma circulação de estados” (Deleuze, 1995, p.33). A relação do Vagabundo com a estrada e a cidade poderia ser pensada apenas pela circulação, sem a presença de fatalidades que Deleuze chama de decalcadas, como: divina, histórica, econômica, hereditária (Deleuze, 1995, p.22).
A entrada do Vagabundo na cidade não depende de leis e ordem. Não há um centro de controle que faça o Vagabundo se movimentar. O Vagabundo pinta a cidade com sua liberdade e permite uma ampliação de seu campo, permite um devir-vagabundo, um devir-marginal. 
Poderia ser dito que o Vagabundo reflete a imagem negativa da marginalidade, a partir de pré-conceitos estabelecidos, mas o que me importa, para mim, é essa relação saudável, política, estética e rizomática entre o Vagabundo, a cidade e a estrada. Relação que permite uma alternativa para as linhas duras das estradas que impõe caminhos pré-estabelecidos.
O Vagabundo poderia ser associado aos Beats e a Keroauc, mas ele inventa trilhas diferentes. Kerouac e os Beats seguiam uma estrada que servia para ligar dois pontos. A intenção dos Beats era sair de um ponto inseguro para chegar a um porto seguro. Explicitando melhor: Eles buscavam na estrada a iluminação, tanto que se auto-intitulavam “Vagabundos Iluminados” (Vários Autores, 1984, p. 105). Mas o Vagabundo, apenas vagabundo, sem busca de iluminação, que não foge do demônio em busca do bom deus, quer um trajeto apenas de fuga, sem início e sem fim, rizomático.
O Vagabundo é um agente importante em meu trabalho, aliás, não é por nada que nomeei o meu jornalismo de Jornalismo Vagabundo. Ser Vagabundo, no jornalismo, seria essa possibilidade de estar sempre em movimento para perder vícios típicos da identidade sedentária do jornalismo. Fazer rizoma com o jornalismo, buscar alternativas para ele, achar novas saídas, aumentar o território, buscar uma relação menos nociva, menos facínora.   
A estrada comunicacional pode ser dura, pode ser submissa a unidades essenciais e centros de controle. A estrada da comunicação pode ser pensada como passagem de fluxos para centros armazenadores. Fluxos de informações que se prendem e se fecham em estruturas, no Jornal-reservatório. Mas o trajeto pode ser outro. Ser Vagabundo para pegar outra estrada comunicacional em que as unidades de controle não mais são soberanas e não mais importam. 
Por isso, também escolhi manifestações que tiveram uma relação com a estrada e com a vagabundagem. Todos os autores ou manifestações com que trabalhei, como citei a cima, podem ser associados ao vagabundo, por experimentarem em sua linguagem ou em vida essa condição.     
Jack Kerouac, como foi visto capítulos anteriores, era um vagabundo, mesmo que “iluminado”, da literatura e da vida. Na literatura ele criou uma linguagem sem vínculos com a máquina literária enraizada e sua uma linguagem tão harmoniosa e fechada em si mesma. A sua prosa espontânea abriu caminhos estranhos à toda lógica do academismo literário. 
Os Hippies foram os Vagabundos da vida aprisionada da classe-média. Eles se chocaram contra toda realidade pequeno-burguesa em um gesto violento: a negação de todos os valores da sociedade adulta a partir da fuga. Deleuze, que cito em alguns momentos e que esteve presente em minhas leituras durante a composição da monografia, era um Vagabundo do pensamento, que apresentou possibilidades menos rígidas e desenraizadas em diversas áreas. Peter Pál Pelbart seguiu os passos de Deleuze.
Os inúmeros artistas que servem como referências em meu trabalho, como todo artista que se preza, eram Vagabundos na arte e na vida.  O Gonzo foi o Vagabundo do jornalismo, fazendo algo que se assemelha a Kerouac, levando o jornalismo para fora da prisão da linguagem institucional. Já eu peguei carona com todos esses autores para, como jornalista, cair na estrada e experimentá-la como Vagabundo.
Minha relação com o Gonzo merece destaque, pelo fato de o Gonzo ser a única manifestação jornalística que demonstrei certa empatia até agora, e por compartilhar certas idéias, o que pode levar a crer que o Jornalismo Vagabundo é uma continuação do estilo. Não posso negar que Kerouac foi uma influência forte no Gonzo.
Também Hunter Thompson, o pai do Gonzo, poderia ser considerado um tipo de Hippie raivoso. Além disso, o Gonzo foi uma expressão radical de choque contra o jornalismo dominante e, é claro, como citei acima, era uma manifestação vagabunda. Mas o meu jornalismo, mesmo estando ligado a máquinas semelhantes ao Gonzo, trouxe novas máquinas e ligações, o que torna nossos jornalismos manifestações diferenciadas.
O fato de minhas referências serem Deleuze e Peter Pall Bart, parte da tradição marginal da arte Ocidental e, principalmente, o fato de eu ser um filho do século 21, demonstram que nem querendo eu conseguiria seguir o mesmo caminho do Gonzo. O Gonzo, para mim, não é um modelo a ser seguido e sim um agente de diálogo e um tipo sensível de inspiração.
Gosto muito da obra do Gonzo, mas diversos pontos nos afastam. A relação do Gonzo com as drogas era uma atitude transgressora em sua época, mas, hoje em dia, se drogar não passa de escapismo, ou seja, uma das maiores marcas do Gonzo, sua relação com a droga, é, para mim, impraticável.
Além disso, o Gonzo apresentava uma abordagem política engajada (pelo menos, um engajamento niilista de choque contra a política dos Estados Unidos, sem vínculos partidários), o que não poderia ser diferente no contexto da época, mas, nos dias de hoje, se eu seguisse a mesma linha estaria negando o meu tempo. Como eu poderia trazer um discurso político se nasci em uma época em que todas as utopias já haviam sido frustradas. 
  Vivo em uma realidade apática onde o jogo político é uma brincadeira fascista, com seus nichos e subgrupos - uma brincadeira para o povo que não difere, em muito, do engajamento dos apreciadores do futebol - ou seja, a política atual não gera as paixões de outras épocas, e as vanguardas se interessam por outras manifestações. Como dizia John Lennon: “O sonho acabou”. Bem, talvez apenas o sonho de uma sociedade ideal, pois continuo sonhando, aqui, com um novo tipo de jornalismo.
Também o Gonzo tinha uma necessidade quase infantil, talvez originada pelo uso de drogas, de se chocar contra leis e normas sociais. Ir de encontro às leis que sufocam o espírito, não aceitar valores sociais são, para mim, atitudes importantes, mas dá para ser transgressor sem fazer nada ou negando as estruturas dominantes sem barulho, como no Jornalismo Vagabundo.
É claro que a infantilização me interessa, mas muito mais a dos Hippies.  Os hippies retornaram à infância para fugir dos ideais da cultura branca, masculina e, principalmente, adulta. Trago a arte para a linguagem do jornalismo, uma das propostas do Jornalismo Vagabundo, para não compactuar com a linguagem rígida e “adulta” do jornalismo dominante, um tipo de transgressão infantil, uma insurreição jovem contra o espírito cansado e envelhecido.
Certos meios de comunicação, hoje em dia, criam estruturas que impedem e bloqueiam a oxigenação do jornalismo. Parece que o jornalismo não consegue fazer diferente, não consegue se expandir, se mover - imagem idêntica a uma cidade sitiada: a cidade da peste de Camus, onde ninguém entra, ninguém sai e todos estão definhando com um doença terrível e desconhecida, ou melhor, que não querem reconhecer. Quantas pessoas reconhecem que a estrutura das redações sufoca e castra o espírito?
   O jornalismo que é lido diariamente é tão fechado que se movimenta, apenas, a partir dos mesmos eixos. O fazer jornalístico é dependente desses eixos - que seriam unidades de controle - o que cria uma linguagem redundante, bloqueando as inúmeras possibilidades de quem escreve.
A instituição com uma ideologia fixa, o grande eixo de toda redação, bloqueia a livre expressão. O manual de redações, o eixo da linguagem, bloqueia a liberdade da escrita. A veracidade, o grande eixo do jornalismo, bloqueia a criatividade poética. O lead, o eixo de toda a matéria, faz algo idêntico à veracidade. Os cadernos com uma identidade única e o eixo de cada edição bloqueiam os fluxos dos inúmeros conteúdos possíveis que poderiam ser trabalhados.
A necessidade de atualidade, a redundância inevitável dos mesmos temas, a imparcialidade, entre inúmeras fórmulas que pré-existem às edições, são imposições de que não se pode fugir sem perder o título de jornalista. É claro que não estou generalizando. Esses exemplos fazem parte do jornalismo diário, ou de grandes instituições, ou seja, do que considero ser o jornalismo dominante (sei que utilizo muitas vezes a expressão jornalismo dominante, mas a redundância é proposital).  
Esses grandes centros de controle poderiam ser associados à imagem do grande pai que pune, castra e impede que os filhos - no caso, os jornalistas - cresçam e sejam autônomos. E o Jornalismo Vagabundo seria uma luta contra o grande pai e suas leis, situação idêntica a dos Hippies e sua luta contra o rosto paterno. Para Artaud:

 Viver não é existir, mas arrancar da existência a vida, onde ela esta aprisionada, equilibrada, submetida a uma forma majoritária, a uma gorda saúde dominante (Pelbart, 2000, p.68)

E eu quero esse ponto de desequilíbrio, de libertação, de insubmissão a todas as formas que o grande pai onipotente, o jornalismo dominante, pode tomar. Diriam-me que se eu quiser viver como jornalista, eu teria que aprender a me prender a estruturas, deixar os centros de controle me controlar, ser pacífico frente à castração de meu espírito jornalístico – espírito que nada difere do espírito do poeta. 
Se quero me manter filho, eu devo ser honroso ao meu pai, não? Honre pai e mãe, um dos mandamentos da bíblia. Mas não, prefiro ser Édipo, não para desposar a mãe e sim para aniquilar o grande pai. Sei que me chamariam de infantil, ou rebelde, mas isso é verdade, e essa rebeldia, não é apenas minha, não estou sozinho nessa.
Deleuze considera que:
enquanto um fora é dobrado um dentro lhe é coextensivo como memória, como vida, como duração. Carregamos em nós uma memória absoluta do fora: é o fora em nós, reservatório ilimitado que realimenta nosso campo de possíveis e para qual Simondon reservou o nome grego de apeiron – Ilimitado. (Pelbart, 2000, p. 60)

