sexta-feira, 29 de junho de 2018

......

O texto é um exercício de esquizoanálise, ou seja, cartografia, transversalidade. O atravessamento não está só nos temas, mas também na narrativa, que é filosófica, científica, literária. Na verdade, não é filosofia nem ciência, é arte, e não é arte é comedicidade, riso de satã. Ficaria feliz se fosse lido como uma ficção, uma mentira, algo diabólico, enganador. O texto pensa em N mundos, N tempos-espaços, devires, a partir da percepção molecular e critica o bom senso que se centra em um único mundo, sustenta a ciência, insiste que Deus não morreu, cria uma narrativa negativa referente ao satanismo. Os temas e conceitos presentes são: acontecimento, maio de 68, anarquismo, guerrilha, drogas, sonhos, delírio, família, gêneros, sexualidade, corpo, queer, cultura pop, arte, mitologia grega, guerra, Estado, orientalismo, ecologia, história, humanismo, psicanálise, minorias, palavras de ordem, cidade, juventude, satanismo, cristianismo, bruxaria, shamanismo. Ele não foi pensado previamente, não sabia o que ia acontecer, ele foi se criando e tomando forma; mas como digo: não é espontâneo e talvez tenha de certa forma se criado sozinho, melhor, pelas legiões que pertenço. Os símbolos e a narrativa cristãos presentes se referem à comedicidade que acompanha meu trabalho. Falar em Deus, Cristo, em demônios é uma piada, que não tem como objetivo ferir a aqueles que ainda acreditam em Deus, já que são poucos. Uso esses símbolos para compor a narrativa, a fábula, a história. Porém, busco dar novos delineamentos para o conceito de demônio. O demoníaco se apresenta como crítica ao senso comum e o bom senso. O demônio no texto não é um ser de outro mundo, não se dicotomiza com o Deus de outro mundo, ele é um agente, um devir, materialista, ou seja, deste mundo.  


O acontecimento. A impossibilidade de se entender o acontecimento quando está acontecendo. Os sentidos do acontecimento necessitam de tempo, por isso a arqueologia e a genealogia são mais fáceis que a cartografia. Além disso, quando se dá o sentido pode não ser realmente entendido, já que é difícil notar o molecular. A pergunta: “o que realmente aconteceu?” pode dar medo já que sabemos, de uma forma ou outra, que forças subterrâneas estão presentes no acontecimento e, mais, que elas podem criar o acontecimento. O devir, monstruoso, demoníaco assusta, ele mostra o caos, o qual rege o mundo, e por segurança nos prendemos no obscurantismo religioso cristão ou na ciência. O satanismo é obscuro, mas outro tipo de obscuridade. O cristianismo é baseado nas paixões tristes, ninguém pode ser feliz, todos devem purgar seus pecados e punir os pecados dos outros, tudo é pecado. O satanismo é erótico, é Eros, erotiza até mesmo a morte, Thanatos. Para os satânicos Eros e Thanatos estão sempre em núpcias, núpcias demoníacas; os devires são as núpcias demoníaca, não a filiação, o pai e o filho, Deus e Cristo. Satã é o filho rebelde, não há um Deus do inferno, e ele não é três, não é o pai, o espírito santo e o filho abandonado. Satã é o filho rebelado. Quando a criança coloca o dedo dentro do nariz na mesa na hora da oração, é a atualização do demoníaco que sempre esteve presente nela. O que realmente aconteceu em 68? O que aconteceu em 2001, o que aconteceu em 2011 e 2013. Deleuze, Negri e o coletivo da Uni Nômade viveram os acontecimentos e os atualizaram no campo do saber. O acontecimento necessita da vivência dele, de uma subjetividade molecularizada a partir do contato com o caos, de uma percepção demoníaca, da vitória do terceiro olho frente ao grande irmão. A longa preparação a partir da vivência dos acontecimentos, do contato com o caos possibilita então rastrear, tatear o que não é visto; e a ficção, quando se ficciona o acontecimento, depois de atualizada pelo saber pode