UNIVERSIDADE DO VALE
DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
CENTRO DE CIÊNCIAS DA
COMUNICAÇÃO
GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS
DA COMUNICAÇÃO – JORNALISMO
Diego de Carvalho
JORNALISMO VAGABUNDO
São Leopoldo
2006
Diego de Carvalho
JORNALISMO VAGABUNDO
Trabalho de conclusão apresentado à
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS como requisito parcial para a
obtenção do título de graduação em Ciências da Comunicação – Jornalismo
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Rocha da Silva
São Leopoldo
2006
RESUMO
Esta
monografia é uma reflexão crítica sobre o jornalismo vigente que ocorre pelo
reconhecimento de características - como a subjetividade, por exemplo -
ausentes das práticas jornalísticas cotidianas. O principal objetivo deste
trabalho é tentar criar novas linguagens para o jornalismo. O método utilizado
é a pesquisa teórica, a reflexão e a pesquisa de campo. O trabalho demonstra
que é possível criar um jornalismo insubmisso às estruturas do jornalismo
dominante.
Palavras-chave: Jornalismo - Artes - Rizoma
SUMÁRIO
1 Introdução.................................................................................................5
2 On The Road, os Hippies e a Estrada.....................................................9
3 Novo Jornalismo.....................................................................................20
4 O Jornalismo Gonzo...............................................................................27
5 O Jornalismo Vagabundo......................................................................35
6 Notas Sobre a
Experimentação em Jornalismo Vagabundo..............50
7 Experimentação em Jornalismo Vagabundo.......................................56
8 Considerações Finais..............................................................................75
Referências Bibliográficas........................................................................78
1 Introdução
Esta monografia
dispõe-se a apresentar reflexões sobre um novo tipo de jornalismo a ser
inventado. Esse novo tipo de jornalismo diferencia-se em relação ao que
considero ser o jornalismo dominante. O jornalismo dominante, para mim, é o jornalismo que é contemplado diariamente, que fala
em nome das grandes instituições e que insiste em ser reflexo de um mundo duro,
inflexível, mas, ao mesmo tempo, simples demais.
Chamei
de Jornalismo Vagabundo essa proposta,
pois o Vagabundo simboliza uma forma de insubmissão a toda cultura dominante. O
vagabundo vive uma vida em movimento, é indiferente ao estado, não tem patrão,
nem raízes. Então decidi experimentar o jornalismo como um Vagabundo para, em
uma trajetória parecida, ser insubmisso no jornalismo.
Mas o Jornalismo
Vagabundo não seria apenas um novo tipo de jornalismo, mas, também, um agente
de crítica. No momento que tento fazer diferente, eu estou criticando, assim
meu trabalho não é apenas de criação e invenção.
Para
mim, essa monografia é uma crítica feroz contra tudo que me oprime no
jornalismo, mas também na vida. O Jornalismo Vagabundo é a minha tentativa de fugir
dos grandes centros de controle, seja na vida ou no jornalismo, o que considero
indissociável.
Mesmo
tendo pouco espaço e pouco tempo, tentei trazer inúmeras manifestações - que
comentarei adiante - na tentativa de absorver exterioridades do jornalismo para
pensá-lo diferentemente. Falo muito em arte, pois a considero exterior ao
jornalismo. Vejo que literatura, poesia, artes plásticas percorrem os jornais e
revistas, pois essas manifestações tão ricas atingem a tudo e a todos, mas para
mim o jornalismo as utiliza apenas como uma alegoria, pinta suas páginas com
arte, mas de forma fútil.
Além
de pretender trazer um novo relacionamento com a arte para o jornalismo, também
quero trazer novas formas de vida. Discorro muito sobre as possibilidades que
são perdidas quando se produz a partir de fórmulas prontas - aquilo que é
conhecido e visto por todos. Existem inúmeras formas de vida que não são
vistas, pois o jornalismo dominante se impõe como o reflexo da realidade, como
se existisse apenas uma realidade.
Quais
formas de vida? Bem, tudo aquilo que não é dito, que causa insegurança, o
minoritário, o marginal, o diferente. Trago a arte também por considerar que
ela tem poucos limites, até idealizo que ela não tem limites; então trazer a
arte para o jornalismo - ou para a vida - seria permitir que tudo fosse
possível, em ambas as parte.
Se a
arte cria mundos - ou compartilha mundos diferentes -, permitir um jornalismo
mais artístico seria ampliá-lo indo ao encontro de novos mundos, ou até de
criar novos mundos. Ou seja, buscar o que não é visto, ou buscar a arte são
faces da mesma moeda.
Apresento,
como referi, inúmeras manifestações culturais na monografia - que comentarei nesta
parte - que pouca relação tem com o jornalismo. Também trago duas manifestações
jornalísticas ligadas à literatura para demonstrar que existem formas de jornalismo
que fazem ou fizeram diferente, que pensaram diferente e que minha intenção não
é nova e, sim, um processo.
Mesmo que critique essas manifestações, elas
são importantes para fortalecer minha proposta. Também fiz um trabalho prático
dessa forma de jornalismo vagabundo, a parte final de meu trabalho, onde tento
expressar todo o processo de estudo durante a monografia.
A
monografia está montada da seguinte forma: no primeiro capítulo eu trabalho com
uma manifestação cultural, a Contracultura, mais especificamente os Hippies, e
uma obra do literato Jack Kerouac, On the
Road. Trago essas duas manifestações, pois elas simbolizam a luta contra a
cultura dominante e a negação de valores sociais. Tanto Kerouac quanto os
Hippies influenciaram o meu pensar e ajudaram a compor esta proposta.
A luta dos Hippies contra a cultura dominante, para mim, foi
muito mais importante que inúmeras barricadas revolucionárias. Seu símbolo
máximo, a negação, me mostrou que eu poderia negar e ser insubmisso ao jornalismo
dominante. Os Hippies negaram de todas as formas o rosto paterno e é exatamente
isso que quero fazer no jornalismo: negar o pai-patrão, as estruturas rígidas
das redações, os manuais, a moral conservadora que impede que novas
manifestações jornalísticas apareçam.
Já Kerouac caiu fora da América conservadora para ir ao encontro
de outra América e demonstrou-me que eu poderia perder a identidade de
jornalista branco-classe-média, permitindo-me ir ao encontro a tudo que esse
olhar branco não enxerga.
No segundo capítulo eu apresento uma
manifestação jornalística de forte importância, o Novo Jornalismo. Proponho-me a dialogar
com esse tema pelo fato de que o Novo Jornalismo é um agente importante no
contexto cultural do Ocidente e, principalmente, pelo gênero ter possibilitado
a expansão da linguagem do jornalismo.
Mas, neste capítulo,
muito mais que apologia, eu faço críticas, muitas vezes, agressivas ao gênero,
pois mesmo ele permitindo o contato com certa exterioridade do jornalismo, a
literatura, essa exterioridade se vê presa a estruturas, o que demonstra que o
Novo Jornalismo não quis flexibilizar totalmente a linguagem e não conseguiu
fugir de certos vícios. O Novo Jornalismo para mim seria uma forma de não fazer
jornalismo.
Como digo no capítulo: O Novo Jornalismo expôs mais os “draminhas”
psicológicos de uma realidade íntegra e fechada em si mesma. O Novo Jornalismo,
por querer a todo custo retratar a vida, ficou preso nela não buscando as
potencialidades que estão além da realidade cotidiana - fato praticamente
impossível em um best-seller, em um ganhador de um prêmio Pulitzer ou de alguém
que, por suas obras majestosas, foi imortalizado por Hollywood, ou seja,
pessoas que estão irremediavelmente integradas na estrutura social.
No terceiro capítulo eu
apresento o Gonzo Jornalismo. Proponho-me a fazer dialogar o
Jornalismo Vagabundo e o Jornalismo Gonzo por querer mostrar que o tipo de
jornalismo que me disponho a experimentar não é um fato isolado, e
principalmente, pelo fato de que o Gonzo fez ligações com alguns elementos que
estão relacionados a esta reflexão.
O
Gonzo talvez seja o jornalismo marginal mais conhecido do Ocidente. Ele trouxe
renovações para a linguagem jornalística a partir de abuso de drogas e choque
contra a moral dominante. Mas o Jornalismo Vagabundo, mesmo estando ligado a
máquinas semelhantes às do Gonzo, trouxe novas máquinas e ligações, o que torna
nossos jornalismos manifestações diferenciadas. O Gonzo, para mim, não é um
modelo a ser seguido e sim um agente de diálogo e um tipo sensível de
inspiração.
O quarto capítulo é o mais importante, pois é
o momento em que eu apresento o Jornalismo Vagabundo, ligo com as manifestações
dos capítulos anteriores, reflito o jornalismo e faço críticas severas às formas
de jornalismo que não me interessam. No quinto capítulo eu discorro sobre como o
texto do capítulo sexto foi feito - parte onde apresento em prática o Jornalismo
Vagabundo - e, ao mesmo tempo, faço uma ligação entre os enunciados dos outros
capítulos com essa prática em Jornalismo Vagabundo.
No capítulo sétimo e último demonstro em prática o
jornalismo que desejo. O texto a partir de viagens subjetivas e objetivas
mostra uma das formas de fazer jornalismo a que me proponho. Um jornalismo
artístico, marginal e vagabundo. Também será visto ao longo de todos os
capítulos citações e referências de inúmeras artistas, pois, como já referi, o
jornalismo vagabundo está ligado à arte.
Os
métodos que utilizei para compor a monografia foram quase todos teóricos. Li,
absorvi os autores e principalmente refleti muito. Em muitos casos, utilizo as citações
para justificar o meu posicionamento e uso os autores apenas como referência. Apenas
a parte da experimentação é que programei viagens, fiz entrevistas e trabalho
de campo para produzir o texto.
Este
trabalho é um ensaio longo. Um texto quase literário, algo entre o didático e o
poético. Sei que apenas meu ponto de vista aqui está em jogo, o que é perigoso,
pois não há provas científicas. Ele é tão informal quanto minha proposta. Mas
não haveria outra forma de tratar de tal assunto.
2 On The Road, os Hippies e a Estrada
Como pensar em um jornalismo experimentador de novas
linguagens? Como ir ao encontro de novas formas de
vida, para dar nova vida ao jornalismo? Como aumentar os campos possíveis da
linguagem jornalística? Como experimentar o jornalismo como um Vagabundo? Essas
perguntas, e muitas outras, são as que eu faço ao longo dessa jornada de
busca de um “devir-vagabundo” para o jornalismo.
Entre tantas
possibilidades de linguagens, entre tantas formas de vida, preferi agir, neste
capítulo, literalmente, e procurei esse “devir-vagabundo” entre a vagabundagem
da cultura do ocidente. Jack Kerouac e os Hippies, os temas desta parte do
trabalho, me permitiram compreender a estrada como um caminho de busca e de
negação.
A busca, vista em Kerouac, pode ser associada à minha busca
por um jornalismo autoral e singular. A negação dos Hippies é idêntica à minha
negação em relação às estruturas burocráticas do jornalismo. A estrada é um
emaranhado, com poucos limites, que está presente nesses dois agentes e no
Jornalismo Vagabundo.
Como disse, eu poderia ter utilizado diversos símbolos, as
manifestações culturais que considero válidas na história são inúmeras. Pensei
na Revolução Francesa, na guerrilha urbana brasileira, pensei em Rimbaud e em
Thoreau, mas a contestação dos Hippies e a busca de iluminação de Kerouac
apareceram como uma alternativa menos barulhenta e mais radical.
A contestação dos Hippies em seu símbolo máximo, a negação,
para mim foi muito mais importantes que as barricadas revolucionárias, e, como
eles, muito mais que o combate direto, pretendo dar ao jornalismo um caráter de
negação, negação do pai-patrão, negação das estruturas rígidas das redações,
negação dos manuais, negação da moral conservadora que impede que novas
manifestações jornalísticas apareçam.
A busca de Kerouac, essa busca egocêntrica de perda de
identidade, demonstrou-me que eu poderia perder a identidade de jornalista
branco-classe-média, permitindo-me ir ao encontro a tudo que esse olhar branco
não enxerga.
Aqui falo um pouco desses dois símbolos que deram à impulsão
necessária que eu precisava para continuar desenvolvendo minha proposta. Em
muitos momentos, símbolos que desenvolvo nos Hippies e em Kerouac se misturam,
mas esse ato, que é intencional, demonstra que existe uma forte ligação entre
ambos, e principalmente, entre eles e o jornalismo que proponho. Pode parecer,
à primeira vista, que ponho o jornalismo de lado, mas tudo que falo aqui pode
ser aplicado ao jornalismo. Como? Espero responder até o término desta monografia
de caráter ensaístico. .
O romance On the Road,
de Jack Kerouac, foi lançado em 1957, após ter ficado anos na fila de espera de
inúmeras editoras. Mesmo tendo recebido péssimas críticas, na época, em poucos
anos tornou-se um símbolo de forte expressão, sendo considerado uma das maiores
obras da literatura norte-americana. (Kerouac, 2004,
p. prefácio)
O livro foi (e ainda é) um marco na cultura ocidental, não
apenas pela sua disseminação massiva, mas por ter possibilitado renovações
cruciais na linguagem literária e ter influência direta em inúmeros movimentos
culturais e artísticos.
Toda uma legião de escritores, artistas, cineastas, dramaturgos e
músicos foi profundamente influenciada pelo estilo e pelas visões de Kerouac.
Difícil imaginar a obra de Sam Shepard, de Bob Dylan, de Bukowski, de Jim
Morrison, de Lou Reed, de Tom Wolfe, de Win Wenders, de Hunter Thompson, de
Bono Vox, de Jim Jarmush, de Beck, de Tom Waits, de Gus Van Sant sem On the
Road. (Keroauc, 2004, p. prefácio)
Conjuntamente a esses artistas renomados que fazem parte da
história da arte ocidental, um outro grupo de forte expressão, que irei
comentar mais adiante, também foi influenciado pela obra, os hippies – grupo
que produziu uma das manifestações mais criativas nos âmbitos sociais e
culturais do século 20. Além disso, o livro é a obra mais importante da Geração
Beat[1].
É inegável a
importância da obra que, muito mais que um mero trabalho literário, é um mito pop
precursor de inúmeras linguagens artísticas e culturais, situação vista em
poucas obras da literatura em nossa história.
Em relação à mítica que envolve a obra, ela já se manifesta
no método inicial de produção textual que o autor utilizou. A primeira versão
do livro foi redigida em apenas três semanas.
A versão original de On the Road foi escrita entre 9 e 27 de abril de
1951 num rolo de papel para telex, num total de quarenta metros ininterruptos
de prosa em espaço um sem parágrafo, com Kerouac aditivado por doses colossais
de benzedrina, suando uma camiseta atrás da outra, datilografando como um
alucinado, movido por aquilo que o poeta Lawrence Ferlinguetti certa vez chamou
de “febre onívora de observação . (Bueno, 2004, p. 10)
Este método, original e diferenciado de trabalho contínuo,
gerou mais de 600 páginas. A intenção de Kerouac poderia ser associada a um
tipo de escrita típica dos autores surrealistas, a “escrita automática”. Esse
tipo de criação textual era “um pensamento ditado na ausência de todo controlo
exercido pela razão, e fora de quaisquer preocupações estéticas ou morais.”
(Klingsohr-Leroy, 2004, p.6)
O método renomeado por Kerouac como “prosa espontânea”,
permitia fluir as imagens e idéias “sem desvios repressivos, sem se enrolar
todo em inibições literárias e temores gramaticais” (Kerouac, 2004, p.23) trazendo
à tona “a pessoa para o texto. Não só a mente pensante, a consciência reflexiva,
mas a pessoa como totalidade: suas paixões, emoções, nervos e carne.” (Kerouac,
2004, p. 11)
Mas é claro que a obra foi reescrita a partir de um trabalho
sério de edição. O próprio autor relata que fez inúmeras versões para que ela
fosse aceita por uma editora. Esse fato é citado por inúmeros puristas que
depreciam o livro por ele não ter sido apresentado em forma bruta, mas, para
mim, esse primeiro trabalho, esses fluxo, essa catarse espontânea pode ser
compreendida como parte de um método maior que gerou a obra em sua completude.
Apenas esse método inicial possibilitou a composição da obra final.
O trabalho editorial e as inúmeras versões escritas por
Kerouac compuseram uma obra legível e com linguagem acessível. O texto flui, é
prazeroso, causa empatia e, de certa forma, é de fácil acesso. Felizmente, esse
fácil acesso à obra não se vincula com um tipo de simplicidade frívola, pois a
linguagem do livro é composta de toda uma riqueza de símbolos.
Visões oníricas, percepções extra-sensoriais, pequenos e
grandes surtos literários, devaneios filosóficos, contemplações lisérgicas e um
tipo de fluxo esquizóide dão um contorno novo para imagens próprias do
cotidiano, apresentando o olhar de Kerouac, um olhar muito além das convenções
sociais ou artísticas. Essas visões
expostas a partir do olhar de Kerouac, olhar que enxerga além do visível,
extrapolam o cotidiano.
Um dos agentes
criadores desse olhar é o abuso de drogas por parte de Kerouac. As drogas
permitem, para os beats, encarar e recriar a vida, permitem compor cenários e
dar novas significações a cenas e acontecimentos. Inúmeros autores, músicos,
filósofos, poetas utilizaram drogas como forma de expansão da mente ou como
fuga (fuga que pode ser associada à busca de um exterior criativo).
É conhecido no histórico de grandes mestres como Rimbaud,
Verlaine, Poe, Baudelaire, Nietzsche, Huxley, Burroughs, entre tantos, essa
busca de exterioridade. Quanto a Kerouac, o uso de drogas teve um papel
significativo, mas percebe-se que seu olhar não é apenas um olhar de um corpo
drogado. A sua necessidade ou desejo de querer conhecer o outro lado (o outro
lado da vida), a própria saúde frágil possibilitou a Kerouac criar um olhar-vidente.
Esse olhar, que atravessa todo o livro, é o ponto chave onde
se mesclam o estilo de escrita e o posicionamento de Kerouac frente à vida. A
escrita é o fluxo artístico que permitiu verbalizar os aspectos da vida, seja a
vida marginalizada que Kerouac tanto persegue, seja a vida dominante da qual
ele tenta, de todas as formas, afastar-se.
O livro, autobiográfico, narra sete anos de peregrinação do
autor por diversas regiões dos Estados Unidos, em uma busca constante de um
contato com a vida marginalizada, na tentativa de cair fora da vida cheia de
amarras da classe média, branca, masculina norte-americana. .
Essa peregrinação foi feita por praticamente todos os
Estados Unidos até o México. Kerouac percorreu
milhares de quilômetros de carona, em carros destruídos, de ônibus ou, como os
andarilhos vagabundos, a pé, tendo sempre a estrada como ponto de fuga e
encontro.
A estrada, como cita o próprio título, é o grande símbolo do
livro. Foi a estrada que permitiu a Kerouac contatar a América que a América
não vê, a América negra, a América latina, a América da arte, a América
onde estão os músicos de jazz, os vagabundos que atravessam o país
mamando numa garrafa de uísque ordinário, os mexicanos pobres de olhar cândido
que oferecem maconha e mulheres aos forasteiros. (Vários Autores, 1984,
p.60)
A América perdida e marginalizada, muito além dos padrões
típicos da América Branca dos bem-nascidos e dos bens-alimentados.
Essas Américas de Kerouac podem ser contempladas a partir
dos personagens, em boa parte Homéricos, que atravessam o livro. Aliás, há, no livro, uma tipificação bem
estruturada de personagens que poderia resumir quem Kerouac contatou ao longo
de sua peregrinação.
Essa tipificação poderia
ser dividida em três: os marginalizados, o cidadão
típico e os Beats. Os marginalizados como negros, homossexuais,
mexicanos, índios, jazzistas, vagabundos, loucos são tratados ao longo do livro
de forma quase mítica. Kerouac, a todo o momento, procura interagir com esses
grupos, como se eles fossem à fonte de busca de sua transcendência. Essa busca
não se limita a uma busca propriamente literária, para composição de
personagens, o que poderia se chamar a literatura dos vencidos, mas
principalmente simboliza a busca da superação de si na tentativa de destruir
uma marca identitária.