O fora que busco no jornalismo - essa máquina Vagabunda que luta contra todas as formas de poder - é possível, principalmente, pois o caminho de busca de uma exterioridade no jornalismo já foi iniciado. Inúmeras manifestações dobraram o jornalismo com linguagens exteriores a ele – de uma forma produtiva, não a partir de uma mera imitação supérflua, como faz o jornalismo que critico - permitindo essa “memória absoluta do fora”, abrindo os campos possíveis do jornalismo.
O Novo Jornalismo trouxe a linguagem literária de uma forma mais profunda. O Jornalismo Gonzo trouxe a linguagem da droga e do delírio.  Na história do jornalismo, o caminho da busca de inúmeros possíveis é imenso. Zuenir Ventura trouxe uma relação íntima com a marginalidade. O Jornalismo de Gabeira desvinculou o jornalismo do Estado com apologias às vanguardas revolucionárias.
Stuart Home estreitou a relação do jornalismo com a arte. Também diversos artistas tiveram uma forte ligação com o jornalismo como: Hemingway, Bukowski, o próprio Kerouac, Rimbaud, os surrealistas, a turma da Nouvelle Vague. Assim, apenas continuo um processo que já teve início e utilizo dessa brecha aberta, há tempos, para fazer diferente. Eu toco nessa “memória absoluta do fora” que foi me dada e que permite que o jornalismo seja um campo muito mais aberto e flexível. 
Sei que escrevendo essa apologia a tipos de jornalismo diferenciados parece que estou querendo justificar que o Jornalismo Vagabundo é jornalismo. Mas será que isso importa? Quem sabe, ao fim deste trabalho, nem mais chame o Jornalismo Vagabundo de jornalismo. Ficaria feliz se ele não fosse rotulado de forma alguma, que ele tivesse inúmeras possibilidades de nomeações.
Imagine um jornalismo tão livre, que estivesse em uma metamorfose tão constante, que o impedisse de criar uma forma definida. Como a identidade de um jovem que está sempre em construção, “onde a vida se encontra em estado mais embrionário, onde a forma ainda não pegou inteiramente.”. (Pelbart, 2004, p. 65)
Identidade idêntica à buscada por, digamos, Kerouac. Lembram do capítulo onde falo sobre os devires de Kerouac? O cair na estrada do autor que permitia o contato com diversas formas de vida, fazendo-o sair de sua condição de adulto, branco e masculino. Kerouac tinha relações com mulheres negras, vivia entre marginais, contatava artistas, buscava a América que a América não vê. Kerouac cultuava tal movimento que estava sempre perdendo sua identidade e se transformando. Ele nada acumulava, vivia como um camaleão, pintando-se com as cores da vida marginalizada. Bem, ser um camaleão, não ter uma forma definida, talvez seja a grande utopia do Jornalismo Vagabundo.
Efetivamente prefiro que o Jornalismo Vagabundo não tenha forma a ter apenas uma forma, principalmente uma forma dura e implacável. Às vezes leio crônicas que fogem da rigidez do jornalismo, mas que não se perdem da condição da linguagem da crônica quanto ao gênero. Os cronistas que percorrem as páginas dos grandes jornais, mesmo com seus textos mais livres, conservam uma imagem conservadora da crônica, pois negam o fato de que a crônica, em nossa época, se revitalizou de tal forma, que abriu portas para uma linguagem muito mais ampla e flexível, a narrativa.
A narrativa mescla poesia, conto e crônica, sem distinções. Há uma coletânea no Brasil que saiu em 2003, pela editora Boitempo, “Os Transgressores”, que apresenta essa possibilidade a mais para a linguagem jornalística e literária. Boa parte dos participantes da coletânea são jornalistas que, para saírem da linguagem do jornalismo, a colocaram de lado para irem em direção à liberdade, quase total, da narrativa. Outros autores são literatos que, para fugir da dualidade prosa e verso, se lançaram no estilo, que na verdade nem é um estilo, e sim uma condição de nossa época.
Em relação ao cronista típico, aquele que tem um espaço especial nos grandes jornais, ele brinca de ser adolescente ao trazer elementos mais livres ao jornalismo, mas só brinca, pois desconsidera a narrativa que, muita mais do que uma brincadeira, é um jogo transgressor - algo próximo a uma experimentação da violência da adolescência em um estilo indefinido. Essa brincadeira dos cronistas traz elementos que dão apenas permissão ao escapismo, que faz com que a dureza da vida adulta, seja a do jornal, a do cronista ou a do leitor, se mantenha paralisada.
A crônica no grande jornal é uma dose de uísque para não enlouquecer. Situação parecida a dos cadernos de cultura, que na verdade estão indexados como diversão - imagem idêntica a do passeio no parque ao domingo, escapismos interessantes, mas que fazem parte do interior de ser adulto.
Essa brincadeira é uma brincadeira perigosa, pois ela é feita em nome de um grande órgão de comunicação, e apresenta todos os vícios impostos para aqueles que são porta-vozes de um grande órgão (como citei acima quando falava das redações).  Diferencio o cronista porta-voz dos grandes meios de comunicação do bom escritor, aquele que vale a pena ser lido, por um simples fato: o escritor (reitero, aquele que vale a penas ser lido) escreve para si, não em nome de uma organização.
 Não consigo imaginar um escritor que escreve em um fluxo que beira ao êxtase, que brinca com as palavras não pensando em sua utilidade, falando em nome de uma instituição. O bom escritor é aquele que escreve com prazer. E existe prazer maior que ser livre? Minha vontade é trazer isso para o jornal: Trazer o prazer da escrita ao desvincular o jornal de tudo que impede o fluxo do desejo que deseja apenas a liberdade.
Note que quando falo em liberdade, ela pode ser pensada de diversas formas: uma delas, como disse, seria escrever livre de qualquer centro de controle; outra forma seria a liberdade como busca de um outro eu, ou em busca de um outro nós. Ambas as formas se associam ao Vagabundo, àquele que vive fora do controle e que não faz parte dessa forma dominante do eu e do nós, aquele que não é, praticamente, ninguém.
Sei que parece que estou fazendo uma poética do jornalismo - o que não deixa de ser verdade. Sei que estou romantizando a função – e é essa a minha intenção. Por isso, ligo meu jornalismo a essa manifestação tão misteriosa, tão poderosa, a arte.
Ser vagabundo no jornalismo é ser artístico no jornalismo. O artista é um vagabundo por excelência, no sentido aqui utilizado. A produção artística é inútil. Não se come um quadro, não se faz guerras com poesia, não se constroem cidades com performances teatrais, situação idêntica a do vagabundo que nada constrói em sua trajetória.
Para que serve um artista? Para pintar a realidade com cores fantásticas, permitindo que a outra face da vida apareça ou se crie. O vagabundo não faz o mesmo? Ele não pinta a vida, mostrando que ela pode ser diferente, que as grades do cotidiano podem ser rompidas? Ser vagabundo ou artístico no jornalismo é permitir que a outra face do jornalismo apareça.
Eu admiro muito a liberdade da arte. No capítulo sobre o Novo Jornalismo eu idealizo a literatura, dizendo que ela é a expressão da liberdade por excelência. Mas não, aqui eu melhor desenvolvo essa idéia, não é a literatura, e sim a arte que possui esse estatuto de liberdade absoluta.
Tudo é permitido na literatura, como disse no capítulo anterior, mas apenas na linguagem literária. Já na arte, tudo é permitido em qualquer linguagem, material, qualquer objeto pode se tornar artístico, desde que haja a necessidade de um artista em rotulá-lo como tal. Duchamp mostrou muito bem isso com o Ready Made. Gostaria de poder usufruir dessa liberdade absoluta.
Sim, gostaria que o jornalismo se elevasse à condição artística. Gostaria de poder fazer qualquer coisa com o jornalismo. O jornalismo, por ser uma estrutura tão estagnada, por me oprimir, me impõe esse desejo tão radical. Mas é claro que esse desejo é simbólico, pois na verdade apenas quero descobrir novas saídas e entradas no jornalismo também através da arte, como um vagabundo que descobre novas saídas e entradas para cidades já conhecidas.
Foucault já dizia que a arte havia perdido, há tempos, seu caráter de exterioridade, que ela havia sido engolida pelo sistema imperial que abole todas as fronteiras (Pelbart, 2000, p.58). Mas gosto de duas citações: “Se a literatura já não constitui uma exterioridade absoluta, a experiência limite é preservada e valorizada enquanto uma operação sobre si mesmo.” (Pelbart, 2000, p.58). “O fora abolido, não faz senão reaparecer como estratégia.” (Pelbart, 2000, p. 62).
A arte como o vagabundo são estratégias para se atingir um grau de exterioridade frente a uma linguagem que aparece como “quase” intocável, o Jornalismo Dominante.  Um professor, em uma conversa, disse que não acreditava no jornalismo como forma de arte, que a arte era impossível no jornalismo. Certamente eu discordo, não apenas por ter trazido exemplos até agora, que não são poucos, mas por uma idealização minha em acreditar que tudo é possível.
Negar que o impossível é possível é dizer que não é permitido fazer, pensar, sentir e amar de forma diferente. Dificilmente conseguiria me impor em uma grande redação com seus manuais, suas regras, sua burocracia, suas leis, sua moral e suas ideologias.
 Mas, pensando melhor, lembro de uma citação de Deleuze: “No coração de uma árvore um novo rizoma pode se formar (Deleuze, 1995, p.24)”, ou seja, em uma instituição com suas raízes profundas, com uma política rígida, um pensamento mais livre poderia criar uma ruptura e até, por que não, a transformar.
Apenas em um regime fascista a diversidade é banida e sufocada, o que não é o caso preciso de nenhum tipo de jornalismo, pelo menos no Brasil. E se é possível em uma estrutura profunda o novo, o diferente, o marginal se impor, por que na linguagem jornalística, que é historicamente flexível, não poderia?
Como permitir que o jornalismo seja um pouco mais artístico sem destruí-lo?  Como permitir a arte ao jornalismo sem se prender apenas ao plano simbólico? Sei que não posso fazer uma pintura de arte fantástica ou versos surrealistas e vender como jornalismo, mas apresento algumas táticas para deixar que a arte penetre no jornalismo. 
Uma dessas táticas é falar em primeira pessoa. Sei que pode parecer datado, todo mundo usa, o Gonzo nos anos 60, Kerouac nos anos 50, hoje em dia qualquer um que escreva crônica, de Marta Medeiros ao Scliar, usa a primeira pessoa. Mas é interessante ter uma primeira pessoa que vê, sente, que toca o objeto o moldando, alguém que tem coragem de falar por si.
Muito mais que egocentrismo é um tipo de auto-afirmação. Mas quem seria essa primeira pessoa? No caso, se fosse um vagabundo, seria um ser livre, um ser em movimento, que busca a diferença. Um ser que quer ter um trajeto em vida tão interessante quanto uma obra de arte. Lembro de uma citação de Gregoy Corso:
              
È o poeta hoje, e não o poema, que deve se transformar em uma obra de arte, que deve ser perfeito e amável. O tempo exige que o poeta – isto é, o homem – seja tão autêntico quanto um poema. (Vários Autores, 1984, p.14)