muito bem se tornar mais interessante que a dita “narrativa do real”. Não era ficção, era o registro da temporada no inferno, a escrita de Satã; a ficção assim se revela como a outra face, a outra cabeça, já que somos monstros, temos duas cabeças que não se dicotomizam. Duas cabeças que são N cabeças, dragões de múltiplas cabeças; múltiplas cabeças e uma só é a cabeça de Deus, da ciência ou do bom cidadão. Temos múltiplas cabeças, mas pensamos que só temos uma. Vivemos em muitos mundos, mas só percebemos um. Nesse mundo há o material, o céu e o inferno. Mas o mundo de Satã são N mundos, os N mundos, a morada de Satã, e ele, como disse, não é um, mas bandos de bandos, legiões de legiões, multiplicidades que não se esgotam nunca; e a multiplicidade, o devir, a soma, a conjunção, tudo isso é reduzido pelo bom senso. Dizem sempre: eu sou eu, eu sou aquele, eu sou um organismo, um sujeito individuado – palavras de ordem daqueles que não entendem uma frase simples: somos legião! Klaus Kinski entrava no personagem e demorava muito tempo para sair dele. Ficou um ano agindo como se fosse Cristo. Se Cristo fosse Kinski, não teríamos entrado na era cristã, teríamos ficado no nosso tempo-espaço de origem, o caos, a anarquia, o inferno. As forças da vida são primeiras como diz Negri, e o único universal é o devir como diz Deleuze. O inferno, o caos, é o início, a era imposta pelos cristãos é a fotografia, o impedimento do caos. A guerra santa, a inquisição, o nazismo, a guerra que atravessa a história, os Estados Unidos de Bush, não são demoníacos, são cristãos, são demoníacos apenas a partir da dicotomização cristã. Vlad Tepesh se torna potente quando larga a violência cristã, e vive (morto) pelo amor. O algo de demoníaco na paixão triste, na violência cristã, é o riso sarcástico frente a ela. Satã pode até influenciar na guerra, ajudar que ela seja realizada, pode estar nas costas dos reis, papas, imperadores, inquisidores, das massas os condicionando para a guerra, mas ele faz isso para mostrar ao mundo a sujeira cristã e humana. Mostra que o homem é sujo, que mata os seus, mata qualquer um por poder, por matar. Os avanços científicos, a ciência, o campo do saber, a tecnologia – tão cultuados, o que nos ajudou a sair da escuridão do medievo – só aconteceram já que necessitávamos de instrumentos para destruir reinados e nações. A ciência nasce como paixão triste e se desenvolve como paixão triste. A tecnologia digital e a internet foram criadas pelas mentes maravilhosas de cientistas do Estado, e o Estado faz a guerra. A Guerra Fria criou a internet. A negação da tecnologia remete a um estado natural, de “boa” selvageria, e chamam-na de apocalíptica. Sim, é, mas nos termos cristãos, é o apocalipse de João, a danação, os sete anos de luta que nos levará de volta ao manto do nazareno – porém, o manto do nazareno na ótica satânica é o objeto de vitória de Satã. O ludismo não é a boa selvageria, nem o desejo de retorno a terra sagrada, não é arcaísmo, mas desejo de cair fora, de menos, menos consumo, menos guerra, não é a simplicidade, mas a complexidade de vidas que negam a morte e lutam pela vida. Alex SuperTramp tenta sozinho e morre. Os Sadhus lutam em bandos e estão vivos, mesmo que o Kumbh Mela seja espetáculo. Punks estão nas ruas vivendo como ratos. A tecnologia é usada pelos hakers contra os Estados. Os grandes criadores da tecnologia digital eram filhos da Era de Aquários, aqueles que amavam a natureza, a qual foi morta; eles choravam pela morte de Pachamama. Não há retorno à natureza, ela está aqui em nós, já que somos animais. Amar a natureza é amar uma das cabeças presentes em todos. Os índios morreram já que não queriam a morte cristã e muito menos a civilização. Morreram, mas estão em nós, por isso todos somos shamãs. Todos somos Legião, e ela é composta