Kerouac, em muitos momentos, se torna negro ou mexicano - vê-se
isso em suas inúmeras investidas e casos com garotas dessas raças -, vagabundo
- Kerouac vive a estrada ao lado de vagabundos se tornando um vagabundo-, vive
na penúria total, trabalhando com pessoas das classes mais pobres ou,
simplesmente, entra em delírios poéticos e existenciais compondo um tipo de eu
esquizofrênico.
Outro tipo de personagem é o típico cidadão branco, careta,
classe média e demasiado racional: o cidadão médio norte-americano. Esses
personagens mesmo não desenvolvendo uma atuação poética no livro, servem de
contraponto aos personagens marginais, aliás, seria impossível Kerouac não
contatá-los. A esses, Kerouac sempre busca distância e demonstra certo repúdio,
aliás, repúdio visível. E muito mais que um repúdio, ele busca a perda dessa
identidade, pois Kerouac foi (e poderia ter sido) um cidadão típico norte-americano.
O terceiro grupo são os seus comparsas, os Beats. Os Beats seriam
uma mescla desses dois grupos. Eles eram jovens oriundos da academia, filhos da
sociedade branca que se marginalizaram voluntariamente, e se tornaram o grupo
de literatos mais famoso do Ocidente, sendo os primeiros autores da história a
terem tiragens de milhares de exemplares em edições de poesia, e, como Kerouac,
foram os expoentes e precursores da Contracultura.
Se Kerouac tivesse ficado em sua cidade natal, ele poderia
ter encontrado todos os tipos que percorrem o livro. As cidades são feitas da
mistura de raças e classes. Kerouac morava em Nova Jersey, um grande centro ao
lado da metrópole Nova Yorque, mas aliou a sua necessidade de contatar com o
marginal a uma atitude radical: não permitir se enraizar em nenhum ponto geográfico.
A estrada é um símbolo forte, implica movimento, na estrada
não se possui família, emprego, não se tem estabilidade, eixo ou centro.
Kerouac dormiu com mendigos em estações ferroviárias, dividiu garrafas de vinho
com vagabundos em caçambas de caminhões, colheu frutas em pomares, amou garotas
negras, ouviu bandas de jazz em todos os pontos da América, fumou maconha com
mexicanos e passou noites ao relento. Em sua peregrinação, ele assistiu de tudo
um pouco, contatou inúmeras realidades e se transformou, tornando-se outro, ou,
melhor, outros.
Ao longo do livro percebe-se que ele torna-se feliz apenas
quando está em movimento, e o livro é uma ode ao movimento, como o próprio diz:
“Percebemos que estávamos deixando para trás toda a confusão e o absurdo,
desempenhando a única função nobre de nossa época: mover-se”. (2004, p.170)
Na estrada não há nem submissão à natureza,
pois o clima na estrada se modifica, estrada aberta, sem fim, como cita um dos
personagens em uma passagem do livro, enquanto se preparavam para cair na
estrada: “Não há nada no mundo com que nos preocuparmos, e devemos COMPREENDER
que, na verdade, REALMENTE, não precisamos nos preocupar com ABSOLUTAMENTE
NADA”. (2004, p. 170)
Uma metáfora que simboliza muito bem esse espírito de
constante mudança (ou de perda de estabilidade) são as inúmeras imagens que
atravessam o livro, detalhando rios. O rio e sua constante mudança e seu fim
desconhecido, rio que, muitas vezes, não se finda, pois desemboca no mar, e o
que Kerouac e sua trupe procuravam era uma rota idêntica a de um rio, uma rota
que os levasse ao desconhecido.
O livro foi lançado em 1957, mas narra histórias acontecidas
entre 1947 e 1950, ou seja, os ideais e desejos de Kerouac são referentes a uma
época de pouca agitação cultural nos Estados Unidos. Mas, mais de dez anos
depois dos últimos relatos de On TheRoad, toda essa ideologia em busca de uma vida
nômade e vagabunda foram as premissas básicas para milhões de jovens, os
Hippies.
Se On The Road
influenciou diretamente os Hippies – o livro foi considerado a bíblia do grupo
– ou se suas idéias apenas coincidiram, não se sabe,
mas quase tudo que foi experimentado em On
The Road, foi experimentado pelos Hippies. Os Hippies é um capítulo
a parte na história do ocidente. Em uma época nebulosa, os anos 60, onde a
juventude ganha uma identidade expressiva e torna-se precursora de toda uma
cultura de contestação - a Contracultura -, os Hippies foram
um dos mais marcantes modelos de juventude.
Essa marca, a primeira vista, pode ser entendida pelo espaço
que eles tiveram na mídia. Além de ser um grupo muito expressivo e ter ganhado
milhões de adeptos - em boa parte ícones de manifestações artísticas -, essa
visibilidade na mídia se deu também pelo seu estilo de vida pacífico, quase
alienado, contrastando com inúmeros focos revolucionários que apareceram na
época.
Sabe-se que a mídia preferiu dar atenção ao caráter paz e
amor dos Hippies, na tentativa de sufocar as
vanguardas revolucionárias que eram muitas em todo o Ocidente (Home, 1999
p.110). Como no caso das guerrilhas na América do Sul, dos Panteras Negras e de
seus afiliados os Panteras Brancas nos Estados Unidos, dos Situacionistas e do
grupo Provos na Europa, entre tantos movimentos que foram encabeçados pela
juventude e que tiveram pouca repercussão na mídia nos anos 60.
Mas não negando o valor de todos esses grupos, prefiro aqui
dar mais ênfase aos Hippies, pois considero que sua contestação que, a primeira
vista, pode ser entendida como alienada, seja muito mais conveniente para o
jornalismo que proponho.
Os Hippies aparecem nos Estados Unidos, no início dos anos
sessenta, como uma forma de contestação contra tudo que representa a cultura
branca, masculina e adulta.
A contra cultura nasce de um choque de gerações, os jovens cansados da
cultura dada de seus pais chocam-se contra ela de forma violenta. (Roszak, 1972, p.34)
Esse choque contra a
cultura dominante aparece, principalmente, como revolta contra o rosto paterno.
Eles não representavam mão-de-obra produtiva e negavam-se a se submeter ao patrão,
envolvendo-se apenas em trabalhos artísticos, comunitário ou, simplesmente,
viviam, sem exagero, como mendigos.
Eles usavam drogas em
excesso, eram contra ações como a guerra do Vietnã e negavam as ideologias do Estado.
Eles se contrapunham à família norte-americana, tentando se apartar da cultura
conservadora dos seus pais. Eles cultuavam religiões não-cristãs,
principalmente as orientais, que não possuem um Deus único. Seus mestres eram
figuras libertárias e não repressivas como budistas, músicos, artistas,
revolucionários, não eram o padre e muito menos o professor. Ou seja, tentavam
negar boa parte das formas que os símbolos máximos de repressão do regime
patriarcal podem tomar.
A essa luta contra a repressão paternal, associava-se uma
necessidade de manter-se jovem a partir de um ideal hedonista. A abundância
econômica e certa flexibilidade educativa, que prolongava a vida escolar, nos
Estados Unidos, permitiam uma infantilização generalizada, fazendo com que os
jovens se acostumassem com a juventude, os levando a repudiar qualquer tipo de
disciplina.
Os jovens ao tomar como natural a segurança econômica - sobre ela
constroem uma nova e descomprometida personalidade, talvez maculada por um ócio
irresponsável, mas também tocada por um espírito sincero (Roszak, 1972, p.41)
(...)
Eles consideram o prazer e a liberdade como direitos humanos e começam
a fazer perguntas agressivas aquelas forças que insistem em meio a uma óbvia
abundancia, na necessidade de disciplina.
(Roszak, 1972, p.43)
A liberdade e o prazer eram utilizados como axiomas entre os
Hippies, culminando em práticas vistas como aberrantes a sociedade e alienadas
para os focos revolucionários. Realmente, comparado
às vanguardas revolucionárias, a revolta dos Hippies poderia parecer uma
revolta infantil. Os Hippies preferiram negar a lutar agressivamente,
além de não tentar produzir um retorno de ideais adultos, como a criação de um
novo estado.
Mas não querer ser adulto para não fazer parte de uma
sociedade que gerou inúmeras guerras e que é portadora de uma moral
reacionária, e manter-se infantil para não ser condescendente com uma cultura
decadente e envelhecida, é uma atitude contestatória de extrema validade, não?
E mesmo que essa luta fosse silenciosa e os levasse para um
tipo de alienação, que apenas nega e pouco faz, essa ação foi tão importante
quanto os ideais da luta armada.
Muito
embora os radicais da velha linha julguem que lhes falte potencial
revolucionário, é claro que os hippies tiveram êxito em personificar a rebeldia
radical – aquilo que Marcuse chamou de Grande Recusa (Roszak, 1972, p.50)
A
grande recusa dos Hippies foi um dos poucos ideais que funcionaram na época.
Todos os movimentos que tentavam criar um estado alternativo ao capitalista
foram frustrados. Muito mais que um ideal de salvação geral e de uma busca de
igualdade social, os hippies apenas negaram a cultura branca e buscaram uma
nova forma de viver, a partir de um ideal egocêntrico e hedonista que foi concretizado.
Parece
que os Hippies compreenderam que a luta já estava perdida no início e
preferiram a fuga. Largaram tudo, deram um tempo, caíram na estrada, preferiram
não lutar e sim viver. Mesmo que essa busca não pudesse ser eterna, pois todos
eles foram engolidos pelo “sistema” - praticamente desapareceram no início dos
anos 70 -, eles viveram o momento com olhos de quem não enxerga o futuro e sim
de quem busca a contemplação do agora, mesmo que seja efêmera.
A busca de uma possível transcendência além dos valores
culturais vigentes, a contestação contra o rosto paterno e a manutenção da
infância foram permitidas, principalmente, por um símbolo já comentado em
Kerouac: a estrada. “Os departamentos de
imigração da Europa registram a cada ano mais ou menos dez mil hippies
desgrenhados que se dirigem para o Oriente” (Roszak, 1972, p.44).
E eles não se encaminhavam apenas para o Oriente, eles se
encaminhavam para qualquer lugar, qualquer ponto que permitisse a fuga e a
perda, eles se encaminhavam em direção ao espírito da estrada usufruindo, ao
máximo, do axioma do ser vagabundo: Sem destino.
A utilização do país (qualquer país) como uma
posição geográfica desconhecida, um ponto a ser explorado ou, sendo mais
radical, a utilização do planeta como um todo sem fronteiras era o símbolo da
busca da liberdade, da inexistência de barreiras e, principalmente, como diz Rozsak: “Muito mais uma fuga ‘de’ do que ‘para’” (Roszak,
1972, p.44).
Falando novamente sobre a estrada, agora enfocando
os Hippies, reforço o grande símbolo do meu trabalho: a estrada e o devir
vagabundo que ela permite. E a estrada não se limita como símbolo apenas dos
Hippies e de Keroauc. Ela é símbolo de inúmeros ícones da cultura Ocidental
como Rimbaud, Walt Whitman, Bukowski, toda a geração Beat, Hemingway, Jack
London, Van Gogh, Gauguin, os inúmeros exilados políticos, toda uma gama de
agentes que tiveram a necessidade de viver uma vida em movimento.
Lembro-me
de uma citação de Deleuze em que ele fala sobre a escrita nômade: “A escrita
esposa uma máquina de guerra e linhas de fuga, abandona os estratos, as
segmentaridades, o aparelho de estado”, (Deleuze, 35, 1995) mas pensando em
quem viveu na estrada, essa escrita poderia ser associada à vida, a vida que
busca a liberdade muito além das instituições.
Essa
vida, anárquica, anti-institucional, que faz apologia e vive o movimento
incessante é onde os sonhos deixam de ser subjetivos, onde os encontros e
perdas acontecem, onde a vida se encontra em estado embrionário e que tudo que
o sedentarismo nos impõe é negado e posto de lado.
Gostaria
de finalizar este capítulo com um trecho de um dos textos do maior vagabundo da
literatura Norte-americana, Walt Whitman:
Nós não
devemos ficar aqui parados, por mais doces que sejam estes armazéns fornidos,
por mais conveniente que pareça esta casa, nós aqui não devemos ficar, por mais
abrigado que seja esse porto e por mais calmas que estas águas sejam, aqui nós
não devemos ancorar; por mais acolhedora que seja a hospitalidade que nos
cerca, não nos é permitido desfrutá-la senão por pouco tempo. (Whitman, 1983, p.75)
3
Novo
Jornalismo
Este capítulo tem como
enfoque um gênero jornalístico inovador, o Novo Jornalismo. Proponho-me a
dialogar com esse tema pelo fato de que o Novo Jornalismo é um agente
importante no contexto cultural do Ocidente e, principalmente, pelo gênero ter
possibilitado a expansão da linguagem do jornalismo a partir da literatura.
Mas, como se verá ao
longo deste capítulo, apresento críticas, muitas vezes, agressivas sobre o
gênero, pois mesmo ele permitindo o contato com certa exterioridade do
jornalismo, essa exterioridade se vê presa a estruturas, o que demonstra que o
Novo Jornalismo não quis flexibilizar totalmente a linguagem e não conseguiu
fugir de certos vícios.
Essas críticas aparecem,
principalmente, em contraposições entre o Novo Jornalismo e Gonzo Jornalismo;
assim, reforço algumas idéias do Gonzo e critico uma estrutura que, para mim,
já era envelhecida em seu surgimento.
Abordo aqui o Novo
Jornalismo em sua fase áurea, os anos 60, por isso, em boa parte do texto, falo
do gênero no passado. Além disso, apresento apenas três autores, os mais
renomados do gênero.
No início do capítulo,
exponho fatores positivos e trago referências bibliográficas, o que se
contrapõe ao resto do texto, onde trago exposições mais livres e um discurso
quase niilista. O Novo Jornalismo apresenta poucas características que se
assemelham ao tipo de jornalismo que pretendo experimentar, o Jornalismo
Vagabundo, e esse capítulo demonstra principalmente o que não pretendo fazer,
ao fazer jornalismo.
O Novo Jornalismo atinge
seu auge nos anos 60, nos Estados Unidos, principalmente nas reportagens de Tom
Wolfe, Norman Mailer e Truman Capote. Na época, esses autores influenciaram o
fazer jornalístico, criando toda uma moda estilística que era vista em diversos
meios de comunicação nos Estados Unidos, como as revistas Esquire e Rolling
Stone, e os jornais de The Atlantic Montly e New York Times.
O grande feito do Novo
Jornalismo foi unir a veracidade do fato jornalístico com técnicas típicas da literatura.
Segundo Tom Wolfe o estilo
se valeu de recursos que por acaso
se originaram do romance e os combinou com todos os outros recursos conhecidos
da prosa. E que ao mesmo tempo, bem além das questões da técnica, desfrutou uma
vantagem tão óbvia, tão intrínseca, que as pessoas praticamente ignoram sua
influência: o simples fato de que o leitor sabe que aquilo aconteceu (Wolfe, 1989, p.8)
A tentativa concretizada
de alargar o campo jornalístico com algo tão exterior a ele, a literatura,
permitiu uma profundidade maior na relação do jornalista com o acontecimento,
abrindo brechas para um jornalismo mais introspectivo que dava
importância de se enfocar a atenção
na experiência emocional subjetiva, do ponto de vista dramatizado, da
sensibilidade única, e de se buscar significados mais profundos ocultos pela
aparência.(Wolfe, 1989,
p.9)
Esse nível psicológico
permitia a caracterização das figuras humanas relacionadas ao fato, possibilitando
o desenvolvimento de personagens com um perfil minucioso e detalhado.
Uma das técnicas mais importantes dos Novos
Jornalistas era
cultivar o hábito de permanecer com
pessoas potenciais durante dias, semanas ou meses, tomando notas, entrevistando,
observando e aguardando que algo dramático e revelador aconteça (Wolfe, 1989, p.10)
A relação íntima entre o
escritor e a figura humana do fato, para extrair o máximo de efeitos
psicológicos, poderia ser pensada como uma ação não-jornalística, pois análises
desse tipo, por possibilitar diversas formas de interpretação, são
irremediavelmente parciais.
Mas, mesmo com esse
mergulho psicológico, os autores utilizavam técnicas de distanciamento como o
uso do narrador em terceira pessoa. Essa técnica tornava o texto impessoal,
dando a noção de que o jornalista não interferia no fato a partir de opiniões e
juízos de valores. Isso fazia com que o texto perdesse elementos literários,
ganhando elementos próprios do jornalismo.
O distanciamento da
literatura aumentava, ainda mais, por não ser usual, entre os “Novos
Jornalistas”, a ficção. Aliás, os grandes expoentes do movimento se engajavam,
claramente, em tentar dar a imagem mais real possível do fato, sem distorções.
Nota-se, assim, respeito em relação ao leitor e o acordo de que o que era
descrito era autêntico.
Considerando a imersão na realidade que
permitia extrair os pormenores do fato, o Novo Jornalismo seria a transgressão
dos valores principais do jornalismo diário. O jornalismo que é lido diariamente,
pela estrutura das redações, impõe um tempo reduzido para coletar dados para
compor as matérias. Também a necessidade de um fluxo veloz de informação impõe
um texto claro, objetivo e de digestão rápida e, principalmente, com uma
linguagem limitada - praticamente tudo que os autores do Novo Jornalismo se
negavam em seus trabalhos.
Não seria possível pensar
em um jornalismo diário, com seus prazos, usufruindo de técnicas do Novo
Jornalismo como:
A
construção cena a cena; a reprodução do diálogo das personagens; a exploração
das variadas possibilidades expressivas do foco narrativo (inclusive com o
emprego do fluxo de consciência, como nos melhores romances psicológicos); o
registro de gestos, cotidianos, hábitos, modos, estilo de decoração, roupas, comportamento
e outros detalhes simbólicos, para reforçar a aparência da realidade. (Czarbonai,
2003, p.).
O
detalhismo metódico de apuração de dados que era aliado a uma construção
textual calma e bem pensada, compondo relatos com uma necessidade de ir muito
além do aparente e do superficial, deu ao jornalismo uma nova função. No caso
do leitor, esse tipo de texto elevou a apreciação jornalística à função
artística de permitir fruição. No caso do escritor, impôs um trabalho de
escultor típico ao do literato, deixando de lado os vícios típicos do
jornalismo fast food e sua
necessidade de quantidade e não de qualidade.
Mesmo sendo visto em
matérias de jornais e revistas, o ápice do Novo Jornalismo se deu no formato de
livro – uma evolução do jornalismo que era esperada. Se o romance é o ponto
máximo da literatura, o livro é o ponto máximo do jornalismo, pois permite que
a reportagem seja fechada em um formato muito mais duradouro. Também o status de se publicar em um livro é
muito maior, principalmente em um livro de um único autor, o que cria uma obra
fechada e autoral, “a marca do autor para a eternidade”.
Dentre os livros mais
importantes do Novo Jornalismo está a obra de Truman Capote, A Sangue Frio, lançada em 1966. Truman,
para compor a reportagem que narra fatos de um assassinato de uma família no
Kansas, cultivou anos de contato íntimo entre diversos protagonistas,
mergulhando no fato para extrair um dos registros mais importantes de
não-ficção do Novo Jornalismo. Toda sua trajetória, para a composição da obra,
foi retratada no filme ganhador de Oscar em 2006, Capote.
Outro livro, que poderia
ser considerado um clássico do Novo Jornalismo, é Décadas Púrpuras, do autor de diversos best-sellers, Tom Wolfe. Tom
Wolfe, que se considerava a voz dos anos sessenta - condição que ele citava
superar o poder da literatura em retratar a sociedade norte-americana (Wolfe,
1989, p.8) – no livro, quase conseguiu isso.