Falar em primeira pessoa exige uma pessoa perfeita e amável. Pensando assim, o Jornalismo Vagabundo torna-se como a literatura de Kerouac uma busca de iluminação. Falando assim, pareço um antiquado poeta romântico. Mas e daí? Esse é um ideal romântico. Mas o que realmente importa é que falar em primeira pessoa abre múltiplas possibilidades para que se saia da realidade dura, tão bem representada pelo jornalismo.
Eu como, eu cago, eu falo, mas eu brinco, enlouqueço e sonho. A loucura é permissível a todos. Todos os artistas que venero sempre fugiram do real como cotidiano objetivo, não apenas em seus textos, mas também em vida. Alguns artistas clássicos, que foram tão bem interiorizados pela história da arte e que até representaram poderes em sua época, como a igreja e o estado, tiveram esse contato com essa exterioridade da realidade sã.
Lembro-me de Caravaggio, Goya, Beethoven, Mozart, Wilde, Nietzsche, Van Gogh, Sade, Rimbaud, artistas e pensadores que demonstraram em vida que a vida pode percorrer estradas muito além da racionalidade rígida e despótica. É claro que eu não me comparo a nenhum deles, e bem sei que a loucura desses mestres não foi, para eles, uma glória e sim uma condição dolorosa, mas eles demonstraram que a loucura pode ser uma estratégia para se criar uma nova sensibilidade.
Trazer a loucura para o texto, essa exterioridade que é permissível a todos, seria uma forma de abrir a linguagem, sem sair do grande símbolo venerado pelos jornalistas, a veracidade. Todo mundo delira de alguma forma. Muitas vezes, aparece um sentimento muito forte ou a sensação de que a coesão da realidade se perdeu.
Isso aparece da forma mais clássica - e reconhecida como saudável inclusive pela semiótica da cultura - nos sonhos. Imagens de sonhos são realidades vivenciadas, por todos, que abrem potencialidades isentas da prisão da realidade. Todos têm essa carga de surreal. E se for trazida essa linguagem surreal para o jornalismo? Será que descrever essa experiência seria sair do estatuto de veracidade?
O Gonzo, a primeira vista, em seus textos que descreviam devaneios drogados, trabalhava com a fábula e com a fantasia, fazendo ficção, mas discordo, pois acredito que seus devaneios drogados não possam ser considerados apenas como fictícios, pois foram vivenciados. Há aqui uma barreira muito fina entre ficção e realidade, e jornalismo e arte, talvez uma aproximação que desfaça o dualismo real e irreal. 
A idéia de sair do real estereotipado e objetivado, ou do que é permitido como real, a vidinha cotidiana que não sai de si mesma, tão bem interiorizada pelo jornalismo, é para mim um dos pontos principais da crítica ao jornalismo. Mas não é apenas nos sonhos, ou nos delírios, ou, no caso do Gonzo, nas drogas que se atinge um grau de exterioridade frente a essa vida tão bem conhecida e retratada pelo jornalismo.
Acredito que uma das formas da construção do jornalismo seria criar outros reais, outras vidas. Não seria apressado dizer que a vida é apenas o que é conhecido (conhecimento, em boa parte, criado pelo jornalismo)?  Quantas artes são feitas agora e não são apreciadas?  Quantos jornalismos nasceram e morreram no último século e não foram vistos? Quantas realidades escapam? E esse escapismo, essa perda da diferença, o que causa? Cria “seres lentos”? (Pelbart, 2000, p. 59)
Não acredito que tudo que esteja acontecendo de bom esteja sendo vinculado. Um adolescente agora compõe um som maravilhoso, no sul da China, que não será ouvido. Um novo grupo revolucionário cria, em algum galpão na Alemanha, uma nova revolução que será frustrada. Um artista produz a maior obra desde Picasso em um hotel barato na Inglaterra.
Grupos e indivíduos e novas realidades são sufocados, pois ninguém vê e dá importância. Eu entendo que a vida está aprisionada, que o que é vivido é um parcela mínima desse tudo, e por isso proponho um jornalismo que vá ao encontro da vida onde ela esteja aprisionada, para libertá-la.  Lembro dessa citação de Artaud que expus, acima, quando falava sobre o jornalismo dominante:

Viver não é existir, mas arrancar da existência a vida, onde ela esta aprisionada, equilibrada, submetida a uma forma majoritária, a uma gorda saúde dominante (Pelbart, 2000, p.68)

Imagine Jack Kerouac pegando a estrada em direção ao caminho seguido por turistas norte-americanos. Ele pára em frente à Estátua da Liberdade. Boceja. Depois se encaminha para a Casa Branca. Faz uma careta. Depois passa na Broadway, na Disney, nas praias mais freqüentadas da Califórnia e coça o saco. Ou seja, ele vê o que é visto e sabido por todos, vê o que todos vêem e conhecem, ele vê a vida de traz das grades. Imaginem On The Road dessa forma: seria retrato de uma prisão, de uma vida fechada e redundante, não?
É possível negar que a vida deva ser uma forma de arte? O gozo, o sexo, o amor, a loucura sadia não são expressões que se assemelham à arte? Então por que não trazer o jornalismo para a vida, a vida prazerosa e bela, e beleza aqui não como o belo fútil, mas a beleza da realidade, com toda a sua dor. Beleza como aproximação da vida, seja ele boa ou má ou, simplesmente: Terrível, bela demais, como dizia, o cineasta italiano, De Sica (Pelbart, 2000, p. 66).
Não é toda poesia que cheira à vida, como não é todo o jornalismo que é burocrático e fascista (ou, em termos mais populares, chato), mas eu busco esse jornalismo que cheira à vida, e à poesia (à arte). Há tanto a se ver e a se fazer, existem tantas vidas. Como eu não pegaria uma mochila e a colocaria nas costas, sem rumo e sem destino, para ir ao encontro de um impossível-possível ilimitado? Por que, como jornalista, eu negaria esse ilimitado? Como a obra não se dissocia do autor, se eu não a trouxesse para a vida eu deixaria de viver.
Assisti, após o almoço, uma pequena obra prima cinematográfica de Alain Resnais, Guernica. Em todo o campo de visão da tela, ao longo dos 10 minutos do filme, apenas se viam pinturas do grande mestre Picasso. A narração, escrita por Paul Eluard, detalhava poeticamente a história do bombardeio de Guernica - cidade do País Basco que foi destruída por aviões nazistas em 1937.
A obra de Resnais criou a dimensão documental em texto e imagem que o acontecimento merecia. Resnais fez jornalismo. Nenhum documentário ou reportagem teria tanto efeito quanto o pequeno filme que não era cinema, nem poesia, não eram artes plásticas, mas era tudo isso e, principalmente, um documento de extrema importância feito com estilo.
Exatamente o que quero fazer com o jornalismo: buscar inúmeras linguagens, discursos, inúmeras formas de vida. Como eu negaria as inúmeras formas de arte, manifestações culturais, vanguardas e bens culturais que estão à minha disposição? Por que não usufruiria delas? A intenção não é tornar o jornalismo arte, mas sim tentar um abandono de sua linguagem que permitirá “à morte por esquartejamento da linguagem-prisão” (Lins, 2000, p.13)
 Será que é necessária uma enorme quantidade de informações para manter a moral bem conduzida e criar uma noção de como “o real” funciona (engraçada essa palavra, “real”)? Não desejo que toda a rede de informação seja de descontrole, dispersão, perda. Não quero o caos. Mas quero que haja a possibilidade de se criar novas formas de encarar a vida. A informação prêt-à-porter funciona muito bem como feijão-com-arroz, mas eu quero mais, quero como diziam os Titãs: diversão e balé.