por animais, tecnologia, homens, em ambiente múltiplos, e o tempo dessa legião, são N tempos, ou seja, corpos sem órgãos habitando a virtualidade temporal. O terceiro olho é a tecnologia que possibilita vislumbrar tudo isso, e após a percepção...bem, isso permite que vivamos mais facilmente em outro, outros mundos, sempre presentes. Quando ele, o terceiro olho, é aberto, sabemos que a palavra de ordem: “eu sou alguém que vive em determinado espaço e tempo”, é uma piada. Satã estava presente quando essa frase foi criada, ele não só ri dos humanos apegados ao senso comum, ele o cria, cria o senso comum para contemplar depois esse apego. Os humanos, como eles vivem, suas crenças são o objeto de riso de Satã. A guerra como disse é objeto de riso de Satã. Sim, eles se matam, matam a si mesmos, e dizem que se amam. “Amai-vos uns aos outros se odiando”, Satã não escreveu essa frase, mas a revelou, tornou-a visível. A loucura de Nero, por ser loucura, não era apenas um reflexo do satanismo cristão, ela era erótica, Roma queimava e ele tocava violino. A loucura de Calígula também era erótica. O desejo de poder pode ser algo demoníaco, desejar estar acima de todos e destruir todos já que todos são assassinos. O humanismo é falso e tem que ser re conceituado. Lutar pela vida de todos é uma falácia. Matar para punir, matar em nome da lei, da lei natural e da lei dos homens, isso é parte da sujeira do cristianismo. Mas matar por matar, sabendo que quem é morto é alguém já morto, alguém que ama a morte, não matar para punir nem por vingança, mas usar esse corpo para produzir um acontecimento... isso é a morte como uma bela arte. Os conspiradores, em nome de boas causas, eram obrigados a matar em nome da vida, e esse tipo de assassinato é diferente do assassinato do Estado. Não há diferenças de natureza entre os dois tipos de assassinato, mas extensivamente há uma diferença, de grau, que torna louvável o assassinato pela causa. É impossível não usar as armas do inimigo, já que o homem é o inimigo, e todos somos homens. O suicídio é considerado como algo negativo, já que todos são mentirosos, falsos, sabem que matam, que cometem a morte baseada na paixão triste; e o suicídio é uma morte, um assassinato honrável, o suicida mata a si mesmo não os outros – sim, os homens odeiam coisas simples como dignidade e honra. O homem bomba mata os outros para voltar ao bom mundo, nega esse mundo e os que vivem nele. O cristão comete sua sujeira em vida, se arrepende e volta para o bom mundo. Isso permite com que o mundo seja o que é: a naturalização da guerra constante, do ódio; eles podem fazer de tudo já que se arrependem depois. Satã não é ódio, mas o riso a partir da contemplação do ódio. O cientista não ri, ele não é satânico, a arte ri, ela é satânica, a ficção é um tipo de piada, piada satânica. A ficção é a mentira, a falsidade, mas não como paixões tristes, não existem para enganar e matar, isso faz a ciência, que cria a guerra. Usam Deleuze como base da ciência, mas negam o mais importante em sua obra: o riso de satã. Cristianizam Deleuze, já que eles não dançam, os cientistas nunca dançam, eles tem o cú de ferro, estão sempre sentados. Deleuze era uma bailarina, fazia um balé sem palco italiano, sem a dor da estratificação do corpo, a destruição do corpo para manter a posição rígida, isso faz o cientista sentado, vendo um foco mínimo de luz. Os nazistas estratificavam o corpo ariano, criaram a postura perfeita, a acentuação do corpo dos sujeitos das legiões romanas. O balé estratifica o corpo feminino da mesma forma que a militarização estratifica o corpo do homem. O homem da ciência foi quem criou esses corpos, e os românticos, sendo Deleuze um deles, dançam um tipo de dança diferente, a dança de Pan, de Dionísio e sua Bacantes, das bruxas nuas na floresta. Nero estava