Décadas
púrpuras
expõe os focos de manifestações culturais e sociais nessa década tão conturbada
– em boa parte, o que acontecia de interessante no país. O livro é recheado de
histórias sobre colunáveis marginais, Panteras Negras, artistas famosos,
correntes artísticas alternativas e um relato memorável sobre um grupo de
hippies que distribuía drogas em happenings.
Outro relato
interessante, que deve ser considerado, é A Luta, do ganhador do prêmio Pulitzer, Norman Mailer.
O livro narra uma das grandes lutas de boxe da história, mas é muito
mais que uma mera peça sobre esportes. A
Luta é um relato intimista e audacioso, rico em detalhes, com uma linguagem
que difere, em muito, do jornalismo esportivo, sendo uma narrativa literária
que tem como pano de fundo um acontecimento esportivo.
Aliás, Mailer é um caso
especial entre os Novos Jornalistas por, ao longo de sua carreira, ter escrito
e contatado diversos escritores marginais norte-americanos. Ele é citado por
Bukowski em seu livro Hollywood, além
de ter escrito relatos sobre os Beats
e ser um admirador confesso de William Burroughs - um dos escritores mais
radicais do século passado.
Todas essas
características retratadas apontam para diversos lados, tanto positivos, quanto
negativos. Um dos lados positivos é óbvio: a permissão de um aprimoramento do
jornalismo a partir de um relacionamento com a literatura. Um dos lados
negativos é que essa relação cria um tipo de segregação, pois necessita de um
leitor mais intelectualizado que o do jornalismo tradicional.
A literatura é um dos
gêneros máximos da arte ocidental, e é elitista. O Novo Jornalismo, por compartilhar
desses elementos literários, requer leitores que tenham a mesma bagagem
cultural que os leitores de literatura. Além disso, no caso das obras em
formato de livro, há uma necessidade de se despender de dinheiro e tempo para
adquirir e ler a obra.
Em relação à produção de uma obra no estilo,
são poucos os jornalistas que despendem de tempo para manter uma rotina de
trabalho tão árdua, e mais ainda, são poucos os que têm o refinamento para
produzir um texto de caráter introspectivo.
O Novo Jornalismo talvez
seja um tipo de insurreição do mundo jornalístico contra uma possível pobreza
da linguagem jornalística, e uma glorificação da maestria e grandiosidade da
literatura. Mas essa idolatria da literatura talvez não seja nada mais que uma
idealização “romanceada” de um gênero secular.
Mesmo assim, o Novo
Jornalismo apenas se tornou grande dentro da linguagem jornalística, não
conseguindo se igualar à literatura. Tudo é permitido na literatura, tudo.
Mundos se criam, o céu cai, Fausto faz um pacto com o demônio, demônios atingem
o poder da terra. Em Kafka, um homem torna-se barata. Em Borges, o tempo é
retorcido e perde sua linearidade. Em Allan Poe, uma realidade assustadora toma
o poder da realidade cotidiana.
Um dos processos em
literatura, citando Deleuze,
é sua capacidade de transpor
fronteiras, como aquelas existentes entre o animal, o vegetal, e o mineral, ou
entre o humano e o inumano, o individual e o coletivo, o masculino e o
feminino, o material e o imaterial. Devir-mulher, devir-animal, eis algumas das
passagens de que se é capaz e que a escrita favorece. (Bart, 2000, p. 69)
Tudo é permitido - é
claro que desde que seja exposto na linguagem literária. Condição que o Novo
Jornalismo nunca conseguiu ou nunca quis. É claro que aqui deve-se pensar no
Novo Jornalismo como uma máquina jornalística, com todas as suas limitações, e
não com essa liberdade da literatura. Mas se for lembrado o Gonzo Jornalismo, será
visto que a liberdade do jornalismo é muito mais flexível que a proposta pelo
Novo Jornalismo.
Considerando o Gonzo, nota-se
que as potencialidades do jornalismo são enormes. O Gonzo muito mais que um
retrato do real - ou um retrato psicológico do real, como no Novo Jornalismo -
foi um produtor de realidades.
Os textos do Gonzo
radicalizaram na subjetividade, mas a subjetividade buscada como encontro com o
exterior, com o pensar diferentemente, com o que difere do real dado e,
principalmente, a subjetividade buscada como perda de uma racionalidade dura,
inflexível e controladora.
Os delírios do Gonzo
simbolizam o máximo de choque contra tudo que representa o “dominante”, pois
ele apresentou um pensamento minoritário e uma destruição dos grandes valores
da “vidinha” em todos os pontos do seu corpo, até na cabeça.
Já o Novo Jornalismo expôs
mais os “draminhas” psicológicos de uma realidade íntegra e fechada em si
mesma. O Novo Jornalismo, por querer a todo custo retratar a vida, ficou preso
nela não buscando as potencialidades que estão além da realidade cotidiana -
fato praticamente impossível em um best-seller,
em um ganhador de um prêmio Pulitzer
ou de alguém que, por suas obras majestosas, foi imortalizado por Hollywood, ou seja, pessoas que estão
irremediavelmente integradas na estrutura social.
Outra aspecto a ser
referido é que o Gonzo nunca teve medo de se expor. Os textos Gonzo prescindiam
de um jornalista como transmissor dos fatos. No Gonzo, Thompson, o pai do
Gonzo, era o fato. Ele sempre foi corajoso ao ponto de ser a história. Já o
Novo Jornalista sempre ficou de lado como um agente passivo - imagem idêntica a
do Deus que tudo vê, nada faz e, em um acesso de megalomania, transmite as
tábuas divinas, contendo o que ele considera ser “bom” para seus filhos.
Além disso, as narrativas
do Gonzo, por buscarem o máximo de liberdade dentro do jornalismo, permitiram
empatia por todos que buscam novas realidades e se regozijam com a liberdade.
Já o Novo Jornalismo atingiu o panteão da cultura ocidental, sendo apreciado
por quem se regozija com grandes efeitos, grandes obras e por uma falsa
erudição que possibilita um status
vazio e falacioso.
É claro que os “Novos
Jornalistas” em sua fase áurea, os anos 60, foram de certa forma transgressores
da linguagem jornalística. Trazer a literatura para o jornalismo não pode ser
considerada uma atitude qualquer, mas, falando em transgressão, o Gonzo jogou
para todos os lados. O Gonzo chutou os Estados Unidos e sua moral, chutou a si
mesmo e seus resíduos de homem branco. Já o Novo Jornalismo retratou os Estados
Unidos em uma foto a ser guardada em um porta-retratos ao lado de um Prêmio
Pulitzer.
4 O Jornalismo Gonzo
Em
minha intenção de construir um jornalismo autoral - o Jornalismo Vagabundo -
entrei em contato com diversas linguagens e manifestações.
Três delas foram apresentadas nos capítulos anteriores: a Contracultura e a
obra de Jack Kerouac, On the Road e o
Novo Jornalismo. Aqui neste capítulo eu
conecto a proposta a um tipo de jornalismo que nasceu junto com a
Contracultura e teve uma relação com Kerouac, o jornalismo criado por Hunter Thompson,
o Jornalismo Gonzo.
Proponho-me
a ligar o Jornalismo Vagabundo ao Jornalismo Gonzo por querer mostrar que o
tipo de jornalismo que me proponho a experimentar – um jornalismo diferenciado
do dominante – não é um fato isolado, e principalmente, pelo fato de que o
Gonzo fez ligações a alguns elementos que estão relacionados à proposta aqui
defendida.
O
texto a seguir, até agora, foi a parte mais difícil de meu trabalho, pois existem poucos materiais sobre o estilo, no
Brasil. Encontrei apenas um trabalho acadêmico e alguns livros Gonzo
publicados, o que é estranho, pois o Gonzo é quase um ícone pop entre os jovens
brasileiros.
Há inúmeras
confrarias, principalmente na internet, de escritores que aderiram ao estilo -
uma turma de escritores e jornalistas que encontraram no Gonzo uma saída
alternativa para a composição de textos jornalísticos.
Poderia ser pensado que trazer um estilo de jornalismo dos
anos 60 para os dias de hoje é uma ação retrógrada - dessas que tentam a todo
custo negar o presente em função de uma época idealizada.
Mas
não vejo assim: a ação de tentar um retorno ao Gonzo não é uma negação ou
alienação do presente, e sim uma forma de dialogar com uma época rica e com um
bem cultural importante.
O jornalismo dominante insiste em manter certas estruturas
- que vão desde a formatação da linguagem até a ideologia institucional – de que
não se pode escapar sem se tornar uma aberração ou qualquer coisa que não seja
jornalista. Por isso, uma gama de jornalistas ou se negam a fazer
jornalismo, partindo para outras linguagens, principalmente a literatura, ou,
como Thompson, usurpam da linguagem sua rigidez e inflexibilidade.
No meu
caso, até pensei em desconsiderar o Gonzo neste trabalho, pensei no meu tema e
nas referências bem antes de ter contato com o estilo, mas acredito que ele
reforce minha intenção da possibilidade de imaginar abdutivamente um jornalismo
diferenciado.
O
engraçado é que não iniciei no Gonzo para chegar à Contracultura, aos Beats e a
Kerouac, caminho óbvio e possível, mas fiz o inverso. Talvez por sorte (e por
coincidência) eu tenha bebido em fontes parecidas às de Thompson, o que pode
tornar nosso jornalismo parecido, mas acredito que não idêntico.
Não
pretendo seguir a risca os enunciados do Gonzo, apenas quero um diálogo com os
elementos do que considero ser uma manifestação rica dentro do jornalismo.
O Jornalismo Gonzo aparece no final dos anos
60 como uma forma diferenciada de se fazer jornalismo. Criado pelo jornalista
Norte-americano Hunter Thompson, o Gonzo é uma expressão típica de uma época
onde os valores se reformulam, e uma busca de novas formas de viver é
experimentada a partir de uma revolução cultural que atingiu, praticamente,
todos os âmbitos sociais.
Por
isso, não poderia falar do Gonzo sem falar dessa revolução cultural. Estados
Unidos, fim da década de 60. A rebeldia juvenil toma de assalto a cultura. Os hippies, o abuso de drogas, o amor
livre, o rock psicodélico, as manifestações pacíficas contra a guerra do
Vietnã, as manifestações violentas contra o “sistema” são elementos que
representam uma insurreição juvenil contra a cultura adulta: a Contracultura.
A
premissa básica da Contracultura era a liberdade em contraposição a todas as
formas de repressão. Assim, os jovens atacaram de frente a família, o
comportamento pequeno-burguês, a tríade pai, pátria e patrão e todos os agentes
de dominação que impedissem a expressão de uma vida que tentavam viver além das
instituições.
Um dos
maiores símbolos que personificaram essa revolta foi a arte. A arte serviu como
agente de combate, tornando-se porta-voz da Contracultura. A arte, como símbolo
da libertação dos valores adultos, rompeu com as instituições e perdeu seu caráter
elitista, tornando-se pop, ou melhor, popular.
Assim,
apareceram as performances, os happenings,
o cinema independente, as publicações alternativas, e, principalmente, o Rock
Psicodélico, que se transformou no grande agente desta cultura. Conjuntamente a
essas manifestações, um Hippie mais letrado e agressivo, um Beatnick menos
afetado e erudito, abraçou o “espírito dessa época” e o transpôs para a
linguagem jornalística, criando o Gonzo Jornalismo.
Como
tudo que foi feito com esse “espírito” de liberdade máxima e sem barreiras, o
Gonzo tornou-se uma expressão radical da liberdade dentro da linguagem
jornalística. O jornalismo antes do Gonzo nunca tinha sido experimentado de
forma tão intensa, e as investidas de Hunter Thompson, seu criador, mostraram
que não existem estruturas que não possam ser rompidas,
pois até essa linguagem, de certa forma rígida, a jornalística, poderia ser
reformulada.
O
Gonzo Jornalismo poderia ser pensado, à primeira vista, como uma extensão do
Novo Jornalismo - esse estilo jornalístico inovador que fez o casamento entre o
jornalismo e a literatura -, mas de forma alguma poderia ser classificado como
tal, pois as inovações de Thompson foram caóticas e agressivas se comparadas
com as propostas do Novo Jornalismo.
O Gonzo Journalism é um gênero que,
apesar de ter se originado a partir do movimento do New Journalism, apresenta
características singulares e, portanto, deve ser considerado de forma
diferenciada.
(Czarbonai, 2003, p.)
O Novo Jornalismo permitiu que o jornalismo se
renovasse, talvez tenha possibilitado a existência do Gonzo, o próprio Thompson
fez investidas no estilo, mas penso muito mais em outras referências, quando
penso no Gonzo.
Como os Beatnicks (ou Beats, estilo comportamental e
literário já citado no capítulo sobre a Contracultura e Kerouac), que
consideravam que obra não se dissocia do autor, que o autor “deve
transformar-se em uma obra de arte (...), deve ser tão autêntico quanto
um poema” (Vários Autores, 1984, p. 14), Thompson, em seus relatos, se expunha
em primeira pessoa, colocando-se em primeiro plano e, principalmente, agia de
forma singular, mais parecendo um personagem literário - pelo menos de
literatura maldita - do que um jornalista.
Se o jornalista médio for considerado como o porta-voz de
uma instituição e for feito o seu perfil, provavelmente seria imaginado alguém
que faz o possível para manter uma imagem respeitosa, e Thompson poderia ser
considerado a antítese desse tipo de jornalista.
Ele gostava de se meter em confusões, falava mal
abertamente do governo e se chocava, sem pudores, frente à moral burguesa
em discursos ou em prática. Seus textos eram recheados de brigas, problemas com
a polícia, uso voraz de drogas e, principalmente, ele falava de forma aberta
sobre tudo isso.
E se eu
fosse escrever, por exemplo, que recentemente passei dez dias em São Francisco
e estava chapado constantemente... que na verdade fiquei chapado por nove
noites de dez e que quase todo mundo que lidei fumava maconha com a mesma
casualidade com que bebia cerveja.
(...)
Se existe
uma verdade óbvia sobre as drogas psicodélicas é que qualquer um que tentar
escrever sobre elas sem experiência direta é um tolo e uma fraude. (Thompsom,
2004.p.176).
À primeira vista, se fosse apresentado, na área jornalística, um texto
com uma fala tão amoral sobre o uso de drogas, seria pensado em um tipo de
suicídio de imagem, mas com Thompson aconteceu o inverso. As
transgressões das normas sociais, transcritas em reportagens, deram mais
validade para a primeira pessoa que estava exposta no texto, no caso Thompson,
pois a ação de romantizar a vida marginal e falar abertamente sobre ela é uma
ação típica a boa parte da tradição artística do Ocidente.
Faz
parte da biografia de grandes autores a vida desregrada. Baudelaire fumava ópio
em tabernas parisienses. Rimbaud deu um tiro em seu namorado Verlaine - um
escritor viciado em absinto. Genet, tão vangloriado por Sartre, foi preso
durante anos. Sade foi encarcerado em um hospício, após maltratar e seviciar
prostitutas. Burroughs era homossexual assumido e mantinha relações com
inúmeros rapazes, após assassinar a esposa. Van Gogh cortou a própria orelha e,
anos depois, após uma temporada em hospícios, se deu um tiro. Artaud, além de
ser viciado em morfina, passou mais da metade de sua vida confinado em
instituições mentais.
Eu
poderia enumerar miríades de artistas célebres que viveram uma vida desregrada
e, de certa forma, marginal. E esse estilo de vida foi glorificado e
imortalizado em biografias ou pelos próprios artistas em suas obras, pois
existe um tipo de apreciação, por quem se interessa por arte, pela vida que
vive muito além dos valores e normas sociais da vidinha cotidiana.
Thompson,
no momento em que pôs no papel suas histórias que apresentavam uma vida
desregrada, fez nada menos que se impor no panteão dos autores marginais da
história do Ocidente. Pensando assim, Thompson é
relacionado não apenas aos Beatnicks, mas também a essa linhagem de artistas
tão importantes em nossa cultura.
Bem,
sei que é estranho estar falando em arte quando me refiro a um estilo
jornalístico, mas o estilo de jornalismo de Thompson excede em elementos que
podem ser associados à arte. Conjuntamente à vida marginal, seu estilo textual
buscava potencialidades estranhas ao jornalismo, como a ficção.
O
Gonzo é um
estilo de reportagem baseada na idéia do escritor William Faulkner segundo a
qual a melhor ficção é muito infinitamente mais verdadeira que qualquer tipo de
jornalismo – e os melhores jornalistas sempre souberam disso. (Thompson, 2004, p.46)
E
Thompson, em uma estrutura em que a veracidade e os fatos são soberanos e o
relato objetivo é essencial, não apenas trouxe a ficção, mas a utilizou ao
extremo.
Para o Gonzo jornalista é permitido
o uso de personagens e situações que nunca existiram, se isso contribuir para
aumentar o nível de informações dispensado ao leitor e conferir maior
dramaticidade à cena que está sendo descrita. É importante também que a
diferença entre ficção e realidade não seja jamais explicitada. (Czarbonai,
2003, p.)
Thompson mergulhava nesse fio que separa
ficção e realidade. Aliás, ele mergulhava na realidade para dela extrair a
ficção, ou quem sabe para criar novas realidades, algo próximo da arte
fantástica em que o “O objetivo não é a representação do real e sim a criação
de um mundo próprio” (Schurian, 2005, p.2)
Mas o Gonzo, além de ser uma forma de aumentar os campos possíveis da vida a
partir da fantasia, buscava formas de vida, digamos, “reais”. Thompson correu
atrás de realidades ao extremo. Ele passou anos no Brasil, cobrindo as
movimentações da ditadura. Viveu entre Hell’s Angels por quase um ano. Peregrinou por bairros boêmios norte-americanos durante
diversos meses. Cobriu eventos caretas esportivos junto ao cidadão médio,
tentando extrair da vida banal seu insólito. Ele contatou uma fauna que servia
como ponte para tocar a margem da vida cotidiana.
Diferente de, digamos, Tom Wolfe, um dos pais do Novo Jornalismo, que
para Thompson: “as pessoas com quem ele se sente a vontade são mais entediantes
que merda de cachorro velha” (Thompson, 2004, p. 49), ou seja, os materiais de
análise para suas reportagens não buscavam certos potenciais da vida tão
prezados pelo Gonzo.
Sua
relação com a vida - essa vida marginal - era uma aproximação íntima que
poderia ser associada à forma com que os Beatnicks interagiam com a realidade e
depois a transformavam em literatura. Os Beatnicks não faziam trabalho de
campo, eles não saiam de mochilas pelo mundo para compor personagens, eles
caiam fora da vidinha cotidiana em busca de iluminação, iluminação encontrada
entre negros, marginais, músicos, drogados. Esse contato era tão íntimo que
eles experimentavam a realidade que tocavam.
Se os Beatnicks buscavam a todo custo a iluminação muito além da vida
careta da classe média, Thompson trouxe uma relação íntima com a
vida marginal para o jornalismo, o iluminando. E a iluminação do Gonzo feita
com o jornalismo foi extrema, pois trouxe para o jornalismo a anarquia em todos
seus âmbitos, principalmente na linguagem.
Por
quanto tempo manteremos esta situação? - ponderei. Quanto tempo até que um de
nós comece a falar de forma descontrolada e sem sentido com este garoto? O que
ele vai pensar, então? Este mesmo solitário deserto foi o último lar conhecido
da família Manson. Ele fará esta desagradável conexão quando meu advogado
começar a gritar coisas sobre morcegos e gigantescas arraias descendo até o
carro? Se sim - bem, teremos que cortar sua cabeça e enterrá-lo em algum lugar.
É desnecessário dizer que não podemos deixá-lo ir. Ele nos denunciaria
rapidinho para algum tipo de autoridade nazista, que nos perseguiria como cães. (Czarbonai,
2003, p.)
Como pensar em qualquer estrutura jornalística em um texto escrito dessa
forma? Drogas, terror, uma liberdade de linguagem assustadora, uma língua
ferina sem medo, sem pudor. Seria mais fácil pensar na língua de um
esquizofrênico, ou na língua de um poeta radical, ou na língua de um pintor de
arte fantástica, e não na língua de um jornalista, proferindo essas palavras,
não?