6 Notas Sobre a Experimentação em Jornalismo Vagabundo

Ao longo dos últimos capítulos, apresentei um conjunto de manifestações na tentativa de mostrar como é possível pensar o jornalismo de forma diferenciada e, principalmente, com a intenção de justificar o jornalismo ao qual me proponho a experimentar: o Jornalismo Vagabundo. Mas será que o Jornalismo Vagabundo é possível?
Será que ele é viável? Talvez o Jornalismo Vagabundo seja apenas a idealização de um jornalismo mais livre e menos rígido, ou uma crítica agressiva ao jornalismo das grandes instituições. Mas, mesmo assim, tentei pôr em prática a minha idéia. Peguei diversas estradas - subjetivas e objetivas - para experimentar textualmente esse jornalismo que só possui um nome por mera conveniência.
Pensei muito em como produzir um texto que estivesse à altura de todas as ligações que fiz até agora. Pensei, principalmente, em criar uma linguagem que fugisse do Gonzo, pois provavelmente este tipo de jornalismo proposto será associado a ele, para o bem e para o mal. E a partir dessas reflexões tentei produzir, com muito esforço e dor, um texto que justificasse minha tese e fechasse meu trabalho. Se eu consegui chegar aonde queria, só o leitor me dirá, mas posso dizer que estou satisfeito. 
Antes de apresentar a experimentação em Jornalismo Vagabundo, eu gostaria de falar um pouco sobre ela e ligá-la aos temas que abordei até agora. Ao longo das próximas páginas, discorrerei sobre como o texto foi feito, quais métodos utilizei para compô-lo e, ao mesmo tempo, farei dialogar os enunciados dos outros capítulos com a experimentação.
Minha proposta de pensar um devir-vagabundo para o jornalismo não poderia estar desligada da estrada. Por isso, para a composição do texto, em um primeiro momento, planejei dois tipos de viagem: Uma viagem dentro da cidade de Porto Alegre – pois sou porto alegrense -, e outra para um país distante, a Espanha.
A primeira parte do texto relata essa minha viagem dentro da própria cidade de Porto Alegre, que possibilitou um mergulho em uma realidade que é vista e compartilhada por poucos. O foco principal dessa parte é um lugar marginal, talvez o mais importante de Porto Alegre, o ponto da boemia conhecido por Oswaldo Aranha.
A Oswaldo Aranha é uma rua do bairro Bom Fim que, desde a década de 80, é o ponto de encontro de manifestações culturais. Por permitir a expressão da juventude - aqui, no caso, uma juventude mais marginalizada, despreocupada com convenções e regras -, esse ponto apresenta uma realidade diferente a da vidinha cotidiana dos subúrbios e da rotina diária e monótona dos escritórios e das instituições.
Esse grupo enorme de jovens, que perambula pela Oswaldo todas as noites, dá uma grande importância para o hedonismo, mergulhando em prazeres permitidos pelo sexo, pelas drogas e a diversão. Algo muito semelhante à vida, sem regras, que apresentei nos capítulos sobre a Contracultura, e que está presente no Gonzo e na obra e vida de Jack Kerouac.
O local, por aglutinar, em boa parte, pessoas que têm a necessidade de fugir de padrões de comportamentos reconhecidos como saudáveis e que transcendem o que se considera como moral – pelo menos em relação a moral dominante –, produz, muitas vezes, uma realidade que beira ao fantástico.
Para apresentar esse lugar, que é a Oswaldo Aranha, fiz algo que se aproxima ao jornalismo clássico da reportagem. Não precisei usufruir de ficção ou de outros artifícios. Foi fácil, apenas abri os olhos, ouvi histórias, convivi alguns dias na rua e a apresentei de forma crua, textualmente.
Mas o texto foge de qualquer estilo comum de reportagem, pois o objeto da narrativa permitiu uma realidade inimaginável e exigiu uma linguagem à altura, uma linguagem com uma multiplicidade de visões que pode ser associada à poesia em prosa.  No capítulo anterior eu digo: Acredito que uma das formas da construção do jornalismo seria criar outros reais, outras vidas. Quantas realidades escapam? E esse escapismo, essa perda da diferença, o que causa? Cria “seres lentos”? (Pelbart, 2000, p. 59)
 Quis trazer essa realidade para o jornalismo, a fim de mostrar que existem outras realidades e que o jornalismo não precisa ser reflexo do cotidiano típico, ou a voz superior que mostra a marginalidade de forma paternal ou negativa. Quis experimentar a Oswaldo Aranha para abrir os potenciais do jornalismo, apresentando um grau de diferença – no caso, o mais radical possível – que é permitido a todos.
A segunda viagem, apresentada em um outro bloco do texto, foi criada a partir de um relato de uma viagem que fiz para a Espanha, e que coincidiu com a produção da monografia. A viagem pode ser entendida como a fuga da vida a qual estou enraizado desde meu nascimento. No contexto jornalístico, ela pode ser pensada como a tentativa de abrir novos possíveis, fazer o jornalismo ir a pontos diferenciados, algo parecido com a parte sobre a Oswaldo.
Também, como no relato da Oswaldo, apenas abri os olhos e captei o máximo de informações e as descrevi objetivamente no papel, sem busca de perfis psicológicos e muito menos de ficção. Não busquei o contato com minorias, não busquei a marginalidade européia, propositadamente. Pois, como brasileiro, eu já era minoria.
Descrevo nessa parte o que contemplei da arquitetura, dos pontos históricos e, principalmente, da arte. Visitei museus que permitiram o contato com uma realidade grandiosa – um mergulho na história subjetiva do Ocidente. Dei importância à arte, pois, como foi visto ao longo dos capítulos, a arte é algo importante em meu trabalho.
Essa ligação que fiz com a arte e o jornalismo vagabundo talvez tenha sido a parte mais produtiva do texto sobre a Espanha. A arte representa essa idealização minha que tanto falo do tudo é permitido, do ilimitado. A arte permite o contato com algo de extrema importância, que não tem função, e representa o trabalho de alguém que vive uma vida marginal, anti-institucional, idêntica ao vagabundo. Mesmo que a arte que experimentei tenha sido a canônica, ela é símbolo do excesso de mentes brilhantes que tentam produzir reais inimagináveis, reais fantásticos, formas de vida impossíveis na natureza, possíveis apenas em sonhos e no delírio.
Há uma citação minha no capítulo anterior em que digo: quero pegar a estrada como um vagabundo para fugir de qualquer tipo de fórmula pronta. Sim, a arte que contemplei é a histórica – e a história é algo que considero que seja imposto como uma fórmula pronta -, mas, no caso, foi um vagabundo que contemplou a arte canônica, e a trouxe para o jornalismo.
Em meu texto, tentei abraçar arte como se a relação entre o jornalismo e ela fosse estreita, como se ela não fosse mais um exterior escapista. Eu não só apresento a arte, eu falo com ela, eu a desconstruo, eu a mastigo, eu a critico, antropofagicamente. O que difere em muito do jornalismo dominante, que utiliza a arte como se ela fosse um bibelô, uma forma de consumo e diversão. 
Poderiam dizer que eu deveria ter ido a outros lugares, pra buscar a diferença, mas eu precisava desses pontos não só para fruir, mas, principalmente, para criticar. Falo muito na luta contra o jornalismo dominante, e no texto eu continuo essa luta contra o domínio só que, no caso, contra o domínio da história. A história que calou e relegou à indiferença inúmeros artistas e formas de vida.
Talvez pareça que faço jornalismo cultural nesse ponto, mas prefiro dizer que faço metalinguagem. Uso da arte para falar de arte. Minha linguagem é a mais livre possível, anárquica, ela não fala em nome de instituições, é quase uma poesia, uma narrativa agressiva - gênero que citei no capítulo anterior.
    Em outro momento, apresento minha passagem por aeroportos. Gostei desses pontos, pois eram lugares sem identidade definida. Fiquei na parte internacional dos aeroportos com miríades de pessoas de inúmeras raças e países. Essa parte aparece como ponto de transição entre o Brasil e a Europa, onde eu inicio um processo de perda de minha identidade.
Mas não é apenas um ponto onde começo a me transformar, e sim um ponto onde não sou mais alguém. Não existe uma identidade cultural em aeroportos, pois é um lugar de todos, onde raças e povos se mesclam compondo um todo heterogêneo. Também não se criam raízes em aeroportos, pouco se faz, pois é um lugar de transição.
A vida do vagabundo poderia ser associada a essa condição. O Vagabundo percorre todos os lugares, não vive uma identidade única, ele nada faz, não cria raízes, sua vida é apenas movimento. E eu não estou em transição no jornalismo? Ou melhor, não quero um jornalismo transitório, com uma identidade em constate mutação?
 E o que significa trazer uma localidade onde a lei é o movimento e as culturas se mesclam? Nesta parte eu apresento múltiplas culturas para tornar o texto um texto sem identidade. Ou seja, a idéia de um jornalismo fechado e duro, que se dispõe a ser o detentor e representante de uma identidade única, é destroçada em função da não identidade, ou a abertura a todas as identidades possíveis. 
 Além disso, o texto todo é entrecortado com imagens de sonhos. Essas partes expõem um mergulho em minha estrada subjetiva, que difere de todo o resto da experimentação. Ao invés de abrir os olhos eu os fecho. Não que eu olhe para dentro de mim, mas, sim, busco um exterior que só é permitido nos sonhos.  
Utilizei os sonhos como estratégia para compor lugares e cenas, para criar vidas que são impossíveis na vida dita “real”. Há uma citação minha no capítulo anterior que diz: Imagens de sonhos são realidades vivenciadas, por todos, que abrem potencialidades isentas da prisão da realidade. Todos têm essa carga de surreal. E trazer essa linguagem surreal para o jornalismo para mim não é um forma de ficção e, sim, abertura para novos mundos. 
Se o Gonzo usa as drogas e a ficção para abrir a linguagem, eu busco novas realidades, seja nos sonhos ou em outras vidas, nota-se, assim, o distanciamento do meu jornalismo e do Gonzo. Eu nego as drogas. Não acredito em um exterior ou em transgressão a partir de seu uso. Nos anos 60 se drogar era contestatório, nos dias de hoje não passa de escapismo. Quanto à ficção, por que faria? Esse trabalho é a prova em prática que se pode fazer uma narrativa aberta, para diversas potencialidades, sem usufruir de ficção.
Também há muitas citações que aparecem ao longo do texto. Citações de grandes gênios da arte, pensadores marginais. Minha intenção era ligar o jornalismo à arte de uma forma mais agressiva. As citações aprecem quase como um enigma, elas estão ali do nada, para nada. As citações são como colagens que descontextualizam o texto, uma herança dadaísta, que quebra com a linguagem jornalística.
No texto também há monólogos em que reflito a minha escrita, ou a escrita em um modo geral. Essa fala marca o texto como sendo autoral, um jornalismo íntimo, um jornalismo feito com prazer, de forma quase catártica, idêntico ao prazer da produção artística. Isso reforça a liberdade do texto, que seria impossível em uma grande redação.
É claro que o texto deve ser pensado como um todo. Apresentei-o dessa forma, por uma simples questão de organização. A viagem em Porto Alegre, a viagem para Espanha, a viagem dos sonhos e a viagem em aeroportos são a mesma viagem.  O texto é uma busca constante de uma perda do que representa a dureza do jornalismo dominante.
Mas, como se verá, o texto parece não ter um fim, parece que não há conclusões, parece que acaba de uma forma abrupta. Também seu começo é tão abrupto quanto seu fim.  Por que finalizaria o texto? Isso não seria uma forma de fechá-lo e impedi-lo de se mover? Um vagabundo não vive a vida em movimento sem a busca de finalidades?
Considerando isso, poderia ser pensado no rizoma: uma multiplicidade que não começa e não conclui, que se encontra sempre no meio. Segundo Deleuze buscar um começo, ou fundamento, implicam em uma falsa concepção do movimento (...) Para onde você vai? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis.  (Deleuze, 1995, pág. 37)
A multiplicidade e a linguagem heterogênea impedem a tomada de um centro-pai-todo-poderoso. Foram as minhas tentativas de ruptura, de perda, de choque, minha forma de rizomar com o jornalismo, e fazer um mapa com a linguagem em uma abertura a devires. Não tentei - ou fui - obrigado a fotografar a realidade a partir de um fatalismo decalcado, seja da linguagem ou da submissão a órgãos de controle.
Que devires são possíveis no texto? A quais máquinas ele está ligado? Quais mundos foram criados? Essas deveriam ser as perguntas feitas ao texto. E não o que ele quer dizer e o que ele quer ser. Todas essas transições que aparecem no texto demonstram o desejo de fugir de um único objeto, de uma única só mente, de um único estilo, de uma única linguagem. “Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo (...) é preciso fazer o múltiplo”. (Deleuze, 1995, p.13)






7 Experimentação em Jornalismo Vagabundo

“Qual a sua estrada, homem? – a estrada do místico, a estrada do louco, a estrada da droga, qualquer estrada... Há sempre uma estrada em algum lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância.”
                                                           
                                                                                               Jack Kerouac

                                            Porto Alegre: o Início do Fim  
                  
 A arte existe para que a verdade não nos destrua.”
                                                           Nietzsche

O Sol começa a aparecer. O vermelho neurótico queima o céu atrás do estádio do Grêmio, bem em cima dos cemitérios. Comento com alguém que o Fog avermelhado, brincando na necrópole, me lembra alguma obra de Blake, talvez o Inferno de Dante. Acendo um cigarro. Tusso. Coço minha pélvis. Esfrego meus olhos em um sinal de descrença. Infelizmente o dia retornou. Escarro uma dose de catarro na rua, lá embaixo.
Senhoras caminham apressadas para conseguir a primeira fila da primeira missa do dia. Policiais trocam de tom, tornando-se amistosos. Alguns carros, em alta velocidade, abrigam os restos da noite que agora dorme. A família acorda e se reúne em seu ritual de sábado. Cães latem. Ratos fazem apenas o que ratos sabem fazer.
 Um gato pula de um muro, para em um beco sem saída e arranha suas unhas em uma lata de lixo. O gato avista uma velha senhora. Ambos se encaram em um olhar desdenhoso. A paixão impõe um cheiro adocicado em quartos de motéis baratos. A paixão, pelo contato com o sol, retorna a sua forma dura e neurótica. A paixão torna-se amor. O amor conhecido por todos. O amor simbolizado por uma casa, por filhos, pela grande mãe e pelo grande ditador: papai.
Eu nunca amei. Eu nunca amarei. Pelo menos não dessa forma. Tento fugir da segurança dos conceitos gastos e envelhecidos. Não me permito a segurança que a realidade impõe. Realidade essa que tanto se conhece. Realidade saudável. Realidade sana. Realidade redundante que mantém a vida. Recolho-me, escondendo-me do dia. Que a noite retorne o quanto antes.

                                                Sonhos
Sirenes transformam-se na matéria da brisa fria. Garotos caminham entre vielas, e becos, e serpentes, buscando o que nunca será encontrado. Prédios irregulares tornam-se os alicerces do caos. Caos: estranha e bela essência. Sapos cantam sua sinfonia cacofônica para o lodo que reina solitário. Gandhi paradoxalmente suicida-se.
Uma criança perde-se entre a relva quente e úmida da boca de Eva. O grande déspota, o pó branco, se impõe no corpo que não se satisfaz. Uma peça de teatro é encenada por um palhaço que declama poesias em favor da vida. Monólogo de patética esperança. O palco italiano se rompe e a platéia participa da encenação. Cem palhaços declamam poesias em favor da vida. Mãos sedentas por sangue tremem.
Bonecos de aço tentam tocar o céu em parques de diversões na antiga Alemanha. Uma manada de ratos peregrina entre fendas, escondendo-se dos raios solares. Os raios os perseguem e queimam sua pele dura e seus ressecados pêlos. Narcóticos são criados para o deleite de veias sedentas e insatisfeitas. Robespierre morre sufocado no próprio vômito.
Garotos brancos podem sonhar com o dia em que serão negros. Garotos negros não sonham, agem. Paris é currada por uma grande construção de ferro. Uma bomba caseira explode. Um cão vomita. Um soco é desferido. Uma língua sangra. Túmulos são conduzidos por zumbis anêmicos. Um edifício em chamas grita e sorri. Fantasmas saem de janelas fechadas e contemplam a cena. Infelizmente, Laio apenas morre nas mãos de Édipo. Banheiros públicos abrigam belas garças que buscam o contato com os seus. Bonecas de plástico desfilam em uma praça pública da antiga Roma.