dançando ou tocando violino quando Roma queimava? A dança de Calígula fazia os legionários rirem, já que eles desejavam outra relação com o corpo. Estratificar Deleuze, crer que Negri é um filósofo do Estado... Os anarquistas acreditam em Negri e Deleuze, e eles os sensualizam já que acreditam na vida. Os anarquistas percebem exatamente a vida em Negri e Deleuze. A percepção anarquista é mais importante que a obra dos dois. Em termos cristãos é uma blasfêmia, uma heresia o que os acadêmicos fazem com Deleuze e Guattari. Eles não ouvem a música de Mil Platôs já que não dançam. Como criar para si um Corpo sem Órgãos, des estratificar o corpo, abrir o terceiro olho, fugir do grande irmão? Como sentir as moléculas do corpo, sentir a superfície da pele a considerando como o mais profundo? A pele dele ou dela não como parte de um objeto, o sexo objetificado, que imita o copular dos pets, mas uma das linhas mais importantes do corpo amoroso. O Corpo sem Órgãos é amor, é o amor, e quando ele se resume a dois, isso é uma palavra de ordem do grande irmão, que odeia o amor. As legiões, os possíveis, que nos habitam e se tocam em um gesto simples: colocar as mãos dela em meu coração, sabendo que o coração é só uma metáfora. Baudelaire assassinou o próprio pai inúmeras vezes em mesas de restaurantes para rir de todos. Sim, eu sou um parricida ele dizia, e todos ficavam horrorizados. Ele fazia isso para Satã rir, e Baudelaire já era Satã. Os ovários são laicos, mas o cú é satânico. Rimbaud amava o cú de Verlaine, e a poesia sobre o cú de Verlaine era uma piada satânica; piada matadora é o nome de uma banda inglesa, filha de satã. Palhaços assassinos, como os vocalistas das bandas Alien Sex Fiend e Cinema Strange; os dois personagens mais engraçados do humor atual, um bebê e um alienígena são assassinos. O riso e o assassinato conjugados compõem uma núpcia demoníaca: palhaço assassino, aquele que faz a Killing Joke. O homem da guerra não ri já que não caga, ele é sério já que tem o cú de ferro, dama de ferro, como o cientista. O cientista bebe tanto, não por que é um romântico, mas exatamente para poder cagar e rir. Quando ele bebe, ele consegue, mas seu alcoolismo se origina da paixão triste, só consegue ser feliz na tristeza. Bukowski não bebia, o estado alcoolizado era seu estado natural. O vinho como sangue de Cristo é a imposição cristã, o vinho como sangue de qualquer um diz respeito ao assassinato satânico que é uma piada: matar um zumbi, um morto, alguém que ama a morte. Mac Beth foi iludido pelas bruxas, elas que fizeram ele se destruir; ele amava tanto a si mesmo, o poder, merecia ser destruído. As bruxas são os canais, os portais dos súcubos. As bruxas estão sempre grávidas trazendo ao mundo seres satânicos. Os românticos são filhos das bruxas, que são filhas de Satã. O homem comum é filho da puta, é Édipo. Jocasta se mata já que todos iriam saber quem ela realmente era, uma puta. E o bom cidadão deseja isso, uma casa, um território mínimo, no qual ele e ela são os reis sempre. O teatro de Édipo é uma piada satânica, satã ri de Édipo, Deleuze como um demônio nos presenteou com esse riso, o riso do complexo de Édipo. Mas quando se tira as razões pessoais de Édipo e ele vira um agente político percebemos a potência da vida: não desposar a mãe, mas simplesmente matar o pai. Aliás, matar também a mãe, matar o rei e a rainha, destruir o estado e fazer a anarquia, o projeto da anarquia. “Anarquia como projeto, caos projetado”, conjunção de linhas de naturezas diferentes, núpcias demoníacas, frutos do riso de Satã. Para Baudelaire suas paixões eram as prostitutas já que elas são dignas. Indigna é aquela que dá o corpo ao homem para ser respeitada pela sociedade e nega que é uma puta. A puta deixa claro que é uma puta, a esposa esconde de todos que é uma puta. A