O Gonzo foi a grande negação da estrutura jornalística, e a apologia em
prática da destruição dos valores do jornalismo tradicional.
O gênero tem sua força baseada na
desobediência de padrões e no desrespeito de normas estabelecidas” (...) “Ao
contrário de outros formatos mais rígidos, o Gonzo Journalism encontra
dificuldades em ser definido com precisão por ser personalizado de acordo com
as demandas e expectativas do escritor... Esta afirmação se relaciona com a
anarquia e libertinagem que o gênero permite, uma vez que não existem regras. (Czarbonai, 2003, p.)
Lembro-me de uma
citação de Deleuze que eu poderia associar ao Gonzo:
Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer... não se buscará
nada compreender em um livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em
conexões com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades
ele se introduz e metamorfoseia a sua (...) a única questão quando se escreve é saber com que
outra máquina a máquina literária está ligada, e deve ser ligada para funcionar (Deleuze, 1995, p.12)
E a
quais máquinas o Gonzo estava ligado? Ou melhor, o Gonzo ligou o jornalismo à
quais máquinas? Uma máquina artística, uma máquina marginal, uma máquina
drogada, uma máquina, por que não, revolucionária.
Pode ser feita uma divisão do jornalismo em antes e depois
do Gonzo, sem exageros. O jornalismo antes do Gonzo ainda permanecia como a boa
imagem de uma realidade idealizada, intocável, harmônica em seu caos, segura.
Depois do Gonzo, o jornalismo apresentou a vida exatamente como ela é: Caótica,
mas formidável.
5 O Jornalismo Vagabundo
Inúmeros
elementos me cativaram ao ponto de me inspirar a experimentar um possível – ou,
quem sabe - um
impossível jornalismo. Como foi visto ao longo dos capítulos anteriores,
a obra de Jack Kerouac, On The Road e
a Contracultura - mais especificamente os Hippies, o Gonzo Jornalismo, o Novo
Jornalismo, parte da tradição marginal da arte Ocidental e algumas idéias de
Deleuze e Peter Pál Pelbart - foram as manifestações com que dialoguei na
tentativa de justificar o Jornalismo Vagabundo.
À primeira vista, essa salada de frutas da
cultura ocidental que criei para legitimar o Jornalismo Vagabundo pode ser
considerada diversa e ampla, mas, pensando bem, ela é de certa forma simplista,
pois eu poderia ter utilizado referências à exaustão.
Dialogar
apenas com essas manifestações culturais me dá a sensação de que deixei muitas
possibilidades de fora. Quantas realidades escaparam de minhas mãos? Quantos
cineastas, poetas, dramaturgos, revolucionários, loucos, jornalistas,
vagabundos, que poderiam ter fortalecido meu trabalho, foram relegados à
indiferença pelas minhas limitações?
Mas
tive que selecionar para tornar legível e acessível meu trabalho, para
formatá-lo ao estilo da monografia. Nesta parte do trabalho eu ponho em choque
com o Jornalismo Vagabundo todas essas manifestações que até agora apresentei.
Espero que, aqui, o Jornalismo Vagabundo seja justificado e (desculpe o
egocentrismo) dado ao mundo.
Pode parecer estranho, inusitado ou, no
mínimo, diferente tentar pensar um tipo de jornalismo a partir de símbolos tão
exteriores a ele - aqui, no caso, essa exterioridade é vista nas manifestações
culturais como a Contracultura, a literatura de Kerouac ou a de outros autores
que cito, na escola de pensamento de Deleuze e, principalmente, na arte, agente
que dialogo, em muito, ao longo deste capítulo - mas é exatamente este grau de
diferença que busco.
Acredito
que apenas agentes estranhos
ao jornalismo me permitiriam pensá-lo de uma forma diferente e, assim, visualizar
um jornalismo diferenciado. Quando falo em jornalismo diferenciado, eu me
refiro a um jornalismo que não faz parte do jornalismo diário e cotidiano, do
jornalismo fast food, do jornalismo das grandes instituições, do jornalismo
dominante que compartilha com a moral dominante.
Esse
jornalismo que domina os meios de comunicação e é tão bem interiorizado, de
certa forma, compartilha com elementos que cito como exteriores, como a arte e
a literatura, mas os coloca em um lugar confortável, não permitindo que a
máquina literária e artística realmente se manifeste.
Artes plásticas aparecem em páginas de jornais, mas elas são usadas como um
adorno para embelezar, como se fossem um mero bibelô.
A
literatura, que trespassa algumas matérias, não passa de um artifício para
fingir que a máquina não é tão rígida, nos dando uma sensação falsa de
liberdade. A literatura, que em uma de suas funções permite a viagem do
imaginário, é usada como fuga da dureza da linguagem. Imita-se a literatura,
mas não se vai a fundo nela.
Sei
que é estranho falar em um jornalismo dominante, seria mais estranho ainda se
eu falasse que esse jornalismo dominante faz parte de uma grande mente que tudo
engendra e acaba com a diferença, máquina que impõe segurança ao caos da vida,
mas para mim essa é uma generalização inevitável.
Segundo Deleuze:
O
pensamento é fruto de um encontro, o encontro é sempre encontro com o exterior,
mas esse exterior, não é a realidade do mundo externo, porém concerne às forças
heterogêneas que afetam o pensamento, que o forçam pensar, que arrombam o
pensamento para aquilo que ele não pensa ainda, levando-o a pensar
diferentemente (Pellbart, 2000, p.59)
Para
chegar a esse exterior no jornalismo, para pensar o jornalismo de uma forma
diferente, além de captar os elementos que citei acima, pensei muito na estrada
- agente que faz parte da trajetória de, praticamente, todas as manifestações
que trabalhei até agora. A estrada é o exterior da cidade. A cidade apenas se
move em função da estrada. A cidade apenas se modifica com o contato com a
estrada. O crescimento e o desenvolvimento da cidade dependem dessa relação com
esse seu exterior.
Imaginem
Paris e seus imigrantes africanos que entram na cidade, expandindo as
possibilidades da identidade cultural. Imaginem Porto Alegre dialogando com as
cidades do RS, passando os fluxos de informação política que são decididos no
Piratini. Imaginem os Fluxos da droga que sai do México, o fluxo da moral
provinciana que sai das pequenas cidades dos Estados Unidos ou o Fluxo da
cultura cosmopolita que sai de Londres. Todos esses fluxos que entram e saem
das cidades dependem da estrada.
Mas existe outra estrada, ou melhor, outro trajeto. Um
trajeto desvinculado dos centros das grandes cidades ou de blocos de regiões -
que são organizadores por serem detentores de unidades de capital, de
personalidade social, de nichos institucionais e de cultura. Um trajeto em que
o movimento é a lei, por não existir possibilidade de se desenvolver uma vida
sedentária e tudo que isso possibilita, como sociedade, Estado, história.
Um trajeto percorrido por um ser tão desenraizado que não
trabalha, não tem família, nem documento; ser que não pode ser reduzido a uma
identidade única por estar sempre em movimento; ser nômade para o qual as
instituições não importam; ser movido pela busca constante, não para ir ao
encontro, mas para buscar a perda - perda dos grilhões sociais e do eu; ser sem
face, o Vagabundo.
O trajeto percorrido pelo Vagabundo cria uma relação com a
cidade, a partir da estrada, rizomática. O Vagabundo desterritoriliza a cidade,
a cidade reterritorializa o Vagabundo que se desterritoriliza em si mesmo na
cidade. Há uma evolução a-paralela entre a cidade e o Vagabundo. A cidade e o
Vagabundo fazem rizoma em sua heterogeneidade.
Segundo Deleuze: “O
Rizoma é um sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem general
(...) unicamente definido por uma circulação de estados” (Deleuze, 1995,
p.33). A relação do Vagabundo com a estrada e a cidade poderia ser pensada
apenas pela circulação, sem a presença de fatalidades que Deleuze chama de
decalcadas, como: divina, histórica, econômica, hereditária (Deleuze, 1995,
p.22).
A entrada do Vagabundo na cidade não depende de leis e
ordem. Não há um centro de controle que faça o Vagabundo se movimentar. O Vagabundo
pinta a cidade com sua liberdade e permite uma ampliação de seu campo, permite
um devir-vagabundo, um devir-marginal.
Poderia ser dito que o Vagabundo reflete a imagem negativa
da marginalidade, a partir de pré-conceitos estabelecidos, mas o que me
importa, para mim, é essa relação saudável, política, estética e rizomática
entre o Vagabundo, a cidade e a estrada. Relação que permite uma alternativa
para as linhas duras das estradas que impõe caminhos pré-estabelecidos.
O Vagabundo poderia ser associado aos Beats e a Keroauc,
mas ele inventa trilhas diferentes. Kerouac e os Beats seguiam uma estrada que servia
para ligar dois pontos. A intenção dos Beats era sair de um ponto inseguro para
chegar a um porto seguro. Explicitando melhor: Eles buscavam na estrada a
iluminação, tanto que se auto-intitulavam “Vagabundos Iluminados” (Vários
Autores, 1984, p. 105). Mas o Vagabundo, apenas vagabundo, sem busca de
iluminação, que não foge do demônio em busca do bom deus, quer um trajeto
apenas de fuga, sem início e sem fim, rizomático.
O Vagabundo é um agente importante
em meu trabalho, aliás, não é por nada que nomeei o meu jornalismo de
Jornalismo Vagabundo. Ser Vagabundo, no jornalismo, seria essa possibilidade de
estar sempre em movimento para perder vícios típicos da identidade sedentária
do jornalismo. Fazer rizoma com o jornalismo, buscar alternativas para ele, achar
novas saídas, aumentar o território, buscar uma relação menos nociva, menos
facínora.
A estrada comunicacional pode ser
dura, pode ser submissa a unidades essenciais e centros de controle. A estrada
da comunicação pode ser pensada como passagem de fluxos para centros
armazenadores. Fluxos de informações que se prendem e se fecham em estruturas,
no Jornal-reservatório. Mas o trajeto pode ser outro. Ser Vagabundo para pegar
outra estrada comunicacional em que as unidades de controle não mais são
soberanas e não mais importam.
Por isso, também escolhi
manifestações que tiveram uma relação com a estrada e com a vagabundagem. Todos
os autores ou manifestações com que trabalhei, como citei a cima, podem
ser associados ao vagabundo, por experimentarem em sua linguagem ou em vida
essa condição.
Jack
Kerouac, como foi visto capítulos anteriores, era um vagabundo, mesmo que
“iluminado”, da literatura e da vida. Na literatura ele criou uma linguagem sem
vínculos com a máquina literária enraizada e sua uma linguagem tão harmoniosa e
fechada em si mesma. A sua prosa espontânea abriu
caminhos estranhos à toda lógica do academismo literário.
Os Hippies
foram os Vagabundos da vida aprisionada da classe-média. Eles se chocaram
contra toda realidade pequeno-burguesa em um gesto violento: a negação de todos
os valores da sociedade adulta a partir da fuga. Deleuze, que cito em alguns
momentos e que esteve presente em minhas leituras durante a composição da
monografia, era um Vagabundo do pensamento, que apresentou possibilidades menos
rígidas e desenraizadas em diversas áreas. Peter Pál Pelbart seguiu os passos
de Deleuze.
Os
inúmeros artistas que servem como referências em meu trabalho, como todo
artista que se preza, eram Vagabundos na arte e na vida. O Gonzo foi o Vagabundo do jornalismo,
fazendo algo que se assemelha a Kerouac, levando o jornalismo para fora da
prisão da linguagem institucional. Já eu peguei carona com todos esses autores
para, como jornalista, cair na estrada e experimentá-la como Vagabundo.
Minha
relação com o Gonzo merece destaque, pelo fato de o Gonzo ser a única
manifestação jornalística que demonstrei certa empatia até agora, e por
compartilhar certas idéias, o que pode levar a crer que o Jornalismo Vagabundo
é uma continuação
do estilo. Não posso negar que Kerouac foi uma influência forte no
Gonzo.
Também
Hunter Thompson, o pai do Gonzo, poderia ser considerado um tipo de Hippie
raivoso. Além disso, o Gonzo foi uma expressão radical de choque contra o
jornalismo dominante e, é claro, como citei acima, era uma manifestação vagabunda.
Mas o meu jornalismo, mesmo estando ligado a máquinas semelhantes ao Gonzo,
trouxe novas máquinas e ligações, o que torna nossos jornalismos manifestações
diferenciadas.
O fato
de minhas referências serem Deleuze e Peter Pall Bart, parte da tradição
marginal da arte Ocidental e, principalmente, o fato de eu ser um filho do
século 21, demonstram que nem querendo eu conseguiria seguir o mesmo caminho do
Gonzo. O Gonzo, para mim, não é um modelo a ser seguido e sim um agente de
diálogo e um tipo sensível de inspiração.
Gosto
muito da obra do Gonzo, mas diversos pontos nos afastam. A relação do Gonzo com
as drogas era uma atitude transgressora em sua época, mas, hoje em dia, se
drogar não passa de escapismo, ou seja, uma das maiores marcas do Gonzo, sua
relação com a droga, é, para mim, impraticável.
Além
disso, o Gonzo apresentava uma abordagem política engajada (pelo menos, um
engajamento niilista de choque contra a política dos Estados Unidos, sem
vínculos partidários), o que não poderia ser diferente no contexto da época,
mas, nos dias de hoje, se eu seguisse a mesma linha estaria negando o meu tempo.
Como eu poderia trazer um discurso político se nasci em uma época em que todas
as utopias já haviam sido frustradas.
Vivo em uma realidade apática onde o jogo
político é uma brincadeira fascista, com seus nichos e subgrupos - uma
brincadeira para o povo que não difere, em muito, do engajamento dos
apreciadores do futebol - ou seja, a política atual não gera as paixões de
outras épocas, e as vanguardas se interessam por outras manifestações. Como
dizia John Lennon: “O sonho acabou”. Bem, talvez apenas o sonho de uma
sociedade ideal, pois continuo sonhando, aqui, com um novo tipo de jornalismo.
Também
o Gonzo tinha uma necessidade quase infantil, talvez originada pelo uso de
drogas, de se chocar contra leis e normas sociais. Ir de encontro às leis que
sufocam o espírito, não aceitar valores sociais são, para mim, atitudes
importantes, mas dá para ser transgressor sem fazer nada ou negando as
estruturas dominantes sem barulho, como no Jornalismo Vagabundo.
É
claro que a infantilização me interessa, mas muito mais a dos Hippies. Os hippies retornaram à infância para fugir
dos ideais da cultura branca, masculina e, principalmente, adulta. Trago a arte
para a linguagem do jornalismo, uma das propostas do Jornalismo Vagabundo, para
não compactuar com a linguagem rígida e “adulta” do
jornalismo dominante, um tipo de transgressão infantil, uma insurreição jovem
contra o espírito cansado e envelhecido.
Certos meios de comunicação, hoje em dia, criam estruturas
que impedem e bloqueiam a oxigenação do jornalismo. Parece que o jornalismo
não consegue fazer diferente, não consegue se expandir, se mover - imagem
idêntica a uma cidade sitiada: a cidade da peste de Camus, onde ninguém entra,
ninguém sai e todos estão definhando com um doença terrível e desconhecida, ou
melhor, que não querem reconhecer. Quantas pessoas reconhecem que a estrutura
das redações sufoca e castra o espírito?
O jornalismo que é
lido diariamente é tão fechado que se movimenta, apenas, a partir dos mesmos
eixos. O fazer jornalístico é dependente desses eixos - que seriam
unidades de controle - o que cria uma linguagem redundante, bloqueando as
inúmeras possibilidades de quem escreve.
A
instituição com uma ideologia fixa, o grande eixo de toda redação, bloqueia a
livre expressão. O manual de redações, o eixo da linguagem, bloqueia a
liberdade da escrita. A veracidade, o grande eixo do jornalismo, bloqueia a
criatividade poética. O lead, o eixo
de toda a matéria, faz algo idêntico à veracidade. Os cadernos com uma
identidade única e o eixo de cada edição bloqueiam os fluxos dos inúmeros
conteúdos possíveis que poderiam ser trabalhados.
A
necessidade de atualidade, a redundância inevitável dos mesmos temas, a
imparcialidade, entre inúmeras fórmulas que pré-existem às edições, são
imposições de que não se pode fugir sem perder o título de jornalista. É claro
que não estou generalizando. Esses exemplos fazem parte do jornalismo diário,
ou de grandes instituições, ou seja, do que considero ser o jornalismo
dominante (sei que utilizo muitas vezes a expressão jornalismo dominante, mas a
redundância é proposital).
Esses
grandes centros de controle poderiam ser associados à imagem do grande pai que
pune, castra e impede que os filhos - no caso, os jornalistas - cresçam e sejam
autônomos. E o Jornalismo Vagabundo seria uma luta contra o grande pai e suas
leis, situação idêntica a dos Hippies e sua luta contra o rosto paterno. Para
Artaud:
Viver não é existir, mas arrancar da
existência a vida, onde ela esta aprisionada, equilibrada, submetida a uma
forma majoritária, a uma gorda saúde dominante (Pelbart, 2000, p.68)
E eu
quero esse ponto de desequilíbrio, de libertação, de insubmissão a todas as
formas que o grande pai onipotente, o jornalismo dominante, pode tomar.
Diriam-me que se eu quiser viver como jornalista, eu teria que aprender a me
prender a estruturas, deixar os centros de controle me controlar, ser pacífico
frente à castração de meu espírito jornalístico – espírito que nada difere do
espírito do poeta.
Se
quero me manter filho, eu devo ser honroso ao meu pai, não? Honre pai e mãe, um
dos mandamentos da bíblia. Mas não, prefiro ser Édipo, não para desposar a mãe
e sim para aniquilar o grande pai. Sei que me chamariam de infantil, ou
rebelde, mas isso é verdade, e essa rebeldia, não é apenas minha, não estou
sozinho nessa.
Deleuze
considera que:
enquanto
um fora é dobrado um dentro lhe é coextensivo como memória, como vida, como
duração. Carregamos em nós uma memória absoluta do fora: é o fora em nós,
reservatório ilimitado que realimenta nosso campo de possíveis e para qual
Simondon reservou o nome grego de apeiron – Ilimitado. (Pelbart, 2000, p. 60)
O fora
que busco no jornalismo - essa máquina Vagabunda que luta contra todas as
formas de poder - é possível, principalmente, pois o caminho de busca de uma
exterioridade no jornalismo já foi iniciado. Inúmeras manifestações dobraram o
jornalismo com linguagens exteriores a ele – de uma forma produtiva, não a
partir de uma mera imitação supérflua, como faz o jornalismo que critico -
permitindo essa “memória absoluta do fora”, abrindo os campos possíveis do
jornalismo.
O Novo
Jornalismo trouxe a linguagem literária de uma forma mais profunda. O
Jornalismo Gonzo trouxe a linguagem da droga e do delírio. Na história do jornalismo, o caminho da busca
de inúmeros possíveis é imenso. Zuenir Ventura trouxe uma relação íntima com a
marginalidade. O Jornalismo de Gabeira desvinculou o jornalismo do Estado com
apologias às vanguardas revolucionárias.
Stuart
Home estreitou a relação do jornalismo com a arte. Também diversos artistas
tiveram uma forte ligação com o jornalismo como: Hemingway, Bukowski, o próprio
Kerouac, Rimbaud, os surrealistas, a turma da Nouvelle Vague. Assim, apenas
continuo um processo que já teve início e utilizo dessa brecha aberta, há tempos,
para fazer diferente. Eu toco nessa “memória absoluta do fora” que foi me dada
e que permite que o jornalismo seja um campo muito mais aberto e flexível.
Sei
que escrevendo essa apologia a tipos de jornalismo diferenciados parece que
estou querendo justificar que o Jornalismo Vagabundo é jornalismo. Mas será que
isso importa? Quem sabe, ao fim deste trabalho, nem mais chame o Jornalismo
Vagabundo de jornalismo. Ficaria feliz se ele não fosse rotulado de forma
alguma, que ele tivesse inúmeras possibilidades de nomeações.