                    Se o louco insistisse em sua loucura, acabaria se tornando sábio.”
                                                                      William Blake

Acordo no final da tarde. Mais um sábado em Porto Alegre. O verão acabou, faz tempo. Os moradores de Tramandaí tomam conta da cidade. Nem é inverno ainda. Será que teremos? Abro o jornal, procurando alguma coisa para fazer. Mais uma vez me decepciono. Nenhuma peça de teatro. Dezenas de salas de cinema permitem apenas filmes medíocres. Decido comer alguma coisa. Saio do Menino Deus e percorro algumas quadras até a Oswaldo Aranha. Paro na Lancheria do Parque.
Peço o de sempre: Xis carne sem ovo. Tomo café, enquanto finjo ler o jornal emprestado de alguém. Dois traficantes sentam-se à mesa ao lado. Estranho não terem me abordado. Perambulando pela Oswaldo Aranha há quase uma década, é impossível não ser reconhecido e não reconhecer. Todos se conhecem. Todos sabem quem é quem. Aqui todos são anônimos apenas para a vida lá fora. A vida das construções bem construídas; das salas e escritórios; do terno e gravata; do beijo insípido; da infância castrada; da juventude impedida de ser jovem. A vida adulta que insiste em ser adulta, com suas estranhas regras e estranhos vícios.  
Mas é claro que o reconhecimento aqui é outro. Reconhecimento místico talvez gerado pela droga. Já ouvi falar muito sobre o sexto sentido da narcose, o que não deixa de ser verdade. Mas droga aqui é apenas um efeito. O contato místico entre as pessoas - esse contato tão pessoal - é gerado por uma liberdade quase utópica.
Ás vezes rola um beijo em uma desconhecida sem precisar de uma palavra. Alguém começa a falar contigo como se fosse teu melhor amigo. Um baseado aparece do nada. Grupos se acumulam na rua sem a existência de barreiras. Um grupo interage com outro grupo que interage com outro grupo, formando um grupo único. Não é uma quadrilha. Talvez uma matilha jovem que tem muito mais o que fazer do que tentar seguir pequenas convenções e etiquetas.
Quando as coisas esquentam mesmo, ou seja, sempre, o clima enlouquece. Alguém sai bêbado da Lancheria e é atropelado por uma ambulância, depois por um carro, pára junto de nós e diz apático: “Porra, acho que quebrei um dente”. Um rapaz, louco de Benflogin, engatinha entre a massa no Escaler. Algumas pessoas sorriem. A maioria não vê. Um grupo o leva para comer alguma coisa, naturalmente.
Um garoto aborda um grupo e pede que digam para policiais, que o perseguem, que ele passou a noite com eles. O grupo obedece ao pedido. Depois sem perguntarem o porquê da confusão, se embriagam juntos. Meses depois o garoto começa a namorar uma das garotas do grupo. 10 pessoas tomam chá de cogumelo e vêem anjinhos e estrelas, voando em plena rua. Uma briga entre gangues resulta em um garoto esfaqueado. Garotos, que nunca tinham visto o agredido, levam-no para o HPS.
                         
                            O que ilumina a noite? A poesia.”
                                                                  Jean-Luc Godard   

Dois jovens trocam beijos sobre a grama do Araújo Viana. Pela primeira vez despem alguém de outro sexo. Ali mesmo, entre o gramado verde, fazem amor. Após alguns beijos, um rapaz abraça uma garota pelas costas com seu casaco. Em frente à Redenção, dentro do Ocidente, junto a mais de 300 pessoas, a penetra. Uma garota, louca de bolinhas, caminha na pista de dança do Ocidente em linha reta. Cada menino ou menina que aparece em sua frente recebe um beijo. No fim do trajeto, toda encharcada de suor, contabiliza mais de 10 beijos em pessoas de sexo indefinido. 
A Oswaldo é o paraíso daqueles que sabem que o paraíso não é freqüentado por santos e um deus facínora que nada quer. Sim, existem santos na Oswaldo. Mas um tipo de santidade diferente, conhecido apenas por aqueles que aqui convivem. Aliás, todos são santos na Oswaldo. Não há hierarquias. Nunca vi alguém pedir um autógrafo para os mitos da cultura da cidade que freqüentam a rua. As bandas, que fazem ponto no local, são tão importantes quanto o traficante, o dono do bar ou o conhecido.
Não se faz turismo na Oswaldo. Não se vem aqui para se ver estrelas do Rock, e todas as grandes estrelas estão aqui. Sim, não dá para negar que boa parte de tudo que aconteceu de bom na arte, em Porto Alegre, teve algum tipo de ligação com a rua. O rock Porto-alegrense – essa manifestação de extrema importância - é Oswaldiano por excelência.
Os Replicantes, a Cachorro Grande, a Graforréia, Nei Lisboa, Edu K, o Defala, a Ultraman, a Bidê ou Balde, entre tantas bandas, fazem ou fizeram presença nos bares, nas calçadas, nas ruas, neste ponto que se convencionou a chamar de, simplesmente, Oswaldo. E não é só o Rock, é a cultura que está presente. Ainda se encontra o diretor de cinema Carlos Gerbase e sua trupe, tomando uma ceva na Lancheria.
A Kátia Sumam e o Frank Jorge estão, quase todas as semanas, no Ocidente com o Sarau Elétrico. A turma do teatro, poetas, pintores freqüentam o espaço. Se Kerouac, Hunter Thompson, Rimbaud, os surrealistas, os Beats vivessem em Porto Alegre, nos dias de hoje, certamente estariam aqui.
Mas infelizmente só é produzido na cidade sub-estrelas, sub-gênios. Viva o submundo! Viva a subvida do terceiro mundo! Ser brasileiro é ser marginal. O que seria então ser brasileiro e freqüentar a Oswaldo? Que tipo de marginal nós somos? Dizem que a Oswaldo morreu. Bem, Deus também, segundo Nietszche, mas sabemos que ele continua vivo. A Oswaldo é o símbolo da cidade que mostra que a marginalidade pode ser jovem e criativa. Exatamente o que o grande rosto paterno odeia: juventude e criatividade.  
Saio da Lancheria. Paro no Arteplex. Assisto algum filme que não me chama a atenção. Passo na Cultura para ver se há algum livro interessante para comprar. Poucas opções como sempre, cheio de gente como sempre. Tomo mais um café. Permito-me ficar entediado. Arteplex e Livraria Cultura, que coisa mais clichê. Que coisa mais pequeno-burguesa.

Voltarei, com membros de ferro, a pele sombria, olhar furioso: pela máscara, me julgarão raça forte (...). Vou ser ocioso e brutal (...) Serei salvo (...) Por ora sou maldito, tenho horror da pátria.
                                   
                                                                  Rimbaud, Uma temporada no Inferno
                                     
A criatividade às vezes dá as caras. Eu a encaro, e a beijo e a curro. Delícia produzir o que eu nunca produzi. Delícia não ser redundante. De onde nascem as palavras? Eu não penso ao escrever. As idéias vão aparecendo e, quando vejo, tomaram forma. Forma? Que forma? Forma indefinida. Monólogo louco sem a preocupação do outro.
Mergulho na sujeira da beleza ou na beleza da sujeira. Os espíritos rondam, estão por aí. Eu os absorvo e os transformo não, necessariamente, em algo meu, mas em algo que eu compreendo. Sou o meu melhor leitor, pois conheço muito bem esses espíritos que falam comigo. A loucura que produzo é uma loucura muito bem conhecida, muito bem mapeada.
Outros que também a conhecem, entendem o que escrevo, talvez tanto quanto eu. Meus textos não são meus. Não são de ninguém. Talvez nem sejam dos espíritos. Restam poucos dias para a viagem. Sair do Brasil para ficar um tempo na Europa é um movimento violento.  Minha primeira grande viagem. Minha primeira verdadeira caída na estrada. Nem imagino o que irei encontrar.
Muitos fugiram daqui. Quantos se exilaram do país para viver uma outra vida? Minha intenção não é tão ambiciosa. Apenas quero cair fora literalmente, por um tempo. Cair fora dessa vidinha em que estou enraizado. Sinto que meus pés estão presos nessa terra.
A mesma cultura há tempos. A mesma identidade compartilhada como os mesmos. Tudo é igual. As cores estão gastas. Ninguém mais sofre, pois todos estão acostumados. A beleza da terra é apenas vista por quem vem de fora. O lance é estar fora. Poderia ir para Amazônia para tomar Peiote. Mas quero o máximo de distância do país para ver o que acontece.
                                          
“Os verdadeiros santos eles consideram loucos, eles é que são loucos.”
                                                                              Carl Solomon

Volto para a Oswaldo. Uma blitz policial põe rapazes na parede e garotas assustadas em balcões. Três garotos menores de idade são levados. Para aonde? Para aonde? Ninguém se assusta. Todos consideram a situação uma ação de rotina. Ação de rotina ser revistado por um policial armado. Rotina: estranha palavra. Sim, há uma rotina na Oswaldo; de um lado a da lei; do outro lado a dos fora-da-lei. Mas quem domina a rua somos nós, os bandidos. Nós tornamos essa terra uma zona onde tudo é permitido - de preferência um tudo permitido repleto de drogas, sexo e diversão.
Em qual lugar dá para se drogar, comprar drogas, se esconder, transar em locais públicos, dormir na rua como na Oswaldo? Talvez apenas a vida privada, entre quatro paredes, permita algo parecido. Mas quatro paredes não abrigam centenas de pessoas.  E em um lugar onde tudo é permitido coisas maravilhosas acontecem. Ainda mais por esse “tudo é permitido” ser produzido por um bando de jovens.
 Mudança eu falava. Corpo em constante construção. Isso é visto nas inúmeras máscaras que os jovens utilizam na Oswaldo. Punks com jaquetas de couro, cabelo espetado, vinho barato em uma mão e lata de cola na outra dormem em plena rua. Góticos vestidos de preto, com olhos pintados e ares afetados declamam poesias de Allan Poe e sonham com anjos e demônios.
Hippies anacrônicos, com cabelos Rastafari, fumam a erva sagrada em cachimbos feitos com as próprias mãos. Black Metals, com caras de mal, bebem cervejas e vivem como se estivessem em um filme de terror. Moods, com seus terninhos e cabelo singular, trocam informações sobre as últimas novidades dos anos sessenta.  Emos, a turma mais jovem, brincam de amor livre e misturam diversos estilos. 
E mesmo quem não aderiu a todas essas sub-culturas envolvidas com a música - mais especificamente o Rock - interage com elas. Pois o Rock é um dos elos da Oswaldo.  Fica a pergunta: o Rock de Porto Alegre fez a Oswaldo, ou o Rock de Porto Alegre foi feito pela Oswaldo? Sim a Oswaldo é Rock, e o Rock é jovem. Logo; a Oswaldo é jovem. Bem, mas isso já foi dito.
                                                 
                                              Sonhos
Bebês vodus dançam em salas acolchoadas pela magia negra institucional. Estranhos seres de branco empunham chicotes e seringas, impondo para as almas encarnadas o ópio da inexistência. Ratos de cabelos brancos choram ao relembrar da idade adulta. Fotos, de todos os grandes poetas, se aglomeram em paredes sujas por um branco nada inocente.
Fotos, de grandes gênios da arte, se aglomeram em cima de macas assépticas. Fotos, de grandes mártires, ofuscam os olhos dos homens de branco, fazendo-os chorar por saberem que a clausura da genialidade foi o grande genocídio da humanidade. Os inumanos, vestindo roupas circenses, também choram ao contemplar as fotos e por terem rompido a barreira, ou melhor, pela barreira ter sido criada.
Lobotomias são distribuídas a preços módicos. Choques químicos são aplicados em cinco parcelas. A farmacopéia universal é imposta como a única forma de moldar a humanidade. Suicídios são proibidos por lei para que o grande suicídio seja imposto lentamente. Uma vida inteira, de morte contínua, vive entre salões e corredores fechados por grades de ossos.