puta satânica, aquela que ri da sociedade, a puta cristã, aquela que peca e chora ao se ver no espelho. No mundo infernal não há putas, já que todos que o habitam não tem corpo, não possuem corpos, são linhas de Corpos sem Órgãos e ninguém é dono de um Corpo sem Órgãos. O presidiário é uma puta, o corpo dele não é mais dele após a primeira noite na prisão. As leis, a moral, colam a culpa e a vergonha no presidiário, mas se ele não é moralista é alguém louvável. O sexo livre era uma das marcas da era de Eros, e o sexo livre é algo satânico: a importância do comunismo do corpo contra o individualismo capitalista. Por isso, que os Estados comunistas (mesmo os apenas desejados) não entenderam nada do comunismo, o tornar comum, pensavam que a vida se reduzia a economia e política. O comunismo do corpo é micro político. Negri radicalizou o conceito de comum; o nosso comum se realiza quando somos legião; na era de Eros o sexo livre era feito por legiões em leitos que eram Corpos sem Órgãos. A – Quem é você? B – Eu sou Ninguém. A – Não eu perguntei como você se chama. B – Eu me chamo Ninguém, sou Ninguém. A nobreza punk, ser um punk um, qualquer um, ser Ninguém. Punks eram assim chamados os que eram currados na prisão. A dignidade dos punks. Eu sou uma puta mexicana barata. A despersonalização é demoníaca, e nesse caso, no caso do punk, é uma piada. Talvez por isso que o punk tenha sido principalmente inglês, já que eles têm esse humor peculiar, riem facilmente de si mesmos. Saber que se é uma piada, que a vida de bom cidadão é uma piada: nobreza dos punks. Lars Von Trier fez isso em Idiotern, rindo da boa democracia escandinava que não garantia muita coisa. Os Black Metals escandinavos queimavam igrejas, eram violentos, não conseguiam rir, muitos eram fascistas. Eles desempenhavam bem o papel de cristãos. O bom senso diz que uma meia é uma boceta, mas o louco diz que uma meia é uma rede de bocetas – isso é uma piada satânica. O cú da mulher para o bom senso é o cú do melhor amigo, ou do filho, mas para o presidente Schreber o cú é o sol iluminado. O terceiro olho para ele é o cú. Glorificado cú, cú sagrado, consagrado, cú satânico. A virgem Maria tinha um cú. Sim, ela o dava sempre, mas como só dava o cú permaneceu virgem; depois ela virou Maria Madalena, mas no inter meio ela gerou Cristo. Cristo foi crucificado pela própria vontade ao saber que mamãe dava o cú. O filho ouve a mãe dando o cú e pensa que ela está orando, então ele começa a orar e passa a ter doces sonhos com um cú. “Deus nasceu da cloaca do homem” como diz Artaud. O ciclo anal dos queers é o ciclo que rege a lua. O queer não tem mãe nem pai, tem apenas um cú. O cú para os queers, para o monstro, obviamente não é edipinizado. A mulher, o índio, o oriental, o gay sempre foram vistos como agentes perigosos, demoníacos. Shamãs da América latina, do oriente, religiosos negros, mulheres bruxas, para a mentalidade dominante, deveriam ser destruídos por serem diferentes, ou seja, demoníacos. Chamam a mulher possuída de neurótica, mas ela não é neurótica está sim possuída, ela é demoníaca. O demônio não é homem nem mulher, mas algo presente em certos seres. O demônio é devir, ele pode ser uma tempestade, uma bruxa, um artista. O queer é o que de mais demoníaco existia até que queer virasse moda, como virou a cartografia, a transversalidade, as cores do mundo. A mulher se torna homem e deixa de ser bruxa, mas algo de sua bruxaria está presente nos homens, em todos. Quando um fora é capturado, é tornado dentro, o fora nos habita, é o fora em nós. Esquizo análise (ANALlise) é a louca análise, análise dos loucos, que são videntes, sobre a sociedade. Psico análise analisa os loucos, tentando os tornar racionais. O poder vê o caos e tenta o destruir, mas não sabe que a destruição é filha do caos, assim age