Imagine
um jornalismo tão livre, que estivesse em uma metamorfose tão constante, que o
impedisse de criar uma forma definida. Como a identidade de um jovem que está
sempre em construção, “onde a vida se encontra em estado mais embrionário, onde
a forma ainda não pegou inteiramente.”. (Pelbart, 2004, p. 65)
Identidade
idêntica à buscada por, digamos, Kerouac. Lembram do capítulo onde falo sobre
os devires de Kerouac? O cair na estrada do autor que permitia o contato com
diversas formas de vida, fazendo-o sair de sua condição de adulto, branco e
masculino. Kerouac tinha relações com mulheres negras, vivia entre marginais,
contatava artistas, buscava a América que a América não vê. Kerouac cultuava
tal movimento que estava sempre perdendo sua identidade e se transformando. Ele
nada acumulava, vivia como um camaleão, pintando-se com as cores da vida
marginalizada. Bem, ser um camaleão, não ter uma forma definida, talvez seja a
grande utopia do Jornalismo Vagabundo.
Efetivamente
prefiro que o Jornalismo Vagabundo não tenha forma a ter apenas uma forma,
principalmente uma forma dura e implacável. Às vezes leio crônicas que fogem da
rigidez do jornalismo, mas que não se perdem da condição da linguagem da
crônica quanto ao gênero. Os cronistas que percorrem as páginas dos grandes
jornais, mesmo com seus textos mais livres, conservam uma imagem conservadora
da crônica, pois negam o fato de que a crônica, em nossa época, se revitalizou
de tal forma, que abriu portas para uma linguagem muito mais ampla e flexível,
a narrativa.
A narrativa
mescla poesia, conto e crônica, sem distinções. Há uma coletânea no Brasil que
saiu em 2003, pela editora Boitempo, “Os Transgressores”, que apresenta essa
possibilidade a mais para a linguagem jornalística e literária. Boa parte dos participantes da
coletânea são jornalistas que, para saírem da linguagem do jornalismo, a
colocaram de lado para irem em direção à liberdade, quase total, da narrativa.
Outros autores são literatos que, para fugir da dualidade prosa e verso, se
lançaram no estilo, que na verdade nem é um estilo, e sim uma condição de nossa
época.
Em
relação ao cronista típico, aquele que tem um espaço especial nos grandes
jornais, ele brinca de ser adolescente ao trazer elementos mais livres ao
jornalismo, mas só brinca, pois desconsidera a narrativa que, muita mais do que
uma brincadeira, é um jogo transgressor - algo próximo a uma experimentação da
violência da adolescência em um estilo indefinido. Essa brincadeira dos
cronistas traz elementos que dão apenas permissão ao escapismo, que faz com que
a dureza da vida adulta, seja a do jornal, a do cronista ou a do leitor, se mantenha paralisada.
A
crônica no grande jornal é uma dose de uísque para não enlouquecer. Situação
parecida a dos cadernos de cultura, que na verdade estão indexados como
diversão - imagem idêntica a do passeio no parque ao domingo, escapismos
interessantes, mas que fazem parte do interior de ser adulto.
Essa
brincadeira é uma brincadeira perigosa, pois ela é feita em nome de um grande
órgão de comunicação, e apresenta todos os vícios impostos para aqueles que são
porta-vozes de um grande órgão (como citei acima quando falava das
redações). Diferencio o cronista
porta-voz dos grandes meios de comunicação do bom escritor, aquele que vale a
pena ser lido, por um simples fato: o escritor (reitero, aquele que vale a
penas ser lido) escreve para si, não em nome de uma organização.
Não consigo imaginar um escritor que escreve
em um fluxo que beira ao êxtase, que brinca com as palavras não pensando em sua
utilidade, falando em nome de uma instituição. O bom escritor é aquele que
escreve com prazer. E existe prazer maior que ser livre? Minha vontade é trazer
isso para o jornal: Trazer o prazer da escrita ao desvincular o jornal de tudo
que impede o fluxo do desejo que deseja apenas a liberdade.
Note
que quando falo em liberdade, ela pode ser pensada de diversas formas: uma
delas, como disse, seria escrever livre de qualquer centro de controle; outra
forma seria a liberdade como busca de um outro eu, ou em busca de um outro nós.
Ambas as formas se associam ao Vagabundo, àquele que vive fora do controle e
que não faz parte dessa forma dominante do eu e do nós, aquele que não é,
praticamente, ninguém.
Sei
que parece que estou fazendo uma poética do jornalismo - o que não deixa de ser
verdade. Sei que estou romantizando a função – e é essa a minha intenção. Por
isso, ligo meu jornalismo a essa manifestação tão misteriosa, tão poderosa, a
arte.
Ser vagabundo
no jornalismo é ser artístico no jornalismo. O artista é um vagabundo por
excelência, no sentido aqui utilizado. A produção artística é inútil. Não se
come um quadro, não se faz guerras com poesia, não se constroem cidades com
performances teatrais, situação idêntica a do vagabundo que nada constrói em
sua trajetória.
Para
que serve um artista? Para pintar a realidade com cores fantásticas, permitindo
que a outra face da vida apareça ou se crie. O vagabundo não faz o mesmo? Ele
não pinta a vida, mostrando que ela pode ser diferente, que as grades do
cotidiano podem ser rompidas? Ser vagabundo ou artístico no jornalismo é
permitir que a outra face do jornalismo apareça.
Eu
admiro muito a liberdade da arte. No capítulo sobre o Novo Jornalismo eu
idealizo a literatura, dizendo que ela é a expressão da liberdade por
excelência. Mas não, aqui eu melhor desenvolvo essa idéia, não é a literatura,
e sim a arte que possui esse estatuto de liberdade absoluta.
Tudo é
permitido na literatura, como disse no capítulo anterior, mas apenas na
linguagem literária. Já na arte, tudo é permitido em qualquer linguagem,
material, qualquer objeto pode se tornar artístico, desde que haja a
necessidade de um artista em rotulá-lo como tal. Duchamp mostrou muito bem isso
com o Ready Made.
Gostaria de poder usufruir dessa liberdade absoluta.
Sim,
gostaria que o jornalismo se elevasse à condição artística. Gostaria de poder
fazer qualquer coisa com o jornalismo. O jornalismo, por ser uma estrutura tão
estagnada, por me oprimir, me impõe esse desejo tão radical. Mas é claro que
esse desejo é simbólico, pois na verdade apenas quero descobrir novas saídas e
entradas no jornalismo também através da arte, como um vagabundo que descobre
novas saídas e entradas para cidades já conhecidas.
Foucault
já dizia que a arte havia perdido, há tempos, seu caráter de exterioridade, que
ela havia sido engolida pelo sistema imperial que abole todas as fronteiras (Pelbart, 2000, p.58). Mas gosto de
duas citações: “Se a literatura já não constitui uma exterioridade absoluta, a
experiência limite é preservada e valorizada enquanto uma operação sobre si
mesmo.” (Pelbart, 2000, p.58). “O fora abolido, não faz senão reaparecer como
estratégia.” (Pelbart, 2000, p. 62).
A arte como o vagabundo são estratégias para se atingir um
grau de exterioridade frente a uma linguagem que aparece como “quase” intocável,
o Jornalismo Dominante. Um professor, em
uma conversa, disse que não acreditava no jornalismo como forma de arte, que a
arte era impossível no jornalismo. Certamente eu discordo, não apenas por ter trazido
exemplos até agora, que não são poucos, mas por uma idealização minha em acreditar que tudo é possível.
Negar que o impossível é possível é dizer que não é
permitido fazer, pensar, sentir e amar de forma diferente. Dificilmente
conseguiria me impor em uma grande redação com seus manuais, suas regras,
sua burocracia, suas leis, sua moral e suas ideologias.
Mas, pensando melhor, lembro de uma citação de
Deleuze: “No coração de uma árvore um novo rizoma pode se formar (Deleuze,
1995, p.24)”, ou seja, em uma instituição com suas raízes profundas, com uma
política rígida, um pensamento mais livre poderia criar uma ruptura e até, por
que não, a transformar.
Apenas
em um regime fascista a diversidade é banida e sufocada, o que não é o caso
preciso de nenhum tipo de jornalismo, pelo menos no Brasil. E se é possível em
uma estrutura profunda o novo, o diferente, o marginal se impor, por que na linguagem
jornalística, que é historicamente flexível, não poderia?
Como
permitir que o jornalismo seja um pouco mais artístico sem destruí-lo? Como permitir a arte ao jornalismo sem se
prender apenas ao plano simbólico? Sei que não posso fazer uma pintura de arte
fantástica ou versos surrealistas e vender como jornalismo, mas apresento
algumas táticas para deixar que a arte penetre no jornalismo.
Uma
dessas táticas é falar em primeira pessoa. Sei que pode parecer datado, todo
mundo usa, o Gonzo nos anos 60, Kerouac nos anos 50, hoje em dia qualquer um
que escreva crônica, de Marta Medeiros ao Scliar, usa a primeira pessoa. Mas é interessante
ter uma primeira pessoa que vê, sente, que toca o objeto o moldando, alguém que
tem coragem de falar por si.
Muito
mais que egocentrismo é um tipo de auto-afirmação. Mas quem seria essa primeira
pessoa? No caso, se fosse um vagabundo, seria um ser livre, um ser em movimento,
que busca a diferença. Um ser que quer ter um trajeto em vida tão interessante
quanto uma obra de arte. Lembro de uma citação de Gregoy Corso:
È o poeta
hoje, e não o poema, que deve se transformar em uma obra de arte, que deve ser
perfeito e amável. O tempo exige que o poeta – isto é, o homem – seja tão
autêntico quanto um poema. (Vários Autores, 1984, p.14)
Falar
em primeira pessoa exige uma pessoa perfeita e amável. Pensando assim, o Jornalismo
Vagabundo torna-se como a literatura de Kerouac uma busca de iluminação. Falando
assim, pareço um antiquado poeta romântico. Mas e daí? Esse é um ideal
romântico. Mas o que realmente importa é que falar em primeira pessoa abre
múltiplas possibilidades para que se saia da realidade dura, tão bem
representada pelo jornalismo.
Eu
como, eu cago, eu falo, mas eu brinco, enlouqueço e sonho. A loucura é
permissível a todos. Todos os artistas que venero sempre fugiram do real como
cotidiano objetivo, não apenas em seus textos, mas também em vida. Alguns
artistas clássicos, que foram tão bem interiorizados pela história da arte e
que até representaram poderes em sua época, como a igreja e o estado, tiveram
esse contato com essa exterioridade da realidade sã.
Lembro-me
de Caravaggio, Goya, Beethoven, Mozart, Wilde, Nietzsche, Van Gogh, Sade,
Rimbaud, artistas e pensadores que demonstraram em vida que a vida pode
percorrer estradas muito além da racionalidade rígida e despótica. É claro que
eu não me comparo a nenhum deles, e bem sei que a loucura desses mestres não
foi, para eles, uma glória e sim uma condição dolorosa, mas eles demonstraram
que a loucura pode ser uma estratégia para se criar uma nova sensibilidade.
Trazer
a loucura para o texto, essa exterioridade que é permissível a todos, seria uma
forma de abrir a linguagem, sem sair do grande
símbolo venerado pelos jornalistas, a veracidade. Todo mundo delira de alguma
forma. Muitas vezes, aparece um sentimento muito forte ou a sensação de que a
coesão da realidade se perdeu.
Isso aparece da forma mais clássica - e reconhecida como
saudável inclusive pela semiótica da cultura - nos sonhos. Imagens de sonhos
são realidades vivenciadas, por todos, que abrem potencialidades isentas da
prisão da realidade. Todos têm essa carga de surreal. E se for trazida essa
linguagem surreal para o jornalismo? Será que descrever essa experiência
seria sair do estatuto de veracidade?
O
Gonzo, a primeira vista, em seus textos que descreviam devaneios drogados,
trabalhava com a fábula e com a fantasia, fazendo ficção, mas discordo, pois
acredito que seus devaneios drogados não possam ser considerados apenas como
fictícios, pois foram vivenciados. Há aqui uma barreira muito fina entre ficção
e realidade, e jornalismo e arte, talvez uma aproximação que desfaça o dualismo
real e irreal.
A
idéia de sair do real estereotipado e objetivado, ou do que é permitido como
real, a vidinha cotidiana que não sai de si mesma, tão bem interiorizada pelo
jornalismo, é para mim um dos pontos principais da crítica ao jornalismo. Mas
não é apenas nos sonhos, ou nos delírios, ou, no caso do Gonzo, nas drogas que
se atinge um grau de exterioridade frente a essa vida tão bem conhecida e
retratada pelo jornalismo.
Acredito que uma das formas da construção do jornalismo
seria criar outros reais, outras vidas. Não seria apressado dizer que a vida é
apenas o que é conhecido (conhecimento, em boa parte, criado pelo
jornalismo)? Quantas artes são feitas
agora e não são apreciadas? Quantos
jornalismos nasceram e morreram no último século e não foram vistos? Quantas
realidades escapam? E esse escapismo, essa perda da diferença, o que causa? Cria
“seres lentos”? (Pelbart, 2000, p. 59)
Não
acredito que tudo que esteja acontecendo de bom esteja sendo vinculado. Um
adolescente agora compõe um som maravilhoso, no sul da China, que não será
ouvido. Um novo grupo revolucionário cria, em algum galpão na Alemanha, uma
nova revolução que será frustrada. Um artista produz a maior obra desde Picasso
em um hotel barato na Inglaterra.
Grupos
e indivíduos e novas realidades são sufocados, pois ninguém vê e dá
importância. Eu entendo que a vida está aprisionada, que o que é vivido é um
parcela mínima desse tudo, e por isso proponho um jornalismo que vá ao encontro
da vida onde ela esteja aprisionada, para libertá-la. Lembro dessa citação de Artaud que expus,
acima, quando falava sobre o jornalismo dominante:
Viver não
é existir, mas arrancar da existência a vida, onde ela esta aprisionada,
equilibrada, submetida a uma forma majoritária, a uma gorda saúde dominante (Pelbart,
2000, p.68)
Imagine
Jack Kerouac pegando a estrada em direção ao caminho seguido por turistas
norte-americanos. Ele pára em frente à Estátua da Liberdade. Boceja. Depois se
encaminha para a Casa Branca. Faz uma careta. Depois passa na Broadway, na
Disney, nas praias mais freqüentadas da Califórnia e coça o saco. Ou seja, ele
vê o que é visto e sabido por todos, vê o que todos vêem e conhecem, ele vê a
vida de traz das grades. Imaginem On
The Road dessa forma: seria retrato de uma prisão, de uma vida fechada e
redundante, não?
É possível
negar que a vida deva ser uma forma de arte? O gozo, o sexo, o amor, a loucura
sadia não são expressões que se assemelham à arte? Então por que não trazer o
jornalismo para a vida, a vida prazerosa e bela, e beleza aqui não como o belo
fútil, mas a beleza da realidade, com toda a sua dor. Beleza como aproximação
da vida, seja ele boa ou má ou,
simplesmente: Terrível, bela demais, como dizia, o cineasta italiano, De Sica
(Pelbart, 2000, p. 66).
Não é
toda poesia que cheira à vida, como não é todo o jornalismo que é burocrático e
fascista (ou, em termos mais populares, chato), mas eu busco esse jornalismo
que cheira à vida, e à poesia (à arte). Há tanto a se ver e a se fazer, existem
tantas vidas. Como eu não pegaria uma mochila e a colocaria nas costas, sem
rumo e sem destino, para ir ao encontro de um impossível-possível ilimitado? Por
que, como jornalista, eu negaria
esse ilimitado? Como a obra não se dissocia do autor, se eu não a trouxesse
para a vida eu deixaria de viver.
Assisti,
após o almoço, uma pequena obra prima cinematográfica de Alain Resnais,
Guernica. Em todo o campo de visão da tela, ao longo dos 10 minutos do filme,
apenas se viam pinturas do grande mestre Picasso. A narração, escrita por Paul
Eluard, detalhava poeticamente a história do bombardeio de Guernica - cidade do
País Basco que foi destruída por aviões nazistas em 1937.
A obra
de Resnais criou a dimensão documental em texto e imagem que o acontecimento
merecia. Resnais fez jornalismo. Nenhum documentário ou reportagem teria tanto
efeito quanto o pequeno filme que não era cinema, nem poesia, não eram artes
plásticas, mas era tudo isso e, principalmente, um documento de extrema
importância feito com estilo.
Exatamente
o que quero fazer com o jornalismo: buscar inúmeras linguagens, discursos,
inúmeras formas de vida. Como eu
negaria as inúmeras formas de arte, manifestações culturais, vanguardas e bens
culturais que estão à minha disposição? Por que não usufruiria delas? A
intenção não é tornar o jornalismo arte, mas sim tentar um abandono de sua
linguagem que permitirá “à morte por esquartejamento da linguagem-prisão”
(Lins, 2000, p.13)
Será que é
necessária uma enorme quantidade de informações para manter a moral bem
conduzida e criar uma noção de como “o real” funciona (engraçada essa palavra,
“real”)? Não desejo que toda a rede de informação seja de descontrole,
dispersão, perda. Não quero o caos. Mas quero que haja a possibilidade de se criar
novas formas de encarar a vida. A informação prêt-à-porter funciona
muito bem como feijão-com-arroz, mas eu quero mais, quero como diziam os Titãs:
diversão e balé.
6 Notas Sobre a Experimentação em
Jornalismo Vagabundo
Ao
longo dos últimos capítulos, apresentei um conjunto de manifestações na
tentativa de mostrar como é possível pensar o jornalismo de forma diferenciada
e, principalmente, com a intenção de justificar o jornalismo ao qual me
proponho a experimentar: o Jornalismo Vagabundo. Mas será que o Jornalismo
Vagabundo é possível?
Será
que ele é viável? Talvez o Jornalismo Vagabundo seja apenas a idealização de um
jornalismo mais livre e menos rígido, ou uma crítica agressiva ao jornalismo
das grandes instituições. Mas, mesmo assim, tentei pôr em prática a minha
idéia. Peguei diversas estradas - subjetivas e objetivas - para experimentar
textualmente esse jornalismo que só possui um nome por mera conveniência.
Pensei
muito em como produzir um texto que estivesse à altura de todas as ligações que
fiz até agora. Pensei, principalmente, em criar uma linguagem que fugisse do
Gonzo, pois provavelmente este tipo de jornalismo proposto será associado a
ele, para o bem e para o mal. E a partir dessas reflexões tentei produzir, com
muito esforço e dor, um texto que justificasse minha tese e fechasse meu
trabalho. Se eu consegui chegar aonde queria, só o leitor me dirá, mas posso
dizer que estou satisfeito.
Antes
de apresentar a experimentação em Jornalismo Vagabundo, eu gostaria de falar um
pouco sobre ela e ligá-la aos temas que abordei até agora. Ao longo das
próximas páginas, discorrerei sobre como o texto foi feito, quais métodos
utilizei para compô-lo e, ao mesmo tempo, farei
dialogar os enunciados dos outros capítulos com a experimentação.
Minha
proposta de pensar um devir-vagabundo para o jornalismo não poderia estar
desligada da estrada. Por isso, para a composição do texto, em um primeiro
momento, planejei dois tipos de viagem: Uma viagem dentro da cidade de Porto
Alegre – pois sou porto alegrense -, e outra para um país distante, a Espanha.
A
primeira parte do texto relata essa minha viagem dentro da própria cidade de
Porto Alegre, que possibilitou um mergulho em uma realidade que é vista e
compartilhada por poucos. O foco principal dessa parte é um lugar marginal,
talvez o mais importante de Porto Alegre, o ponto da boemia conhecido por
Oswaldo Aranha.
A
Oswaldo Aranha é uma rua do bairro Bom Fim que, desde a década de 80, é o ponto
de encontro de manifestações culturais. Por permitir a expressão da juventude -
aqui, no caso, uma juventude mais marginalizada, despreocupada com convenções e
regras -, esse ponto apresenta uma realidade diferente a da vidinha cotidiana
dos subúrbios e da rotina diária e monótona dos escritórios e das instituições.