                                            Início da semana
                                      
                                         “A morte constrói, a morte destrói.”
                                   Paulo Martins em Terra em Transe de Glauber Rocha

Caio na estrada. Bem, mas uma estrada nada romântica. Nem um pouco parecida com a estrada dos Beatnicks, a de Rimbaud ou a de Van Gogh. Uma estrada diferente da que experimentarei nos próximos dias. Saio da Castelo Branco em boa velocidade. Entro na BR de Canoas. O trânsito fica lento. Um acidente, óbvio. Mais um dos milhares de acidentes que ocorrem no ponto e que fazem com que se fique parado, por quase uma hora, em um trajeto de um pouco mais de um quilômetro.
Coloco um Cd do Ultravox. Acendo um cigarro. Um carro passa em alta velocidade no acostamento. Como as pessoas podem ser tão infantis? O movimento lento, aos poucos, torna-se uma velocidade um pouco menos monótona. A linha reta segue contínua. Um linha reta, sem estilo, sem beleza, sem poesia até São Leopoldo. Linha reta inútil, sem nexo, sem sentido. Linha reta neurótica que aglomera o trânsito, as carcaças de ferro e as carcaças de ossos em uma sintonia violenta, agressiva, doentia. Mas as pessoas têm que ir e vir. Ir da vida para chegar à morte.
Ou, simplesmente, continuar seguindo a trilha da morte. Eu sigo a mesma trilha – sei que estou morrendo. Extrair da dor a poesia, continua sendo doloroso. Quantas linhas retas escritas. Quantas linhas retas seguidas, para chegar a lugar nenhum. Sim, há prazer no ato de escrever. Também há prazer – um prazer mais ameno – quando o outro reconhece o que escrevo. Mas, depois, o prazer acaba. O texto vira um túmulo. Um retrato do que já fui. Uma prisão do passado. Uma falsa eternização de um fluxo que não mais serve, que está envelhecido e que simboliza alguém que já morreu.


                              Aeroportos e aviões

24 horas enclausurado em estranhos pontos de transição. 24 horas preso em lugares onde quase nada se cria, se produz e se faz. A regra aqui é esperar ou, no máximo, consumir. Aliás, qual é a função de consumir? Gastar dinheiro em bibelôs de consumo nada mais permite que o prazer fantasma, prazer idêntico ao da droga, e como Willian Burroughs dizia: “Talvez todo prazer seja apenas alívio, e o que se vive quando se está aliviado é um vácuo que não deixa marca na terra das lembranças”. (Moraes, 1984, p.65)
Em aeroportos e aviões existem apenas dois tipos de alívio: o alívio de não mais estar ali, e o alívio gerado pelo escapismo que permite esquecer que se está ali. A função das lojinhas com preços isentos de impostos, das pernas magras e silhuetas esbeltas das aeromoças, do álcool e dos barbitúricos é aliviar quem está indo ou vindo, aliviar a espera do contato com o destino - engraçado que acreditem ainda em destino.
O tempo passa de forma dolorosa. Não penso mais com o relógio. O tempo lerdo macera minha cabeça embriagada, meus pés inchados, meu corpo sujo, minha boca que pede água, vinho, uma saída rápida para Madri. Sei que ainda tenho que atravessar o Brasil - ver a pátria de cima, rapidamente, como quem não quer mais nada com ela, como quem foge dela.
Alguns venezuelanos de tez escura e faces de traficantes contemplam lojas de perfume, adquirindo o odor secular francês. Índios chilenos com o corpo rijo, e pequenos sorrisos e pequenos olhos asiáticos tomam coca-cola e mastigam sanduíches de presunto, com a calma budista oriunda do verdadeiro sofrimento.
Brasileiros mal vestidos, sem pudor, deitam-se em sofás, sonhando com o contato com a Europa. Uma alemã adolescente fuma um cigarro, e troca olhares e gracejos com jovens uruguaios. Argentinas, com a cara besuntada de maquiagem barata e vestes espanholas, mostram seus dentes enormes em boçais sorrisos.
Um chileno gay, com a postura universal da homossexualidade, olha para os lados, para frente, boceja e prende seu foco de visão em meus pés. Um grupo de Norte-americanos hiper-alimentados, quase gigantes passa rapidamente como uma manada de elefantes, tropeçando em um grupo de latinos de nacionalidade indefinida. Aeroporto em Buenos Aires, o início de minha trajetória.
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                                                       Madri
                                 
                                    - Precisamos continuar indo e não pararmos até chegarmos lá.
                                   - Onde estamos indo homem?
                                   - não sei, mas precisamos chegar lá. 
                                                                                                   Jack Kerouac

Acendo um cigarro e tiro fotos da janela do hotel. Em minha frente uma grande rede de cinemas, a Warner, se petrifica. Contemplo o céu de Madri que cospe um sol pesado de final de primavera. Meus lábios, nariz e axilas começam a secar. Noto, pela primeira vez, a proximidade do deserto. Caminho do hotel em direção a Plaza Mayor.
A praça, realmente belíssima, fechada em suas extremidades por uma construção imponente, apresenta o típico ar patrimônio histórico de Madri. Em tempos remotos, ela abrigou execuções e julgamentos da Inquisição, e hoje é um dos corações da vida social da cidade. Uma das máximas de Madri é: “Todos os caminhos levam a Plaza Mayor”, o que não deixa de ser verdade, pois o número de pessoas é imenso em quase todos os horários do dia.
 Japoneses, sedentos pelo escapismo da cultura milenar Oriental, mesclam-se a espanhóis, de todo os pontos da Espanha, que mergulham em suas raízes.  Imigrantes do norte da África, que buscam o esplendor da economia Européia, contatam Norte-americanos que se satisfazem com a fuga da moral falida de seu país.
Brasileiros com caras vestes rotas, querendo a todo o custo se desligar da pobre terra, chocam-se com indianos de largos sorrisos e intenções desconhecidas. Argentinos, uruguaios, mexicanos, chilenos, provavelmente, buscam uma possível identidade que perderam há séculos atrás. A pluralidade de culturas e a raiz espanhola interagem visivelmente, formando um cenário único.
Além disso, acrescenta-se a essa fauna heterogênea, inúmeros garotinhos, de visual rebuscado e olhares nada inocentes, que dão um colorido especial à praça e à cidade. Esses garotinhos deixam confusos os passantes, pois fica difícil de distinguir se eles são gays ou, apenas, metrossexuais. Mas tento confiar em minha intuição: Madri é a cidade que mais aglomera gays no globo. 
Sento no Museo del Jamón – um dos mercados mais tradicionais de Madri - e delicio-me com um sanduíche de presunto cru ibérico – uma das iguaria mais tradicionais da Espanha. Depois de quase uma hora tentando diferenciar os nativos dos turistas e os metros-sexuais dos gays, em uma troca de olhares não tão inocentes, encho o saco da “terceira praça mais bela do mundo”, e resolvo dar uma caminhada “sem rumo definido” – uma das máximas de minha peregrinação pela Europa.
 Os arredores da Plaza Mayor abrigam inúmeras, quase infinitas, ruinhas, becos, praçinhas e prédios geminados, que compõem um belo cenário que irei contemplar em boa parte de minha estadia em Madri. Mesmo apresentando uma arquitetura secular de forte importância histórica, esse ponto manifesta uma simplicidade singular, o que cria um contraste com boa parte das edificações de importância mais significativa.
A maioria das construções apresenta uma estética e função padronizada. Todos os prédios de, mais ou menos, quatro andares abrigam, em sua parte inferior, bares e restaurantes com mesas na calçada e, na parte superior, apartamentos particulares com janelas altas e belas sacadinhas, além de muitos Hostais – pequenas pensões com preços módicos. Recortando os prédios aparecem ruas, em sua totalidade, estreitas que impedem o fluxo de carros e são utilizadas, preferencialmente, por pedestres.
Já é quase final da tarde. Os bares, mesmo sendo um dia de semana, começam a ficar cheios. A festa anual de San Isidro, uma das mais famosas da Espanha, trouxe gangues de garotas e garotos que passam rapidamente com sorrisos, caras e bocas e dialetos de todo o globo. Vejo um letreiro, em um bar, que diz: Taverna. Sento-me e peço uma cerveja. Mantenho minha atenção em uma placa que revela que o bar existe desde o final do século 16. Me junto a alguns garotos. Tomo mais algumas rodadas de cerveja. A noite é longa, mas esconde-se em algum lugar negro de minha memória etílica.
                        Bloco dos Primeiros Sonhos Europeus

“O que existe de mais cruel que um pensamento sem freios nem guias, sem limites?”
                   Antonin Artaud