em nome do caos. A ciência tenta regrar o caos, ou seja, tem uma relação com o caos, e na relação com o caos, ele, o caos, fica presente na ciência. Não há como fugir do caos. O caos da mente de um bebê, da mente de um primata, da mente de uma serpente. A máquina criada pelo homem que é caótico é caótica, tem algo de caos nela. Por isso, todos temem que a máquina irá destruir o homem. A fuga do caos criou a sociedade moderna por uma paixão triste, um ódio de algo em si mesmo, o caos. O homem se olha no espelho, e odeia algo que vê: o caos. O homem acentuou o poder da máquina para fugir da parte que odiava em si mesmo, o caos, a natureza, mas a máquina por desejo, já que era fruto do homem, então algo desejante, mostra ao homem que ele vai ser destruído pela destruição que sempre gerou. O corpo é sujo para todos, odeiam seu corpo e o corpo dos outros, odeiam o que chamam de organismo. O corpo queer odeia o organismo e não ama seu corpo, mas o deseja como ele é: sujo e impuro. Os palavrões são palavras de ordem, que mostram o ódio ao corpo: que merda. Cuzão. Vai se foder. Te fode. Bundão. Boceta. Caralho. Mijão. Vai tomar no cú. Porra. Merda. Boceta cabeluda. Escroto. Chupa aqui. Punheteiro. Tudo isso mostra como o corpo, o sexo são base de fantasmas, de ódio, de repulsa. Um cú é objeto de ódio. A mulher não consegue transar, se sente mal, nem se masturba; as menininhas se sentem putas por beijar mais de um cara. Fazem a festa e depois a ressaca. A esposa que é puta na cama, mas no espaço público é a santa. Os fanáticos religiosos que trepam, fazem 69, mas se dizem puros. Se soubéssemos o que nossas mães fazem na cama nunca as beijaríamos no rosto. E fazem tudo isso e nem notam, não notam a si mesmos, já que acham que não sabem o que fazem, não pensam no que fazem, não tem controle do que fazem. Sublimam seres puros como crianças, vovozinhas, unicórnios, amam a pureza de filmes puros, mas fazem sujeiras na cama e demonizam os seus por fazerem sujeiras na cama; eles não se notam. “Minha mãe é uma santa, um anjo”, diz um personagem de Sin City; mas a mãe dele era uma prostituta na vida real; e qual o problema em ser uma? Elas são dignas, indignos são os que vendem o corpo por segurança, para manter as coisas como são. Espectralia. É a cidade dos espectros que co existe com a urbe. Não é a rede digital, não é o campo, a natureza, nem a metrópole, muito menos a necrópole. A espectralia é a cidade dos afetos, dos delírios, do desejo, dos sonhos. É o subterrâneo, talvez Hades, talvez o que chamam de inferno, ou mesmo de céu, é um ambiente em que a morte está presente, considerando “vida” um outro tipo de morte, a vida de zumbis, que negam quem são. A espectralia não tem prefeitos, nem gestores, nem cidadãos. O “cidadão” da revolução francesa apenas a contemplou após conhecer a máquina do senhor Guilhotin. A espectralia não tem trajetos determinados, já que, como disse, não é dominada por comando superior. Ela reúne inúmeros corpos sem órgãos, não todos, mas os possíveis na cidade. Há espaços na cidade que são portais prontos para levar qualquer um para ela. Uma cama, uma praça, uma mesa de bar, melhor um banheiro de bar, um buraco na rua, uma tenda na rua, o carrinho de um morador de rua, são portais para espectralia. Todos sonham, não podem fugir dos sonhos, e os sonhos são parte da espectralia. Às vezes isso fica óbvio quando sonhamos com a cidade. Pensar nos sonhos como uma mancha negra a ser limpa para entender a si mesmo, se encontrar, ou seja, interpretar os sonhos, é negar a potência deles. A interpretação leva a outras interpretações, e, no fim da vida, o idiota não quer morrer já que nunca vai ter alta do divã. Ele precisa continuar interpretando, esse é seu vicio; mas os sonhos como superfície, perceber suas imagens, sons, afetos, como eles são diferentes