Esse
grupo enorme de jovens, que perambula pela Oswaldo todas as noites, dá uma
grande importância para o hedonismo, mergulhando em prazeres permitidos pelo
sexo, pelas drogas e a diversão. Algo muito semelhante à vida, sem regras, que
apresentei nos capítulos sobre a Contracultura, e que está presente no Gonzo e
na obra e vida de Jack Kerouac.
O
local, por aglutinar, em boa parte, pessoas que têm a
necessidade de fugir de padrões de comportamentos reconhecidos como saudáveis e
que transcendem o que se considera como moral – pelo menos em relação a moral
dominante –, produz, muitas vezes, uma realidade que beira ao fantástico.
Para
apresentar esse lugar, que é a Oswaldo Aranha, fiz algo que se aproxima ao
jornalismo clássico da reportagem. Não precisei usufruir de ficção ou de outros
artifícios. Foi fácil, apenas abri os olhos, ouvi histórias, convivi alguns
dias na rua e a apresentei de forma crua, textualmente.
Mas o
texto foge de qualquer estilo comum de reportagem, pois o objeto da narrativa
permitiu uma realidade inimaginável e exigiu uma linguagem à altura, uma
linguagem com uma multiplicidade de visões que pode ser associada à poesia em
prosa. No capítulo anterior eu digo: Acredito que uma
das formas da construção do jornalismo seria criar outros reais, outras vidas.
Quantas realidades escapam? E esse escapismo, essa perda da diferença, o que
causa? Cria “seres lentos”? (Pelbart, 2000, p. 59)
Quis
trazer essa realidade para o jornalismo, a fim de mostrar que existem outras
realidades e que o jornalismo não precisa ser reflexo do cotidiano típico, ou a
voz superior que mostra a marginalidade de forma paternal ou negativa. Quis
experimentar a Oswaldo Aranha para abrir os potenciais do jornalismo,
apresentando um grau de diferença – no caso, o mais radical possível – que é
permitido a todos.
A
segunda viagem, apresentada em um outro bloco do texto, foi criada a partir de
um relato de uma viagem que fiz para a Espanha, e que coincidiu com a produção
da monografia. A viagem pode ser entendida como a fuga da vida a qual estou
enraizado desde meu nascimento. No contexto jornalístico, ela pode ser pensada
como a tentativa de abrir novos possíveis, fazer o jornalismo ir a pontos
diferenciados, algo parecido com a parte sobre a Oswaldo.
Também,
como no relato da Oswaldo, apenas abri os olhos e captei o máximo de
informações e as descrevi objetivamente no papel, sem busca de perfis
psicológicos e muito menos de ficção. Não busquei o contato com minorias, não
busquei a marginalidade européia, propositadamente. Pois, como brasileiro, eu
já era minoria.
Descrevo
nessa parte o que contemplei da arquitetura, dos pontos históricos e,
principalmente, da arte. Visitei museus que permitiram o contato com uma
realidade grandiosa – um mergulho na história subjetiva do Ocidente. Dei importância
à arte, pois, como foi visto ao longo dos capítulos, a arte é algo importante
em meu trabalho.
Essa
ligação que fiz com a arte e o jornalismo vagabundo talvez tenha sido a parte
mais produtiva do texto sobre a Espanha. A arte representa essa idealização
minha que tanto falo do tudo é permitido, do ilimitado. A arte permite o
contato com algo de extrema importância, que não tem função, e representa o
trabalho de alguém que vive uma vida marginal, anti-institucional, idêntica ao
vagabundo. Mesmo que a arte que experimentei tenha sido a canônica, ela é
símbolo do excesso de mentes brilhantes que tentam produzir reais
inimagináveis, reais fantásticos, formas de vida impossíveis na natureza,
possíveis apenas em sonhos e no delírio.
Há uma
citação minha no capítulo anterior em que digo: quero pegar a estrada como um vagabundo para fugir de qualquer tipo de
fórmula pronta. Sim, a arte que contemplei é a histórica
– e a história é algo que considero que seja imposto como uma fórmula pronta -,
mas, no caso, foi um vagabundo que contemplou a arte canônica, e a trouxe
para o jornalismo.
Em meu
texto, tentei abraçar arte como se a relação entre o jornalismo e ela fosse
estreita, como se ela não fosse mais um exterior escapista. Eu não só apresento
a arte, eu falo com ela, eu a desconstruo, eu a mastigo, eu a critico, antropofagicamente. O que difere em muito
do jornalismo dominante, que utiliza a arte como se ela fosse um bibelô, uma
forma de consumo e diversão.
Poderiam
dizer que eu deveria ter ido a outros lugares, pra buscar a diferença, mas eu
precisava desses pontos não só para fruir, mas, principalmente, para criticar.
Falo muito na luta contra o jornalismo dominante, e no texto eu continuo essa
luta contra o domínio só que, no caso, contra o domínio da história. A história
que calou e relegou à indiferença inúmeros artistas e formas de vida.
Talvez
pareça que faço jornalismo cultural nesse ponto, mas prefiro dizer que faço
metalinguagem. Uso da arte para falar de arte. Minha
linguagem é a mais livre possível, anárquica, ela não fala em nome de instituições,
é quase uma poesia, uma narrativa agressiva - gênero que citei no capítulo
anterior.
Em outro momento, apresento minha passagem
por aeroportos. Gostei desses pontos, pois eram lugares sem identidade
definida. Fiquei na parte internacional dos aeroportos com miríades de pessoas
de inúmeras raças e países. Essa parte aparece como ponto de transição entre o
Brasil e a Europa, onde eu inicio um processo de perda de minha identidade.
Mas
não é apenas um ponto onde começo a me transformar, e sim um ponto onde não sou
mais alguém. Não existe uma identidade cultural em aeroportos, pois é um lugar
de todos, onde raças e povos se mesclam compondo um todo heterogêneo. Também
não se criam raízes em aeroportos, pouco se faz, pois é um lugar de transição.
A vida
do vagabundo poderia ser associada a essa condição. O Vagabundo percorre todos
os lugares, não vive uma identidade única, ele nada faz, não cria raízes, sua
vida é apenas movimento. E eu não estou em transição no jornalismo? Ou melhor,
não quero um jornalismo transitório, com uma identidade em constate mutação?
E o que significa trazer uma localidade onde a
lei é o movimento e as culturas se mesclam? Nesta parte eu apresento múltiplas
culturas para tornar o texto um texto sem identidade. Ou seja, a idéia de um
jornalismo fechado e duro, que se dispõe a ser o detentor e representante de
uma identidade única, é destroçada em função da não identidade, ou a abertura a
todas as identidades possíveis.
Além disso, o texto todo é entrecortado com
imagens de sonhos. Essas partes expõem um mergulho em minha estrada subjetiva,
que difere de todo o resto da experimentação. Ao invés de abrir os olhos eu os
fecho. Não que eu olhe para dentro de mim, mas, sim, busco um exterior que só é
permitido nos sonhos.
Utilizei
os sonhos como estratégia para compor lugares e cenas, para criar vidas que são
impossíveis na vida dita “real”. Há uma citação minha no
capítulo anterior que diz: Imagens de sonhos são realidades vivenciadas, por todos,
que abrem potencialidades isentas da prisão da realidade. Todos têm essa carga
de surreal. E trazer essa linguagem
surreal para o jornalismo para mim não é um forma de ficção e, sim, abertura
para novos mundos.
Se o
Gonzo usa as drogas e a ficção para abrir a linguagem, eu busco novas
realidades, seja nos sonhos ou em outras vidas, nota-se, assim, o
distanciamento do meu jornalismo e do Gonzo. Eu nego as drogas. Não acredito em
um exterior ou em transgressão a partir de seu uso. Nos anos 60 se drogar era
contestatório, nos dias de hoje não passa de escapismo. Quanto à ficção, por
que faria? Esse trabalho é a prova em prática que se pode fazer uma narrativa
aberta, para diversas potencialidades, sem usufruir
de ficção.
Também
há muitas citações que aparecem ao longo do texto. Citações de grandes gênios
da arte, pensadores marginais. Minha intenção era ligar o jornalismo à arte de
uma forma mais agressiva. As citações aprecem quase como um enigma, elas estão
ali do nada, para nada. As citações são como colagens que descontextualizam o
texto, uma herança dadaísta, que quebra com a linguagem jornalística.
No
texto também há monólogos em que reflito a minha escrita, ou a escrita em um
modo geral. Essa fala marca o texto como sendo autoral, um jornalismo íntimo,
um jornalismo feito com prazer, de forma quase catártica, idêntico ao prazer da
produção artística. Isso reforça a liberdade do texto, que seria impossível em
uma grande redação.
É
claro que o texto deve ser pensado como um todo. Apresentei-o dessa forma, por
uma simples questão de organização. A viagem em Porto Alegre, a viagem para
Espanha, a viagem dos sonhos e a viagem em aeroportos são a mesma viagem. O texto é uma busca constante de uma perda do
que representa a dureza do jornalismo dominante.
Mas, como se verá, o texto parece não ter um fim, parece
que não há conclusões, parece que acaba de uma forma abrupta. Também seu
começo é tão abrupto quanto seu fim. Por
que finalizaria o texto? Isso não seria uma forma de fechá-lo e impedi-lo de se
mover? Um vagabundo não vive a vida em movimento sem a busca de finalidades?
Considerando isso, poderia ser pensado no rizoma: uma
multiplicidade que não começa e não conclui, que se encontra sempre no
meio. Segundo Deleuze buscar um começo,
ou fundamento, implicam em uma falsa concepção do movimento (...) Para onde
você vai? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. (Deleuze,
1995, pág. 37)
A
multiplicidade e a linguagem heterogênea impedem a tomada de um
centro-pai-todo-poderoso. Foram as minhas tentativas de ruptura, de perda, de
choque, minha forma de rizomar com o jornalismo, e fazer um mapa com a
linguagem em uma abertura a devires. Não tentei - ou fui - obrigado a
fotografar a realidade a partir de um fatalismo decalcado, seja da linguagem ou da submissão a órgãos de controle.
Que devires são possíveis no texto? A quais máquinas ele
está ligado? Quais mundos foram criados? Essas deveriam ser as perguntas feitas
ao texto. E não o que ele quer dizer e o que ele quer ser. Todas essas
transições que aparecem no texto demonstram o desejo de fugir de um único
objeto, de uma única só mente, de um único estilo, de uma única linguagem. “Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo
(...) é preciso fazer o múltiplo”. (Deleuze, 1995, p.13)
7 Experimentação
em Jornalismo Vagabundo
“Qual a sua estrada,
homem? – a estrada do místico, a estrada do louco, a estrada da droga, qualquer
estrada... Há sempre uma estrada em algum lugar, para qualquer pessoa, em
qualquer circunstância.”
Jack Kerouac
Porto Alegre: o Início do Fim
“A arte existe para que a verdade não nos destrua.”
Nietzsche
O Sol
começa a aparecer. O vermelho neurótico queima o céu atrás do estádio do
Grêmio, bem em cima dos cemitérios. Comento com alguém que o Fog avermelhado,
brincando na necrópole, me lembra alguma obra de Blake, talvez o Inferno de Dante. Acendo um cigarro.
Tusso. Coço minha pélvis. Esfrego meus olhos em um sinal de descrença.
Infelizmente o dia retornou. Escarro uma dose de catarro na rua, lá embaixo.
Senhoras
caminham apressadas para conseguir a primeira fila da primeira missa do dia.
Policiais trocam de tom, tornando-se amistosos. Alguns carros, em alta
velocidade, abrigam os restos da noite que agora dorme. A família acorda e se
reúne em seu ritual de sábado. Cães latem. Ratos fazem apenas o que ratos sabem
fazer.
Um gato pula de um muro, para em um beco sem
saída e arranha suas unhas em uma lata de lixo. O gato avista uma velha
senhora. Ambos se encaram em um olhar desdenhoso. A paixão impõe um cheiro
adocicado em quartos de motéis baratos. A paixão, pelo contato com o sol,
retorna a sua forma dura e neurótica. A paixão torna-se amor. O amor conhecido
por todos. O amor simbolizado por uma casa, por filhos, pela grande mãe e pelo
grande ditador: papai.
Eu
nunca amei. Eu nunca amarei. Pelo menos não dessa forma. Tento fugir da
segurança dos conceitos gastos e envelhecidos. Não me permito a segurança que a
realidade impõe. Realidade essa que tanto se conhece. Realidade saudável.
Realidade sana. Realidade redundante que mantém a vida. Recolho-me,
escondendo-me do dia. Que a noite retorne o quanto antes.
Sonhos
Sirenes
transformam-se na matéria da brisa fria. Garotos caminham entre vielas, e
becos, e serpentes, buscando o que nunca será encontrado. Prédios irregulares
tornam-se os alicerces do caos. Caos: estranha e bela essência. Sapos cantam
sua sinfonia cacofônica para o lodo que reina solitário. Gandhi paradoxalmente
suicida-se.
Uma
criança perde-se entre a relva quente e úmida da boca de Eva. O grande déspota,
o pó branco, se impõe no corpo que não se satisfaz. Uma peça de teatro é
encenada por um palhaço que declama poesias em favor da vida. Monólogo de
patética esperança. O palco italiano se rompe e a platéia participa da
encenação. Cem palhaços declamam
poesias em favor da vida. Mãos sedentas por sangue tremem.
Bonecos
de aço tentam tocar o céu em parques de diversões na antiga Alemanha. Uma
manada de ratos peregrina entre fendas, escondendo-se dos raios solares. Os
raios os perseguem e queimam sua pele dura e seus ressecados pêlos. Narcóticos
são criados para o deleite de veias sedentas e insatisfeitas. Robespierre morre sufocado no próprio
vômito.
Garotos
brancos podem sonhar com o dia em que serão negros. Garotos negros não sonham,
agem. Paris é currada por uma grande construção de ferro. Uma bomba caseira
explode. Um cão vomita. Um soco é desferido. Uma língua sangra. Túmulos são
conduzidos por zumbis anêmicos. Um edifício em chamas grita e sorri. Fantasmas
saem de janelas fechadas e contemplam a cena. Infelizmente, Laio apenas morre
nas mãos de Édipo. Banheiros públicos abrigam belas garças que buscam o contato
com os seus. Bonecas de plástico desfilam em uma praça pública da antiga Roma.
“Se o louco insistisse
em sua loucura, acabaria se tornando sábio.”
William Blake
Acordo
no final da tarde. Mais um sábado em Porto Alegre. O verão acabou, faz tempo.
Os moradores de Tramandaí tomam conta da cidade. Nem é inverno ainda. Será que
teremos? Abro o jornal, procurando alguma coisa para fazer. Mais uma vez me
decepciono. Nenhuma peça de teatro. Dezenas de salas de cinema permitem apenas filmes
medíocres. Decido comer alguma coisa. Saio do Menino Deus e percorro algumas
quadras até a Oswaldo Aranha. Paro na Lancheria do Parque.
Peço o
de sempre: Xis carne sem ovo. Tomo café, enquanto finjo ler o jornal emprestado
de alguém. Dois traficantes sentam-se à mesa ao lado. Estranho não terem me
abordado. Perambulando pela Oswaldo Aranha há quase uma década, é impossível
não ser reconhecido e não reconhecer. Todos se conhecem. Todos sabem quem é
quem. Aqui todos são anônimos apenas para a vida lá fora. A vida das
construções bem construídas; das salas e escritórios; do terno e gravata; do
beijo insípido; da infância castrada; da juventude impedida de ser jovem. A
vida adulta que insiste em ser adulta, com suas estranhas regras e estranhos
vícios.
Mas é
claro que o reconhecimento aqui é outro. Reconhecimento místico talvez gerado
pela droga. Já ouvi falar muito sobre o sexto sentido da narcose, o que não
deixa de ser verdade. Mas droga aqui é apenas um efeito. O contato místico
entre as pessoas - esse contato tão pessoal - é gerado por uma liberdade quase
utópica.
Ás
vezes rola um beijo em uma desconhecida sem precisar de uma palavra. Alguém
começa a falar contigo como se fosse teu melhor amigo. Um baseado aparece do
nada. Grupos se acumulam na rua sem a existência de barreiras. Um grupo
interage com outro grupo que interage com outro grupo, formando um grupo único.
Não é uma quadrilha. Talvez uma matilha jovem que tem muito mais o que fazer do
que tentar seguir pequenas convenções e etiquetas.
Quando
as coisas esquentam mesmo, ou seja, sempre, o clima enlouquece. Alguém sai
bêbado da Lancheria e é atropelado por uma ambulância, depois por um carro,
pára junto de nós e diz apático: “Porra, acho que quebrei um dente”. Um rapaz,
louco de Benflogin, engatinha entre a
massa no Escaler. Algumas pessoas sorriem. A maioria não vê. Um grupo o leva
para comer alguma coisa, naturalmente.
Um
garoto aborda um grupo e pede que digam para policiais, que o perseguem, que
ele passou a noite com eles. O grupo obedece ao pedido. Depois sem perguntarem
o porquê da confusão, se embriagam juntos. Meses depois o garoto começa a
namorar uma das garotas do grupo. 10 pessoas tomam chá de cogumelo e vêem
anjinhos e estrelas, voando em plena rua. Uma briga entre gangues resulta em um
garoto esfaqueado. Garotos, que nunca tinham visto o agredido, levam-no para o
HPS.
“O que ilumina a noite? A poesia.”
Jean-Luc Godard
Dois
jovens trocam beijos sobre a grama do Araújo Viana. Pela primeira vez despem
alguém de outro sexo. Ali mesmo, entre o gramado verde, fazem amor. Após alguns
beijos, um rapaz abraça uma garota pelas costas com seu casaco. Em frente à
Redenção, dentro do Ocidente, junto a mais de 300 pessoas, a penetra. Uma
garota, louca de bolinhas, caminha na pista de dança do Ocidente em linha reta.
Cada menino ou menina que aparece em sua frente recebe um beijo. No fim do
trajeto, toda encharcada de suor, contabiliza mais de 10 beijos em pessoas de
sexo indefinido.
A
Oswaldo é o paraíso daqueles que sabem que o paraíso não é freqüentado por
santos e um deus facínora que nada quer. Sim, existem santos na Oswaldo. Mas um
tipo de santidade diferente, conhecido apenas por aqueles que aqui convivem.
Aliás, todos são santos na Oswaldo. Não há hierarquias. Nunca vi alguém pedir
um autógrafo para os mitos da cultura da cidade que freqüentam a rua. As
bandas, que fazem ponto no local, são tão importantes quanto o traficante, o
dono do bar ou o conhecido.
Não se
faz turismo na Oswaldo. Não se vem aqui para se ver estrelas do Rock, e todas
as grandes estrelas estão aqui. Sim, não dá para negar que boa parte de tudo
que aconteceu de bom na arte, em Porto Alegre, teve algum tipo de ligação com a
rua. O rock Porto-alegrense – essa manifestação de extrema importância - é
Oswaldiano por excelência.
Os
Replicantes, a Cachorro Grande, a Graforréia, Nei Lisboa, Edu K, o Defala, a
Ultraman, a Bidê ou Balde, entre tantas bandas, fazem ou fizeram presença nos
bares, nas calçadas, nas ruas, neste ponto que se convencionou a chamar de,
simplesmente, Oswaldo. E não é só o Rock, é a cultura que está presente. Ainda
se encontra o diretor de cinema Carlos Gerbase e sua trupe, tomando uma ceva na
Lancheria.
A
Kátia Sumam e o Frank Jorge estão, quase todas as semanas, no Ocidente com o
Sarau Elétrico. A turma do teatro, poetas, pintores freqüentam o espaço. Se
Kerouac, Hunter Thompson, Rimbaud, os surrealistas, os Beats vivessem em Porto
Alegre, nos dias de hoje, certamente estariam aqui.