Asiáticos canibais percorrem o caminho da eternidade, tentando contemplar a imagem de um deus único que a eles nunca pertenceu. Crianças suicidam-se, em quartos de hotéis baratos, na tentativa de tornar desconhecida à ingenuidade e à verdadeira transcendência. Antonin Artaud compõe manifestos líricos e violentos, em louvor à transgressão subjetiva e social, para destruir e recriar a arte da cultura ocidental.
Indígenas vendem seus dentes, e seu orgulho e suas vidas em esquinas, e vielas e becos para eunucos canibais vestidos de ternos e caretice demasiada. Willian Burroughs injeta um pouco de tudo em suas veias ressecadas, para criar métodos e loucuras textuais em contraposição à insipidez do cânone literário.
Ciclos contínuos de decadência tornam filhos em pais, torturados em torturadores, vítimas em assassinos, sadios em enfermos, artistas em doentes clínicos, vivos em mortos em ruas de cidades do México, da Itália e de cantos hiper-povoados de Marte e Saturno. Godard agride com violência criativa a caretice pró-holywoodiana, possibilitando ao cinema o retorno a sua função política e artística.
Um prédio centenário interage com automóveis bilíngües adolescentes em uma cópula violenta que faz o céu tremer. O sorriso torna-se ilegal, sendo traficado por babuínos Hindus em vilarejos do norte da Espanha. Nietzsche declara a morte de Deus para aqueles que o mataram, tornando a possibilidade de uma eternidade metafísica em um sofisma velho e decadente.
Fios de barbas crescem. Unhas quebram. Dentes ganham cáries. Hímens são rompidos. Ânus são penetrados. Estudantes de todo o universo são enjaulados em um prédio medieval, e recebem finas sabedorias de sapos semi-analfabetos. Miró cria uma palheta de cores singulares para compor abstrações lúdicas, impondo ao lirismo da arte outra face.
Gangues de hidrantes hiper-alimentados cospem urina, e fogo e sangue no panteão da arte universal.  A verdade é descoberta por um cão raivoso que arranca a própria língua, pois sabe que a verdade nunca deverá ser latida. Deleuze luta contra a organização fascista imposta pelo organismo em cantos filosófico-dançarinos que vangloriam o Corpo Sem Órgãos.
Genes, árvores, bactérias, pedaços de ferro e restos de ossos simulam orgias intermináveis em ovação ao que restou de eternidade. Tudo é reduzido a nada para, logo após, o nada tornar-se a imagem de tudo. O impossível torna-se possível - pelo menos até quando as pálpebras se abrirem e ele voltar a viver como eles vivem. Charlie Parker desenvolve um estilo de improvisação, em seu surrado saxofone, que supera os grandes mestres da música erudita. 
O grande deus ânus engole Londres, Amsterdã, Tóquio, Berlin, São Paulo, Praga e uma vila no sul da França. Juízes canibais vendem punições por algumas notas de merda e confiança dúbia. Drogados-homossexuais escondem-se em baixo de viadutos e contemplam as pregas de seus ânus e os hematomas de suas dermes, como quem contempla o pôr-do-sol divino.
Jim Morrison refugia-se em uma banheira de hotel parisiense para dar fim a um ciclo de produção-autodestruição-transcendência, que renova a música e o comportamento de inúmeras gerações. Dois garotos encaram-se, reconhecendo a beleza da amizade e algo mais. Um palácio de carne, repleto de sangue, abriga três gerações de infames papas. O morto pergunta a Deus qual é o significado da vida. Deus se cala da mesma forma como sempre ficou calado.
Idosos edipianos frustrados choram por seus pais terem morrido e, principalmente, por nunca terem atingido seu grande ideal. Máquinas canibais da revolução industrial, feitas de ossos, brincam com pequenos bibelôs digitais em praças de silicone da América sulista. Dois poetas sem pátria, sem famílias, sem dinheiro, sem nada que os permita serem humanos vendem seus espíritos em mercados de pulgas na China. 
Rimbaud compõe a maior obra da literatura, em um só golpe, e, logo após, esconde-se na África, para ser descoberto por estudantes franceses que o conclamam o maior poeta da história. Neuróticos são condecorados cidadãos modelos em cidades do norte da Alemanha.
Garotas púberes felicitam-se por contemplarem manchas de sangue em lençóis de seda branca, em quartos de hotéis de algum lugar ao lado do céu. Gangues de garotos de beleza demasiada dançam balé em piscinas de ouro repletas de vaselina e champanhe. O ilimitado da arte e o impossível dos sonhos: as duas faces da mesma bela moeda.
                                    “No coração de uma árvore um novo rizoma pode se formar”
                                                                        Gilles Deleuze 

Velásquez, José de Ribeira, El Greco, Goya, os Brueghel, Caravaggio, entre tantos artistas consagrados, tornam o Museu do Prado - o museu mais renomado da cidade e em atividade desde o início do século 19 - ponto obrigatório para quem busca a face estética do Ocidente. Boa parte das obras expostas representa a arte que foi permitida ser histórica por ser reflexo do desejo de entidades superiores do passado, como os reis e a igreja.  O Prado é a antítese da simplicidade, do efêmero, e, principalmente, um símbolo de eternidade de um país com uma história gloriosa.
E essa história gloriosa e intocável, a história dos reis, do clero, dos grandes feitos e efeitos, que está registrada em forma de arte no museu, permite que os sonhos coletivos se desliguem do presente em função de um passado idealizado. Ouço muito falar que o presente é uma degeneração do passado, talvez seja, mas percebo esse sentimento como sendo retrógrada e conservador.
É muito fácil deitar a cabeça em fórmulas prontas. A segurança que a história permite é muito menos dolorosa que a insegurança dos passados, presentes e futuros que não foram e não serão registrados. Quantos artistas foram calados, esquecidos ou simplesmente não foram vistos? O trono da história é uma cadeira elétrica em que nos sentamos e morremos. A vida não é um livro de história. A arte não se resume a uma museu. A realidade não é uma, ela é várias.
Pasmo diante de As Meninas de Velazquez, das pinturas negras de Goya, do surrealismo religioso de Bosh, dos excessos de El Greco, da luz e sombra de Caravaggio, a beleza dessas obras é inegável. Mas acredito que outras coisas estejam acontecendo, sei que outras coisas aconteceram. Por que daria mais valor ao que está exposto com o símbolo de eterno?
Os milhares de turistas, sedentos por fotos e por saciarem seus sonhos eróticos de história, conjuntamente a uma sensação de impotência – por estarem presos a uma realidade dura e perfeita demais - me jogam para as ruas novamente. Volto para os arredores da Plaza Mayor. Contemplo as antigas construções que abrigam simples mortais. Paro novamente na Taverna existente desde o século 16, sabendo que o rei e aqueles que escreveram a história nunca a conheceram. 
Sento-me e escrevo algumas linhas em guardanapos de papel: Não posso negar o êxtase de contemplar a bela arquitetura da cidade, suas catedrais, palácios, museus, inúmeras fontes, esculturas majestosas e jardins imensos que, em muitos locais, banem as edificações da atualidade. Não há como sair ileso do contato com essa realidade que parece perfeita demais para um brasileiro.
Obviamente, como todos, tenho aquela necessidade de abundância e de busca de um êxtase superior. Esse sentimento me leva, muitas vezes, a buscar os grandes reis e Deus, ou qualquer coisa que me faça superar minha condição mísera de detentor de um corpo limitado e de uma existência frágil. Mas, mesmo assim, pensando bem, fico com o banal, o carnal, o que posso tocar ou destruir, o que irá me amar ou me odiar em uma recíproca de ossos e sangue, não de concreto e papel.

“A fragilidade do escritor não é psicose, mas porosidade ao excesso”, e “os caminhos do excesso levam ao palácio da sabedoria”.
                                                                Peter Pál Pelbart encontra William Blake

Manhã quente. Sol majestoso. Céu supra-azul. Garganta, lábios e narinas ressecados. Olhos abertos e hiper-dilatados tentando contemplar tudo, perceber tudo aquilo que as mãos virgens podem e devem tocar. Tocar o céu não é mais a busca, pois qualquer elemento, o mais mínimo e fútil que seja, apresenta-se como a porta para a transcendência.
Sinto-me em um estranho céu. Percebo-me como um estranho anjo. Estou em um êxtase, tão expressivo, que me sinto um cristão psicótico. Contemplo algum deus estranho nas ruas de Madri, e ele me mostra sua face. Espero que a explosão dos sentidos comece a se dissipar. Sinto que absorvo mais do que posso.
Saio dos arredores da Estación Norte de ônibus. Desço perto do Museu do Prado. Percorro jardins, e parques, e ruas e prédios que confirmam que há beleza em cada ponto da cidade. Caminho alguns poucos quilômetros e chego ao Museu Nacional Reina Sofía. O museu, em sua fachada, apresenta uma construção antiga adornada por torres e elevadores futuristas; no interior, a memória da arte moderna e contemporânea descansa majestosamente.
Ponce de Leon y Cabelo é representado por sua obra prima, Acidente, um quadro que mergulha no lirismo da violência. O grupo Equipo Crônica brinca com a Pop Arte, permitindo juventude e vitalismo para a herança de Warhol. Instalações de vídeo contemporâneas dialogam com o high tech, impondo uma fruição catártica.   
Quadros negros de Dali, quase como uma paródia de Goya, apresentam a face mórbida e poética do mais famoso e comercial dos surrealistas originais. Tanguy, Masson, Léger, Delaunay, o grande Juan Gris, entre tantos, mostram que o cânone artístico, às vezes, se permite dar espaço para manifestações mais transgressoras. É difícil impor para a arte um controle total - seja moral ou estético -, pois a arte é um reflexo de um grau de exterioridade, que beira a loucura, próprio ao artista.

                                       È possível pensar sem enlouquecer?
                                                                  Gilles Deleuze

Miró é representado por algumas poucas obras. Seu estilo singular, criado a partir de uma palheta de cores íntimas, produz um choque contemplativo. Roxo decadente. Preto de vidência. Branco eterno. Laranja esquizofrênico. O vazio com excesso de sentidos. Silhuetas mágicas. Linhas que dançam. As linhas de Miró não são meros artefatos para compor um ambiente lúdico, como muitos críticos da arte dizem, muito menos são o reflexo de uma dança infantil, como diziam seus colegas surrealistas.
Elas simbolizam as veias do corpo humano. Veias portadoras de toda a dor gerada pela consangüinidade primitiva e guerreira. Veias cheias de sangue. E o sangue não mais como mantenedor da vida e, sim, como expressão da morte. O sangue da guerra. O sangue que escorre do corpo dos vencidos e que é bebido pela boca dos vencedores. A Guernica de Picasso, que está no andar de baixo, não se compara à dor que contemplo nas obras de Miró.

"Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito."
                                                                    William Blake

Penso em tomar um ácido ou fumar um singelo baseado, corromper o corpo com um fantasma quente e psicodélico, mas não, já estou preenchido o suficiente, já estou extasiado o suficiente, já estou em um estado que a lisergia não poderia superar. Estou chapado de cara, o que permite o aparecimento de linhas de fuga com o mero abrir de meus olhos.
Não sei que horas são. Joguei fora o relógio. Mas não estou perdido, isso apenas acentuou o grau de absorção da nova realidade, desmascarou o tempo louco que agora faz parte de mim. Provavelmente, Madri me esperava para formar canais que levassem para as portas de um corpo que pré-existia em mim. Talvez o corpo que vive ao lado do infinito.
Novos passados, vidas não vividas, genes mutantes percorrem o meu corpo em um fluxo maravilhoso. Nada mais tenho - apenas a sensação de perda constante, perda de tudo que me fez ser eu. Não tenho mais pátria. Eu sou o filho do general que eu mesmo venci.
O que me move é o movimento incessante. A liberdade não poderia ser mais deliciosa e violenta. Sou um xamã em estado de vidência. Apenas contemplo, não reflito, experimento. Não sou mais eu que falo, é o mundo que fala, não por mim, mas em mim. As sensações que me percorrem poderiam ser associadas à fruição artística. Sou um apreciador de arte em frente a uma obra prima.
Mal consigo respirar pela grandeza dessa obra de arte que contemplo e que, principalmente, vivo. E ela não tem função - arte vagabunda -, pois tudo que faço é efêmero. Aqui não produzirei raízes. Não criarei nada que seja utilitário. Não me fecharei em nenhuma estrutura. Sou um anarquista satisfeito. Sou um estranho receptáculo que abocanha tudo, e digeri e defeca em papel o que está sendo lido por você agora. Te olhei nos olhos. Sorria. Estamos próximos. Um pouco mais poderias ganhar um beijo ou um tapa na cara. Não, caro leitor?