Mas
infelizmente só é produzido na cidade sub-estrelas, sub-gênios. Viva o
submundo! Viva a subvida do terceiro mundo! Ser brasileiro é ser marginal. O
que seria então ser brasileiro e freqüentar a Oswaldo? Que tipo de marginal nós
somos? Dizem que a Oswaldo morreu. Bem, Deus também, segundo Nietszche, mas
sabemos que ele continua vivo. A Oswaldo é o símbolo da cidade que mostra que a
marginalidade pode ser jovem e criativa. Exatamente o que o grande rosto
paterno odeia: juventude e criatividade.
Saio
da Lancheria. Paro no Arteplex. Assisto algum filme que não me chama a atenção.
Passo na Cultura para ver se há algum livro interessante para comprar. Poucas
opções como sempre, cheio de gente como sempre. Tomo mais um café. Permito-me
ficar entediado. Arteplex e Livraria Cultura, que coisa mais clichê. Que coisa
mais pequeno-burguesa.
Voltarei,
com membros de ferro, a pele sombria, olhar furioso: pela máscara, me julgarão
raça forte (...). Vou ser ocioso e brutal (...) Serei salvo (...) Por ora sou
maldito, tenho horror da pátria.
Rimbaud, Uma temporada no Inferno
A
criatividade às vezes dá as caras. Eu a encaro, e a beijo e a curro. Delícia
produzir o que eu nunca produzi. Delícia não ser redundante. De onde nascem as
palavras? Eu não penso ao escrever. As idéias vão aparecendo e, quando vejo,
tomaram forma. Forma? Que forma? Forma indefinida. Monólogo louco sem a
preocupação do outro.
Mergulho
na sujeira da beleza ou na beleza da sujeira. Os espíritos rondam, estão por
aí. Eu os absorvo e os transformo não, necessariamente, em algo meu, mas em
algo que eu compreendo. Sou o meu melhor leitor, pois conheço muito bem esses
espíritos que falam comigo. A loucura que produzo é uma loucura muito bem
conhecida, muito bem mapeada.
Outros
que também a conhecem, entendem o que escrevo, talvez tanto quanto eu. Meus
textos não são meus. Não são de ninguém. Talvez nem sejam dos espíritos. Restam
poucos dias para a viagem. Sair do Brasil para ficar um tempo na Europa é um
movimento violento. Minha primeira
grande viagem. Minha primeira verdadeira caída na estrada. Nem imagino o que
irei encontrar.
Muitos
fugiram daqui. Quantos se exilaram do país para viver uma outra vida? Minha
intenção não é tão ambiciosa. Apenas quero cair fora literalmente, por um
tempo. Cair fora dessa vidinha em que estou enraizado. Sinto que meus pés estão
presos nessa terra.
A
mesma cultura há tempos. A mesma identidade compartilhada como os mesmos. Tudo
é igual. As cores estão gastas. Ninguém mais sofre, pois todos estão
acostumados. A beleza da terra é apenas vista por quem vem de fora. O lance é
estar fora. Poderia ir para Amazônia para tomar Peiote. Mas quero o máximo de
distância do país para ver o que acontece.
“Os verdadeiros santos eles consideram
loucos, eles é que são loucos.”
Carl
Solomon
Volto
para a Oswaldo. Uma blitz policial põe rapazes na parede e garotas assustadas
em balcões. Três garotos menores de idade são levados. Para aonde? Para aonde?
Ninguém se assusta. Todos consideram a situação uma ação de rotina. Ação de
rotina ser revistado por um policial armado. Rotina: estranha palavra. Sim, há
uma rotina na Oswaldo; de um lado a da lei; do outro lado a dos fora-da-lei.
Mas quem domina a rua somos nós, os bandidos. Nós tornamos essa terra uma zona
onde tudo é permitido - de preferência um tudo permitido repleto de drogas,
sexo e diversão.
Em
qual lugar dá para se drogar, comprar drogas, se esconder, transar em locais
públicos, dormir na rua como na Oswaldo? Talvez apenas a vida privada, entre
quatro paredes, permita algo parecido. Mas quatro paredes não abrigam centenas
de pessoas. E em um lugar onde tudo é
permitido coisas maravilhosas acontecem. Ainda mais
por esse “tudo é permitido” ser produzido por um bando de jovens.
Mudança eu falava.
Corpo em constante construção. Isso é visto nas inúmeras máscaras que os jovens
utilizam na Oswaldo. Punks com jaquetas de couro, cabelo espetado, vinho
barato em uma mão e lata de cola na outra dormem em plena rua. Góticos vestidos
de preto, com olhos pintados e ares afetados declamam poesias de Allan Poe e
sonham com anjos e demônios.
Hippies
anacrônicos, com cabelos Rastafari, fumam a erva sagrada em cachimbos feitos
com as próprias mãos. Black Metals, com caras de mal, bebem cervejas e vivem
como se estivessem em um filme de terror. Moods, com seus terninhos e cabelo
singular, trocam informações sobre as últimas novidades dos anos sessenta. Emos, a turma mais jovem, brincam de amor
livre e misturam diversos estilos.
E mesmo quem não aderiu a todas essas sub-culturas
envolvidas com a música - mais especificamente o Rock - interage com elas. Pois
o Rock é um dos elos da Oswaldo. Fica a
pergunta: o Rock de Porto Alegre fez a Oswaldo, ou o Rock de Porto Alegre foi
feito pela Oswaldo? Sim a Oswaldo é Rock, e o Rock é jovem. Logo; a Oswaldo é
jovem. Bem, mas isso já foi dito.
Sonhos
Bebês
vodus dançam em salas acolchoadas pela magia negra institucional. Estranhos
seres de branco empunham chicotes e seringas, impondo para as almas encarnadas
o ópio da inexistência. Ratos de cabelos brancos choram ao relembrar da idade
adulta. Fotos, de todos os grandes poetas, se aglomeram em paredes sujas por um
branco nada inocente.
Fotos,
de grandes gênios da arte, se aglomeram em cima de macas assépticas. Fotos, de
grandes mártires, ofuscam os olhos dos homens de branco, fazendo-os chorar por
saberem que a clausura da genialidade foi o grande genocídio da humanidade. Os
inumanos, vestindo roupas circenses, também choram ao contemplar as fotos e por
terem rompido a barreira, ou melhor, pela barreira ter sido criada.
Lobotomias
são distribuídas a preços módicos. Choques químicos são aplicados em cinco parcelas.
A farmacopéia universal é imposta como a única forma de moldar a humanidade.
Suicídios são proibidos por lei para que o grande suicídio seja imposto
lentamente. Uma vida inteira, de morte contínua, vive entre salões e corredores
fechados por grades de ossos.
Início da semana
“A morte constrói, a morte destrói.”
Paulo
Martins em Terra em Transe de Glauber Rocha
Caio
na estrada. Bem, mas uma estrada nada romântica. Nem um pouco parecida com a
estrada dos Beatnicks, a de Rimbaud ou a de Van Gogh. Uma estrada diferente da
que experimentarei nos próximos dias. Saio da Castelo Branco em boa velocidade.
Entro na BR de Canoas. O trânsito fica lento. Um acidente, óbvio. Mais um dos
milhares de acidentes que ocorrem no ponto e que fazem com que se fique parado,
por quase uma hora, em um trajeto de um pouco mais de um quilômetro.
Coloco
um Cd do Ultravox. Acendo um cigarro. Um carro passa em alta velocidade no
acostamento. Como as pessoas podem ser tão infantis? O movimento lento, aos
poucos, torna-se uma velocidade um pouco menos monótona. A linha reta segue
contínua. Um linha reta, sem estilo, sem beleza, sem poesia até São Leopoldo.
Linha reta inútil, sem nexo, sem sentido. Linha reta neurótica que aglomera o
trânsito, as carcaças de ferro e as carcaças de ossos em uma sintonia violenta,
agressiva, doentia. Mas as pessoas têm que ir e vir. Ir da vida para chegar à
morte.
Ou,
simplesmente, continuar seguindo a trilha da morte. Eu sigo a mesma trilha –
sei que estou morrendo. Extrair da dor a poesia, continua sendo doloroso.
Quantas linhas retas escritas. Quantas linhas retas seguidas, para chegar a lugar
nenhum. Sim, há prazer no ato de escrever. Também há prazer – um prazer mais
ameno – quando o outro reconhece o que escrevo. Mas, depois, o prazer acaba. O
texto vira um túmulo. Um retrato do que já fui. Uma prisão do passado. Uma
falsa eternização de um fluxo que não mais serve, que está envelhecido e que
simboliza alguém que já morreu.
Aeroportos e aviões
24
horas enclausurado em estranhos pontos de transição. 24 horas preso em lugares
onde quase nada se cria, se produz e se faz. A regra aqui é esperar ou, no
máximo, consumir. Aliás, qual é a função de consumir? Gastar dinheiro em
bibelôs de consumo nada mais permite que o prazer fantasma, prazer idêntico ao
da droga, e como Willian Burroughs dizia: “Talvez todo prazer seja apenas
alívio, e o que se vive quando se está aliviado é um vácuo que não deixa marca
na terra das lembranças”. (Moraes, 1984, p.65)
Em
aeroportos e aviões existem apenas dois tipos de alívio: o alívio de não mais
estar ali, e o alívio gerado pelo escapismo que permite esquecer que se está
ali. A função das lojinhas com preços isentos de impostos, das pernas magras e
silhuetas esbeltas das aeromoças, do álcool e dos barbitúricos é aliviar quem
está indo ou vindo, aliviar a espera do contato com o destino - engraçado que
acreditem ainda em destino.
O
tempo passa de forma dolorosa. Não penso mais com o relógio. O tempo lerdo
macera minha cabeça embriagada, meus pés inchados, meu corpo sujo, minha boca
que pede água, vinho, uma saída rápida para Madri. Sei que ainda tenho que
atravessar o Brasil - ver a pátria de cima, rapidamente, como quem não quer
mais nada com ela, como quem foge dela.
Alguns
venezuelanos de tez escura e faces de traficantes contemplam lojas de perfume,
adquirindo o odor secular francês. Índios chilenos com o corpo rijo, e pequenos
sorrisos e pequenos olhos asiáticos tomam coca-cola e mastigam sanduíches de
presunto, com a calma budista oriunda do verdadeiro sofrimento.
Brasileiros
mal vestidos, sem pudor, deitam-se em sofás, sonhando com o contato com a
Europa. Uma alemã adolescente fuma um cigarro, e troca olhares e gracejos com
jovens uruguaios. Argentinas, com a cara besuntada de maquiagem barata e vestes
espanholas, mostram seus dentes enormes em boçais sorrisos.
Um
chileno gay, com a postura universal da homossexualidade, olha para os lados,
para frente, boceja e prende seu foco de visão em meus pés. Um grupo de
Norte-americanos hiper-alimentados, quase gigantes passa rapidamente como uma
manada de elefantes, tropeçando em um grupo de latinos de nacionalidade indefinida.
Aeroporto em Buenos Aires, o início de minha trajetória.
.
Madri
-
Precisamos continuar indo e não pararmos até chegarmos lá.
- Onde estamos indo homem?
- não sei, mas precisamos chegar lá.
Jack
Kerouac
Acendo
um cigarro e tiro fotos da janela do hotel. Em minha frente uma grande rede de
cinemas, a Warner, se petrifica. Contemplo o céu de Madri que cospe um sol pesado de final de primavera. Meus lábios, nariz e
axilas começam a secar. Noto, pela primeira vez, a proximidade do deserto.
Caminho do hotel em direção a Plaza Mayor.
A
praça, realmente belíssima, fechada em suas extremidades por uma construção
imponente, apresenta o típico ar patrimônio histórico de Madri. Em tempos
remotos, ela abrigou execuções e julgamentos da Inquisição, e hoje é um dos
corações da vida social da cidade. Uma das máximas de Madri é: “Todos os
caminhos levam a Plaza Mayor”, o que não deixa de ser verdade, pois o número de pessoas é imenso em quase todos os horários do
dia.
Japoneses, sedentos
pelo escapismo da cultura milenar Oriental, mesclam-se a espanhóis, de
todo os pontos da Espanha, que mergulham em suas raízes. Imigrantes do norte da África, que buscam o
esplendor da economia Européia, contatam Norte-americanos que se satisfazem com
a fuga da moral falida de seu país.
Brasileiros
com caras vestes rotas, querendo a todo o custo se desligar da pobre terra,
chocam-se com indianos de largos sorrisos e intenções desconhecidas.
Argentinos, uruguaios, mexicanos, chilenos,
provavelmente, buscam uma possível identidade que perderam há séculos atrás. A
pluralidade de culturas e a raiz espanhola interagem visivelmente,
formando um cenário único.
Além
disso, acrescenta-se a essa fauna heterogênea, inúmeros garotinhos, de visual
rebuscado e olhares nada inocentes, que dão
um colorido especial à praça e à cidade. Esses garotinhos deixam confusos
os passantes, pois fica difícil de distinguir se eles são gays ou, apenas,
metrossexuais. Mas tento confiar em minha intuição: Madri é a cidade que mais
aglomera gays no globo.
Sento
no Museo del Jamón – um dos mercados mais tradicionais de Madri - e delicio-me
com um sanduíche de presunto cru ibérico – uma das iguaria mais tradicionais da
Espanha. Depois de quase uma hora tentando diferenciar os nativos dos turistas
e os metros-sexuais dos gays, em uma troca de olhares não tão inocentes, encho
o saco da “terceira praça mais bela do mundo”, e resolvo dar uma caminhada “sem
rumo definido” – uma das máximas de minha peregrinação pela Europa.
Os arredores da Plaza Mayor abrigam inúmeras,
quase infinitas, ruinhas, becos, praçinhas e prédios geminados, que compõem um
belo cenário que irei contemplar em boa parte de minha estadia em Madri. Mesmo
apresentando uma arquitetura secular de forte importância histórica, esse ponto
manifesta uma simplicidade singular, o que cria um contraste com boa parte das
edificações de importância mais significativa.
A
maioria das construções apresenta uma estética e função padronizada. Todos os
prédios de, mais ou menos, quatro andares abrigam, em sua parte inferior, bares
e restaurantes com mesas na calçada e, na parte superior, apartamentos
particulares com janelas altas e belas sacadinhas, além de muitos Hostais –
pequenas pensões com preços módicos. Recortando os prédios aparecem ruas, em
sua totalidade, estreitas que impedem o fluxo de carros e são utilizadas,
preferencialmente, por pedestres.
Já é
quase final da tarde. Os bares, mesmo sendo um dia de semana, começam a ficar
cheios. A festa anual de San Isidro, uma das mais famosas da Espanha, trouxe
gangues de garotas e garotos que passam rapidamente com sorrisos, caras e bocas
e dialetos de todo o globo. Vejo um letreiro, em um bar, que diz: Taverna.
Sento-me e peço uma cerveja. Mantenho minha atenção em uma placa que revela que
o bar existe desde o final do século 16. Me junto a alguns garotos. Tomo mais
algumas rodadas de cerveja. A noite é longa, mas esconde-se em algum lugar
negro de minha memória etílica.
Bloco dos Primeiros Sonhos Europeus
“O que existe de mais cruel que um
pensamento sem freios nem guias, sem limites?”
Antonin Artaud
Asiáticos
canibais percorrem o caminho da eternidade, tentando contemplar a imagem de um
deus único que a eles nunca pertenceu. Crianças suicidam-se, em quartos de
hotéis baratos, na tentativa de tornar desconhecida à ingenuidade e à
verdadeira transcendência. Antonin Artaud compõe manifestos líricos e violentos,
em louvor à transgressão subjetiva e social, para destruir e recriar a arte da
cultura ocidental.
Indígenas
vendem seus dentes, e seu orgulho e suas vidas em esquinas, e vielas e becos para
eunucos canibais vestidos de ternos e caretice demasiada. Willian Burroughs
injeta um pouco de tudo em suas veias ressecadas, para criar métodos e loucuras
textuais em contraposição à insipidez do cânone literário.
Ciclos
contínuos de decadência tornam filhos em pais, torturados em torturadores,
vítimas em assassinos, sadios em enfermos, artistas em doentes clínicos, vivos
em mortos em ruas de cidades do México, da Itália e de cantos hiper-povoados de
Marte e Saturno. Godard agride com violência criativa a caretice
pró-holywoodiana, possibilitando ao cinema o retorno a sua função política e
artística.
Um prédio
centenário interage com automóveis bilíngües adolescentes em uma cópula
violenta que faz o céu tremer. O sorriso torna-se ilegal, sendo traficado por
babuínos Hindus em vilarejos do norte da Espanha. Nietzsche declara a morte de
Deus para aqueles que o mataram, tornando a possibilidade de uma eternidade
metafísica em um sofisma velho e decadente.
Fios
de barbas crescem. Unhas quebram. Dentes ganham cáries. Hímens são rompidos. Ânus
são penetrados. Estudantes de todo o universo são enjaulados em um prédio medieval, e recebem finas sabedorias de sapos
semi-analfabetos. Miró cria uma palheta de cores singulares para compor
abstrações lúdicas, impondo ao lirismo da arte outra face.
Gangues
de hidrantes hiper-alimentados cospem urina, e fogo e sangue no panteão da arte
universal. A verdade é descoberta por um
cão raivoso que arranca a própria língua, pois sabe que a verdade nunca deverá
ser latida. Deleuze luta contra a organização fascista imposta pelo organismo em
cantos filosófico-dançarinos que vangloriam o Corpo Sem Órgãos.
Genes,
árvores, bactérias, pedaços de ferro e restos de ossos simulam orgias
intermináveis em ovação ao que restou de eternidade. Tudo é reduzido a nada para,
logo após, o nada tornar-se a imagem de tudo. O impossível torna-se possível - pelo
menos até quando as pálpebras se abrirem e ele voltar a viver como eles vivem.
Charlie Parker desenvolve um estilo de improvisação, em seu surrado saxofone,
que supera os grandes mestres da música erudita.
O
grande deus ânus engole Londres, Amsterdã, Tóquio, Berlin, São Paulo, Praga e uma
vila no sul da França. Juízes canibais vendem punições por algumas notas de
merda e confiança dúbia. Drogados-homossexuais escondem-se em baixo de viadutos
e contemplam as pregas de seus ânus e os hematomas de suas dermes, como quem
contempla o pôr-do-sol divino.
Jim
Morrison refugia-se em uma banheira de hotel parisiense para dar fim a um ciclo
de produção-autodestruição-transcendência, que renova a música e o
comportamento de inúmeras gerações. Dois garotos encaram-se, reconhecendo a
beleza da amizade e algo mais. Um palácio de carne, repleto de sangue, abriga
três gerações de infames papas. O morto pergunta a Deus qual é o significado da
vida. Deus se cala da mesma forma como sempre ficou calado.
Idosos
edipianos frustrados choram por seus pais terem morrido e, principalmente, por
nunca terem atingido seu grande ideal. Máquinas canibais da revolução
industrial, feitas de ossos, brincam com pequenos bibelôs digitais em praças de
silicone da América sulista. Dois poetas sem pátria, sem famílias, sem
dinheiro, sem nada que os permita serem humanos vendem seus espíritos em
mercados de pulgas na China.
Rimbaud
compõe a maior obra da literatura, em um só golpe, e, logo após, esconde-se na
África, para ser descoberto por estudantes franceses que o conclamam o maior
poeta da história. Neuróticos são condecorados cidadãos modelos em cidades do
norte da Alemanha.
Garotas
púberes felicitam-se por contemplarem manchas de sangue em lençóis de seda
branca, em quartos de hotéis de algum lugar ao lado do céu. Gangues de garotos
de beleza demasiada dançam balé em piscinas de ouro repletas de vaselina e
champanhe. O ilimitado da arte e o impossível dos sonhos: as duas faces da
mesma bela moeda.
“No coração de uma árvore um
novo rizoma pode se formar”
Gilles Deleuze
Velásquez,
José de Ribeira, El Greco, Goya, os Brueghel, Caravaggio, entre tantos artistas
consagrados, tornam o Museu do Prado - o museu mais renomado da cidade e em
atividade desde o início do século 19 - ponto obrigatório para quem busca a
face estética do Ocidente. Boa parte das obras expostas representa a arte que
foi permitida ser histórica por ser reflexo do desejo de entidades superiores
do passado, como os reis e a igreja. O
Prado é a antítese da simplicidade, do efêmero, e, principalmente, um símbolo de
eternidade de um país com uma história gloriosa.
E essa
história gloriosa e intocável, a história dos reis, do clero, dos grandes
feitos e efeitos, que está registrada em forma de arte no museu, permite que os
sonhos coletivos se desliguem do presente em função de um passado idealizado.
Ouço muito falar que o presente é uma degeneração do passado, talvez seja, mas
percebo esse sentimento como sendo retrógrada e conservador.
É muito
fácil deitar a cabeça em fórmulas prontas. A segurança que a história permite é
muito menos dolorosa que a insegurança dos passados, presentes e futuros que
não foram e não serão registrados. Quantos artistas foram calados, esquecidos
ou simplesmente não foram vistos? O trono da história é uma cadeira elétrica em
que nos sentamos e morremos. A vida não é um livro de história. A arte não se
resume a uma museu. A realidade não é uma, ela é várias.
Pasmo
diante de As Meninas de Velazquez,
das pinturas negras de Goya, do surrealismo religioso de Bosh, dos excessos de
El Greco, da luz e sombra de Caravaggio, a beleza dessas obras é inegável. Mas
acredito que outras coisas estejam acontecendo, sei que outras coisas
aconteceram. Por que daria mais valor ao que está exposto com o símbolo de
eterno?
Os milhares
de turistas, sedentos por fotos e por saciarem seus sonhos eróticos de
história, conjuntamente a uma sensação de impotência – por estarem presos a uma
realidade dura e perfeita demais - me jogam para as ruas novamente. Volto para
os arredores da Plaza Mayor. Contemplo as antigas construções que abrigam
simples mortais. Paro novamente na Taverna existente desde o século 16, sabendo
que o rei e aqueles que escreveram a história nunca a conheceram.
Sento-me
e escrevo algumas linhas em guardanapos de papel: Não posso negar o êxtase de
contemplar a bela arquitetura da cidade, suas catedrais, palácios, museus,
inúmeras fontes, esculturas majestosas e jardins imensos que, em muitos locais,
banem as edificações da atualidade. Não há como sair ileso do contato com essa
realidade que parece perfeita demais para um brasileiro.
Obviamente,
como todos, tenho aquela necessidade de abundância e de busca de um êxtase
superior. Esse sentimento me leva, muitas vezes, a buscar os grandes reis e
Deus, ou qualquer coisa que me faça superar minha condição mísera de detentor
de um corpo limitado e de uma existência frágil. Mas, mesmo assim, pensando
bem, fico com o banal, o carnal, o que posso tocar ou destruir, o que irá me
amar ou me odiar em uma recíproca de ossos e sangue, não de concreto e papel.
“A fragilidade do escritor não é psicose,
mas porosidade ao excesso”, e “os caminhos do excesso levam ao palácio da
sabedoria”.
Peter Pál Pelbart encontra William Blake
Manhã
quente. Sol majestoso. Céu supra-azul. Garganta, lábios e narinas ressecados.
Olhos abertos e hiper-dilatados tentando contemplar tudo, perceber tudo aquilo
que as mãos virgens podem e devem tocar. Tocar o céu não é mais a busca, pois
qualquer elemento, o mais mínimo e fútil que seja, apresenta-se como a porta
para a transcendência.
Sinto-me
em um estranho céu. Percebo-me como um estranho anjo. Estou em um êxtase, tão
expressivo, que me sinto um cristão psicótico. Contemplo algum deus estranho
nas ruas de Madri, e ele me mostra sua face. Espero que a explosão dos sentidos
comece a se dissipar. Sinto que absorvo mais do que
posso.
Saio
dos arredores da Estación Norte de
ônibus. Desço perto do Museu do Prado. Percorro jardins, e parques, e ruas e
prédios que confirmam que há beleza em cada ponto da cidade. Caminho alguns
poucos quilômetros e chego ao Museu Nacional Reina Sofía. O museu, em sua
fachada, apresenta uma construção antiga adornada por torres e elevadores
futuristas; no interior, a memória da arte moderna e contemporânea descansa
majestosamente.
Ponce
de Leon y Cabelo é representado por sua obra prima, Acidente, um quadro que mergulha no lirismo da violência. O grupo
Equipo Crônica brinca com a Pop Arte, permitindo juventude e vitalismo para a
herança de Warhol. Instalações de vídeo contemporâneas dialogam com o high
tech, impondo uma fruição catártica.
Quadros
negros de Dali, quase como uma paródia de Goya, apresentam a face mórbida e
poética do mais famoso e comercial dos surrealistas originais. Tanguy, Masson,
Léger, Delaunay, o grande Juan Gris, entre tantos, mostram que o cânone
artístico, às vezes, se permite dar espaço para manifestações mais
transgressoras. É difícil impor para a arte um controle total - seja moral ou estético
-, pois a arte é um reflexo de um grau de exterioridade, que beira a loucura,
próprio ao artista.
È possível pensar sem enlouquecer?
Gilles Deleuze
Miró é
representado por algumas poucas obras. Seu estilo singular, criado a partir de
uma palheta de cores íntimas, produz um choque contemplativo. Roxo decadente.
Preto de vidência. Branco eterno. Laranja esquizofrênico. O vazio com excesso
de sentidos. Silhuetas mágicas. Linhas que dançam. As linhas de Miró não são
meros artefatos para compor um ambiente lúdico, como muitos críticos da arte dizem, muito menos são o reflexo de
uma dança infantil, como diziam seus colegas surrealistas.
Elas
simbolizam as veias do corpo humano. Veias portadoras de toda a dor gerada pela
consangüinidade primitiva e guerreira. Veias cheias de sangue. E o sangue não
mais como mantenedor da vida e, sim, como expressão da morte. O sangue da
guerra. O sangue que escorre do corpo dos vencidos e que é bebido pela boca dos
vencedores. A Guernica de Picasso, que está no andar de baixo, não se compara à
dor que contemplo nas obras de Miró.
"Se as
portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é:
infinito."
William Blake
Penso
em tomar um ácido ou fumar um singelo baseado, corromper o corpo com um
fantasma quente e psicodélico, mas não, já estou preenchido o suficiente, já
estou extasiado o suficiente, já estou em um estado que a lisergia não poderia
superar. Estou chapado de cara, o que permite o aparecimento de linhas de fuga
com o mero abrir de meus olhos.
Não
sei que horas são. Joguei fora o relógio. Mas não estou perdido, isso apenas
acentuou o grau de absorção da nova realidade, desmascarou o tempo louco que
agora faz parte de mim. Provavelmente, Madri me esperava para formar canais que
levassem para as portas de um corpo que pré-existia em mim. Talvez o corpo que
vive ao lado do infinito.
Novos
passados, vidas não vividas, genes mutantes percorrem o meu corpo em um fluxo
maravilhoso. Nada mais tenho - apenas a sensação de perda constante, perda de
tudo que me fez ser eu. Não tenho mais pátria. Eu sou o filho do general que eu
mesmo venci.
O que
me move é o movimento incessante. A liberdade não poderia ser mais deliciosa e
violenta. Sou um xamã em estado de vidência. Apenas contemplo, não reflito,
experimento. Não sou mais eu que falo, é o mundo que fala, não
por mim, mas em mim. As sensações que me
percorrem poderiam ser associadas à fruição artística. Sou um apreciador de
arte em frente a uma obra prima.
Mal
consigo respirar pela grandeza dessa obra de arte que contemplo e que,
principalmente, vivo. E ela não tem função - arte vagabunda -, pois tudo que
faço é efêmero. Aqui não produzirei raízes. Não criarei nada que seja
utilitário. Não me fecharei em nenhuma estrutura. Sou um anarquista satisfeito.
Sou um estranho receptáculo que abocanha tudo, e digeri e defeca em papel o que
está sendo lido por você agora. Te olhei nos olhos. Sorria. Estamos próximos.
Um pouco mais poderias ganhar um beijo ou um tapa na cara. Não, caro leitor?
"Para
qualquer lugar! Qualquer lugar! Desde que eu saia deste mundo!"
Charles Baudelaire
Encaminho-me
em direção a Toledo. A paisagem flat é praticamente desértica. As formações
rochosas e o solo apresentam uma cor esbranquiçada idêntica a Marrocos de minha
memória televisiva. O céu, talvez pelo clima seco, brilha e apresenta uma cor
azul bebê e pequenas nuvens branquíssimas.
A cidade
fica em uma colina. O rio Tejo a defende em sua parte inferior. Uma ponte secular faz ligação entre a cidade
e sua periferia. Percebe-se que ela foi construída estrategicamente. O ponto
mais alto é composto pela torre do que parece ser uma catedral. A cidade é um
dos centros históricos da Espanha. Ao longo dos tempos, foi fortaleza romana,
capital visigótica no século e capital medieval do país. Sua arquitetura mescla
diversas culturas e épocas. Mas, infelizmente, nos dias de hoje, ela não ficou
ilesa ao capital.
Miríades
de pontos comerciais acumulam a praga universal – turistas sedentos por fotos e
sua necessidade de fugir do presente.
Lojinhas de quinquilharias, bares, restaurantes e lojas de artigos
típicos maceram a harmonia da cidade, impedindo a fruição total do que deveria
ser um patrimônio universal intocável.
Faço
uma visita guiada, pois seria inviável alugar um carro e viajar os quase 150
quilômetros que separam Madrid de Toledo. Alguns turistas me acompanham.
Percorremos algumas ruinhas muito mais estreitas que as de Madri, mas de estilo
parecido. Belos prédios, com mais ou menos dois andares, abrigam residências,
mas o choque visual se apresenta na contemplação das construções de maior
porte, principalmente as igrejas e catedrais.
O contato
com a vida religiosa de Toledo me excita. Sinto que, aos poucos, fico mais
flexível, permitindo-me absorver um tipo de cultura que nunca me interessou.
Paro em frente à Catedral de Toledo. Nunca havia contemplado uma construção
religiosa de tal porte. Noto que a torre que assistia, de longe, faz parte da
catedral – o local mais próximo do céu e de Deus de Toledo. Uma enorme torre
gótica, do século 15, com belos adornos que sugerem espinhos.
Direcionam-nos à igreja de San Tomé. Em sua
parte interior está a obra prima de El Greco, O Enterro do Conde Orgaz. Contemplo a obra, e absorvo o excesso de
símbolos. Céu, inferno, terra, representados em cores nada sóbrias, adornam o
tema, de certa forma, mórbido.
Continuamos
caminhando, rapidamente. Paramos em mais algumas igrejas. Entramos em um museu.
Os turistas que me acompanham parecem nada interessados no que vêem, fazendo
piadinhas sobre assuntos diversos, ou demonstrando-se mais interessados nas
lojinhas e bares que maceram o corpo de Toledo.
Em
determinado momento, quando paramos em uma praça, um grupo de adolescentes
começa a soltar algumas frases em um tom de voz nada baixo. Aos poucos, o tom aumenta e torna-se
gargalhadas histéricas. Quando nos distanciamos, os garotos visivelmente
começam a gritar adeus, em diversas línguas, para nós. Os garotos eram nativos
da cidade, e, com todo o direito, deveriam estar irritados com a nossa presença
e a de todos os turistas que tornam Toledo uma obra de arte deformada.
Sinto vontade de
voltar a Madri ou, quem sabe, me direcionar para Londres, Paris ou para
qualquer lugar do globo. Quem sabe uma tarde high tech em Tóquio, ou uma noite
regada de vinho em Florença, qualquer lugar que me permita viver minha vida
efêmera de vagabundo.
Agora
sei que posso continuar indo para qualquer lugar, tenho esse poder. Não irei
mais me prender em rotas definidas. Voltarei novamente para Toledo, mas
anônimo, anônimo como um vagabundo - sem pátria, sem identidade, com um nome em
constante mutação.
8 Considerações Finais
Talvez
tenha sido inusitado ou, no mínimo, diferente tentar pensar um tipo de
jornalismo a partir de símbolos tão exteriores a ele, como essas manifestações
que trabalhei: a Contracultura, On The
Road de Kerouac, a escola de pensamento de Deleuze e, principalmente, a
arte. Mas é exatamente esse grau de diferença que busquei. Tive a necessidade de extrair elementos e agentes estranhos ao jornalismo, para pensá-lo de
uma forma diferente e, assim, visualizar um jornalismo diferenciado.
De
certa forma, essas manifestações podem ser pensadas como interiores ao
jornalismo. Os Hippies, Kerouac e, até mesmo, Deleuze e Peter Pál Pelbart podem
ser encontrados no jornalismo cultural, mas quis fazer uma ligação íntima e
ativa. Não falei apenas sobre essas manifestações e, sim, as introduzi em meu
jornalismo. Tentei pôr em prática os conceitos dessas manifestações.
Considero
que, principalmente, minha ligação com a arte foi muito mais que íntima. Tanto
em meu trabalho de crítica ao jornalismo dominante, quanto no trabalho em
prática, a arte esteve presente não mais como um interior confortável, mas,
sim, aberta em suas potencialidades, em sua condição de exterioridade.
Quanto
ao Vagabundo ele atravessa todas essas manifestações. O vagabundo pode ser
associado a todas elas como posicionamento frente à vida, ou à obra. Pois como
cito: Jack Kerouac era um vagabundo da
literatura e da vida. Na literatura ele criou uma linguagem sem vínculos a
máquina literária enraizada e uma linguagem tão harmoniosa e fechada em si
mesma. A sua prosa espontânea abriu caminhos pra uma linguagem marginal, em
movimento e sem centro, estranha a toda lógica do academismo literário.
Os Hippies foram os Vagabundos da vida
aprisionada da classe-média. Eles se chocaram contra toda realidade pequeno-burguesa
em um gesto violento: a negação de todos os valores da sociedade adulta a
partir da fuga. Deleuze, que cito em alguns momentos e que esteve presente em
minhas leituras durante a composição da monografia, era um Vagabundo do
pensamento, que apresentou possibilidades menos rígidas e desenraizadas em
diversas áreas. Peter Pál Pelbart seguiu os passos de Deleuze.
Os inúmeros artistas que servem como
referências em meu trabalho, como todo artista que se preza, eram Vagabundos na
arte e na vida. O Gonzo foi o Vagabundo
do jornalismo, fazendo algo que se assemelha a Kerouac, levando o jornalismo
para fora da prisão da linguagem institucional. Já eu peguei carona com todos
esses autores para, como jornalista, cair na estrada e experimentá-la como Vagabundo.
Caí na estrada como um vagabundo para viver o movimento,
para fugir de todos os vícios que me nego a compartilhar. Minha crítica ferina
tentou não se calar por nenhum momento. Ataquei de frente as estruturas
viciosas da mente sedentária das instituições jornalísticas. Mente que cria uma
realidade mascarada e absurda.
Minha linguagem em prática tentou negar todas as
regras e fórmulas prontas. Não há lead, não há rosto paterno, não há centros de
controles em minha experimentação. Meu pensamento tentou ser o mais amoral
possível, anárquico e insubmisso ao grande pai todo poderoso o “jornalismo
dominante”, e não só ele, mas, também, a vida que ele tanto reflete.
Desequilíbrio, libertação e insubmissão a
partir de um espírito que nada difere do espírito do poeta. Jornalismo-poeta. Língua marginal e sem
freio. São tantos os símbolos que vejo ao pensar em toda essa jornada. Símbolos
que me levaram a um extremo. Não irei justificar se o Jornalismo Vagabundo é
jornalismo. Porque não importa. Ficaria feliz se ele não fosse rotulado de
forma alguma, se fosse possível inúmeras nomeações.
Acho
que consegui isso: Um jornalismo livre, em uma metamorfose tão constante, que o
impede de criar uma forma definida. Como a identidade de um jovem que está
sempre em construção, “onde a vida se encontra em estado mais embrionário, onde
a forma ainda não pegou inteiramente.”. (Pelbart, 2004, p. 65)
Identidade
idêntica à buscada por, digamos, Kerouac em sua abertura a devires negros,
marginais, vagabundos; aos hippies e sua negação extrema que os fez cair na
estrada sempre fugindo como ciganos; ou a cabeça do Gonzo e sua metamorfose
drogada.
Gostaria de poder fazer qualquer coisa com o
jornalismo. O jornalismo, por ser uma estrutura tão estagnada, por me oprimir,
me impõe esse desejo tão radical. Mas é claro que esse desejo é simbólico,
pois, na verdade, tentei descobrir novas saídas e entradas no jornalismo, como
um Vagabundo que descobre novas saídas e entradas para cidades já conhecidas.
Trouxe os sonhos para linguagem, pois os sonhos permitem
potencialidades impossíveis na mísera condição humana. Ou melhor, permitem
devires possíveis e potencialidades isentas da prisão da realidade dura.
Tentei criar e
buscar outros reais, outras vidas. Como já citei: Não seria apressado dizer que
a vida é apenas o que é conhecido (conhecimento, em boa parte, criado pelo
jornalismo)? Quantas artes são feitas agora e não são apreciadas? Quantos jornalismos nasceram e morreram no
último século e não foram vistos? Quantas realidades escapam?
Como eu negaria formas de arte, manifestações culturais,
vanguardas e bens culturais que estão a minha disposição. Por que não
usufruiria deles? Fiz tudo isso para tentar fugir da linguagem prisão da
vida prisão, dos clichês, da realidade simples e redundante. Será que consegui? Acho que sim.
Mas é
claro que não cheguei a grandes conclusões. Não há moral da história. Meu
trabalho não tem fim, seu início apenas faz parte de um processo. Havia um
grande ideal, sair do grande jornalismo como eu disse, mas isso não deveria ter
me importado.
A narrativa que cito, esse gênero tão liberto
e atual que nem mais é um exterior na literatura, faz isso. A garotada em blogs
faz isso. Mas, infelizmente, tive que atacar o jornalismo, pois ele é um
símbolo poderoso. Como tive que atacar os centros de controle da vida por
simbolizarem o mesmo. Estou feliz com esse ensaio longo, poético, mas também
didático, sem provas cientificas, filosófico, amoral, que defende meu ponto de
vista pessoal. Não apresentei provas empíricas ou de caráter cientifico, mas
acho que não precisava.
Referências
CZRBONAI, André Felipe
Pontes. Gonzo o filho bastardo do New Jornalism. Monografia apresentada no
site:
DELEUZE, Gilles. Mil platôs. Traduçao de Aurélio
Guerra Neto. São Paulo: 34, 1995. 93p.
HOME, Stuart. Assalto à
cultura. Tradução de Cris Siqueira. São Paulo: Conrad, 1999. 198p.
KEROUAC, Jack. On the road. Tradução de Eduardo Bueno. Porto Alegre: L&PM, 2004. 380p.
KLINGSOHR-LEROY, Cathrin. Surrealismo. Tradução
de João Paiva Boléo. Koln: Taschen, 2004. 95p.
LINS, Daniel. O artesão do
corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. 134p.
PELBART, Peter Pál. A vertigem por um fio. São
Paulo: Iluminuras, 2000. 221p.
ROSZAK, Theodore. A
Contracultura. Tradução de Donaldson Garschagen. Rio de Janeiro: Vozes, 1972.
301p.
SCHURIAN, WALTER. Arte
Fantástico. Tradução de Pablo Alvarez. KOLN: Taschen, 2005. 95p.
VÁRIOS AUTORES. Alma Beat.
Porto Alegre: L&PM, 1984. 185.p.
WHITMAN, Walt. Folhas das
folhas da relva. Tradução de Geir Campos. São Paulo: Brasiliense, 1983.141p.
WOLFE, Tom. Décadas
Púrpuras. Tradução de Luiz Brandão. Porto Alegre: L&PM, 1989. 491p.
[1] estilo
literário e comportamental que aparece na década de cinqüenta, nos Estados
Unidos, e que teve uma repercussão imensa em todo Ocidente, pois foi o primeiro
grupo a ter tiragens de livros de poesia que chegaram a milhares, além de ter
como seu maior expoente, Jack Kerouac.
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