        "Para qualquer lugar! Qualquer lugar! Desde que eu saia deste mundo!"
                                                                                           Charles Baudelaire

Encaminho-me em direção a Toledo. A paisagem flat é praticamente desértica. As formações rochosas e o solo apresentam uma cor esbranquiçada idêntica a Marrocos de minha memória televisiva. O céu, talvez pelo clima seco, brilha e apresenta uma cor azul bebê e pequenas nuvens branquíssimas.
A cidade fica em uma colina. O rio Tejo a defende em sua parte inferior.  Uma ponte secular faz ligação entre a cidade e sua periferia. Percebe-se que ela foi construída estrategicamente. O ponto mais alto é composto pela torre do que parece ser uma catedral. A cidade é um dos centros históricos da Espanha. Ao longo dos tempos, foi fortaleza romana, capital visigótica no século e capital medieval do país. Sua arquitetura mescla diversas culturas e épocas. Mas, infelizmente, nos dias de hoje, ela não ficou ilesa ao capital.
Miríades de pontos comerciais acumulam a praga universal – turistas sedentos por fotos e sua necessidade de fugir do presente.  Lojinhas de quinquilharias, bares, restaurantes e lojas de artigos típicos maceram a harmonia da cidade, impedindo a fruição total do que deveria ser um patrimônio universal intocável.
Faço uma visita guiada, pois seria inviável alugar um carro e viajar os quase 150 quilômetros que separam Madrid de Toledo. Alguns turistas me acompanham. Percorremos algumas ruinhas muito mais estreitas que as de Madri, mas de estilo parecido. Belos prédios, com mais ou menos dois andares, abrigam residências, mas o choque visual se apresenta na contemplação das construções de maior porte, principalmente as igrejas e catedrais.
O contato com a vida religiosa de Toledo me excita. Sinto que, aos poucos, fico mais flexível, permitindo-me absorver um tipo de cultura que nunca me interessou. Paro em frente à Catedral de Toledo. Nunca havia contemplado uma construção religiosa de tal porte. Noto que a torre que assistia, de longe, faz parte da catedral – o local mais próximo do céu e de Deus de Toledo. Uma enorme torre gótica, do século 15, com belos adornos que sugerem espinhos.
 Direcionam-nos à igreja de San Tomé. Em sua parte interior está a obra prima de El Greco, O Enterro do Conde Orgaz. Contemplo a obra, e absorvo o excesso de símbolos. Céu, inferno, terra, representados em cores nada sóbrias, adornam o tema, de certa forma, mórbido.
Continuamos caminhando, rapidamente. Paramos em mais algumas igrejas. Entramos em um museu. Os turistas que me acompanham parecem nada interessados no que vêem, fazendo piadinhas sobre assuntos diversos, ou demonstrando-se mais interessados nas lojinhas e bares que maceram o corpo de Toledo.
Em determinado momento, quando paramos em uma praça, um grupo de adolescentes começa a soltar algumas frases em um tom de voz nada baixo.  Aos poucos, o tom aumenta e torna-se gargalhadas histéricas. Quando nos distanciamos, os garotos visivelmente começam a gritar adeus, em diversas línguas, para nós. Os garotos eram nativos da cidade, e, com todo o direito, deveriam estar irritados com a nossa presença e a de todos os turistas que tornam Toledo uma obra de arte deformada.
 Sinto vontade de voltar a Madri ou, quem sabe, me direcionar para Londres, Paris ou para qualquer lugar do globo. Quem sabe uma tarde high tech em Tóquio, ou uma noite regada de vinho em Florença, qualquer lugar que me permita viver minha vida efêmera de vagabundo.
Agora sei que posso continuar indo para qualquer lugar, tenho esse poder. Não irei mais me prender em rotas definidas. Voltarei novamente para Toledo, mas anônimo, anônimo como um vagabundo - sem pátria, sem identidade, com um nome em constante mutação.
 

 8 Considerações Finais

Talvez tenha sido inusitado ou, no mínimo, diferente tentar pensar um tipo de jornalismo a partir de símbolos tão exteriores a ele, como essas manifestações que trabalhei: a Contracultura, On The Road de Kerouac, a escola de pensamento de Deleuze e, principalmente, a arte. Mas é exatamente esse grau de diferença que busquei.  Tive a necessidade de extrair elementos e agentes estranhos ao jornalismo, para pensá-lo de uma forma diferente e, assim, visualizar um jornalismo diferenciado.
De certa forma, essas manifestações podem ser pensadas como interiores ao jornalismo. Os Hippies, Kerouac e, até mesmo, Deleuze e Peter Pál Pelbart podem ser encontrados no jornalismo cultural, mas quis fazer uma ligação íntima e ativa. Não falei apenas sobre essas manifestações e, sim, as introduzi em meu jornalismo. Tentei pôr em prática os conceitos dessas manifestações.
Considero que, principalmente, minha ligação com a arte foi muito mais que íntima. Tanto em meu trabalho de crítica ao jornalismo dominante, quanto no trabalho em prática, a arte esteve presente não mais como um interior confortável, mas, sim, aberta em suas potencialidades, em sua condição de exterioridade.  
Quanto ao Vagabundo ele atravessa todas essas manifestações. O vagabundo pode ser associado a todas elas como posicionamento frente à vida, ou à obra. Pois como cito: Jack Kerouac era um vagabundo da literatura e da vida. Na literatura ele criou uma linguagem sem vínculos a máquina literária enraizada e uma linguagem tão harmoniosa e fechada em si mesma. A sua prosa espontânea abriu caminhos pra uma linguagem marginal, em movimento e sem centro, estranha a toda lógica do academismo literário. 
Os Hippies foram os Vagabundos da vida aprisionada da classe-média. Eles se chocaram contra toda realidade pequeno-burguesa em um gesto violento: a negação de todos os valores da sociedade adulta a partir da fuga. Deleuze, que cito em alguns momentos e que esteve presente em minhas leituras durante a composição da monografia, era um Vagabundo do pensamento, que apresentou possibilidades menos rígidas e desenraizadas em diversas áreas. Peter Pál Pelbart seguiu os passos de Deleuze.
Os inúmeros artistas que servem como referências em meu trabalho, como todo artista que se preza, eram Vagabundos na arte e na vida.  O Gonzo foi o Vagabundo do jornalismo, fazendo algo que se assemelha a Kerouac, levando o jornalismo para fora da prisão da linguagem institucional. Já eu peguei carona com todos esses autores para, como jornalista, cair na estrada e experimentá-la como Vagabundo.
Caí na estrada como um vagabundo para viver o movimento, para fugir de todos os vícios que me nego a compartilhar. Minha crítica ferina tentou não se calar por nenhum momento. Ataquei de frente as estruturas viciosas da mente sedentária das instituições jornalísticas. Mente que cria uma realidade mascarada e absurda.   
Minha linguagem em prática tentou negar todas as regras e fórmulas prontas. Não há lead, não há rosto paterno, não há centros de controles em minha experimentação. Meu pensamento tentou ser o mais amoral possível, anárquico e insubmisso ao grande pai todo poderoso o “jornalismo dominante”, e não só ele, mas, também, a vida que ele tanto reflete.
  Desequilíbrio, libertação e insubmissão a partir de um espírito que nada difere do espírito do poeta.  Jornalismo-poeta. Língua marginal e sem freio. São tantos os símbolos que vejo ao pensar em toda essa jornada. Símbolos que me levaram a um extremo. Não irei justificar se o Jornalismo Vagabundo é jornalismo. Porque não importa. Ficaria feliz se ele não fosse rotulado de forma alguma, se fosse possível inúmeras nomeações.
Acho que consegui isso: Um jornalismo livre, em uma metamorfose tão constante, que o impede de criar uma forma definida. Como a identidade de um jovem que está sempre em construção, “onde a vida se encontra em estado mais embrionário, onde a forma ainda não pegou inteiramente.”. (Pelbart, 2004, p. 65)
Identidade idêntica à buscada por, digamos, Kerouac em sua abertura a devires negros, marginais, vagabundos; aos hippies e sua negação extrema que os fez cair na estrada sempre fugindo como ciganos; ou a cabeça do Gonzo e sua metamorfose drogada.
 Gostaria de poder fazer qualquer coisa com o jornalismo. O jornalismo, por ser uma estrutura tão estagnada, por me oprimir, me impõe esse desejo tão radical. Mas é claro que esse desejo é simbólico, pois, na verdade, tentei descobrir novas saídas e entradas no jornalismo, como um Vagabundo que descobre novas saídas e entradas para cidades já conhecidas.
Trouxe os sonhos para linguagem, pois os sonhos permitem potencialidades impossíveis na mísera condição humana. Ou melhor, permitem devires possíveis e potencialidades isentas da prisão da realidade dura.  
Tentei criar e buscar outros reais, outras vidas. Como já citei: Não seria apressado dizer que a vida é apenas o que é conhecido (conhecimento, em boa parte, criado pelo jornalismo)? Quantas artes são feitas agora e não são apreciadas?  Quantos jornalismos nasceram e morreram no último século e não foram vistos? Quantas realidades escapam? 
Como eu negaria formas de arte, manifestações culturais, vanguardas e bens culturais que estão a minha disposição. Por que não usufruiria deles? Fiz tudo isso para tentar fugir da linguagem prisão da vida prisão, dos clichês, da realidade simples e redundante.  Será que consegui? Acho que sim.
Mas é claro que não cheguei a grandes conclusões. Não há moral da história. Meu trabalho não tem fim, seu início apenas faz parte de um processo. Havia um grande ideal, sair do grande jornalismo como eu disse, mas isso não deveria ter me importado.
 A narrativa que cito, esse gênero tão liberto e atual que nem mais é um exterior na literatura, faz isso. A garotada em blogs faz isso. Mas, infelizmente, tive que atacar o jornalismo, pois ele é um símbolo poderoso. Como tive que atacar os centros de controle da vida por simbolizarem o mesmo. Estou feliz com esse ensaio longo, poético, mas também didático, sem provas cientificas, filosófico, amoral, que defende meu ponto de vista pessoal. Não apresentei provas empíricas ou de caráter cientifico, mas acho que não precisava.







 Referências

CZRBONAI, André Felipe Pontes. Gonzo o filho bastardo do New Jornalism. Monografia apresentada no site:
DELEUZE, Gilles. Mil platôs. Traduçao de Aurélio Guerra Neto. São Paulo: 34, 1995. 93p.
HOME, Stuart. Assalto à cultura. Tradução de Cris Siqueira. São Paulo: Conrad, 1999. 198p.
KEROUAC, Jack. On the road. Tradução de Eduardo Bueno. Porto Alegre: L&PM,  2004. 380p.
KLINGSOHR-LEROY, Cathrin. Surrealismo. Tradução de João Paiva Boléo. Koln: Taschen, 2004. 95p.
LINS, Daniel. O artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. 134p.
PELBART, Peter Pál. A vertigem por um fio. São Paulo: Iluminuras,  2000. 221p.
ROSZAK, Theodore. A Contracultura. Tradução de Donaldson Garschagen. Rio de Janeiro: Vozes, 1972. 301p.
SCHURIAN, WALTER. Arte Fantástico. Tradução de Pablo Alvarez. KOLN: Taschen, 2005. 95p.
VÁRIOS AUTORES. Alma Beat. Porto Alegre: L&PM, 1984. 185.p.
WHITMAN, Walt. Folhas das folhas da relva. Tradução de Geir Campos. São Paulo: Brasiliense, 1983.141p.
WOLFE, Tom. Décadas Púrpuras. Tradução de Luiz Brandão. Porto Alegre: L&PM, 1989. 491p.


[1]    estilo literário e comportamental que aparece na década de cinqüenta, nos Estados Unidos, e que teve uma repercussão imensa em todo Ocidente, pois foi o primeiro grupo a ter tiragens de livros de poesia que chegaram a milhares, além de ter como seu maior expoente, Jack Kerouac.