dos normatizados, entender que é uma realidade em si mesma, é aceitar, amar sua potência. Para o homem dominante, o morador das cidades, os sonhos habitam espectralia. Para um monge em retiro, para o eremita do campo, povos aborígenes não civilizados, para eles os sonhos provavelmente levam a outras ambiências e não para espectralia. Certas tribos indígenas narram os sonhos para os seus, já que não os consideram como algo pertencente a um sujeito e seu buraco negro. Espectralia não é a cidade perdida, não é origem nem destino, é devir. A cidade, a cidade como modelo, é a cidade dos mortos, dos zumbis, é a necrópole. A cidade dos espíritos é mais próxima da vida do que a necrópole. Não há vida na necrópole, e quando há vida nela, essa vida diz respeito à espectralia. Espectralia não é a utopia, o bom futuro, é a vida atual que agencia tanto a potência da vida quanto o esgotamento dela, a morte. Suicidas, seres violentos, serial killas, loucos, também habitam espectralia, como os amantes da vida, os dãndis, os apaixonados, os iluminados, os artistas, e eles, os amantes da vida, podem ser também amantes da morte, da violência, do suicídio. A cartografia mostra a impureza da vida, a necrópole e a espectralia em conflito. A música, a arte sem materialidade, vive em espectralia. Alguns filmes habitam espectralia; algumas pessoas só conhecem espectralia já que nunca viveram a vida de todos na urbe; outras são apaixonadas por seu ambiente, então chamam Dionísio, os xamãs, os curandeiros negros para que eles as levem até ela. O barqueiro do Estige é um curandeiro, um xamã, mas quem atravessa o rio tem que pagar um preço. Poucos entendem o número vinte sete: dois sete é quase três sete, e três sete é vinte um. Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin (um triplo J, o J tem o som de I em muitas línguas, e I é a nona letra, 9 é 2 sete) morreram com dois sete, e depois do dois sete veio o três sete: a morte. O 21 é o fim do jogo, a cartada final. Sim, a morte é o ambiente no qual espectralia é mais uma das suas linhas; e estar em espectralia é estar morto, mas vivo, ser um undead, um vampiro, como cantava o Bauhaus. Os góticos amam espectralia, encontram nela Thanatos, o spleen; os hippies foram os primeiro em massa a conhecer a fundo espectralia; já os punks atuam nela com um afeto não místico, eles são materialistas ao extremo, mas sim violento; todos eles, a partir de seus afetos, o amor, o desejo da morte, o ódio, foram forjados em espectralia. Sim, forjados como arma, já que eles são armas contra o bom senso. O punk, o hippie e o gótico, quando surgiram, caminhavam pela necrópole, mas estavam em espectralia. Eles permitiam para os bons cidadãos ver algo possível apenas pelo terceiro olho, já que eram monstros, fantasmas na rua, e por isso também portais para a cidade dos fantasmas. O bom cidadão tinha medo não do que via diretamente, um monstro, mas exatamente medo de ter esse contato direto com a outra cidade. Se drogar, fazer uma bela festa e depois sentir a ressaca é estar em contato com a morte por se estar dentro de espectralia. Morrer não significa se mudar para espectralia, mas sim apenas morrer, e ninguém sabe ao certo o que é a morte, mas muitos sabem muito bem o que é espectralia, que é um ambiente também da morte. Os garotos tomam ácido em plena rua e logo após estão em espectralia; continuam tomando e tomando, muitos viram cães de rua, outros viram cães famosos, como Júpiter Maçã, Arnaldo e Sid Barret. Kurt Cobain, que morreu com 27... sua representação em Last Days o mostra como alguém em outro mundo; no filme, em determinado momento, ele está de pé, parado, e vai caindo lentamente, essa cena dura e dura radicalmente. Jimmy Page, na sua fase mais pesada, às vezes demorava uma hora para ir da cama até a porta do quarto de hotel. Os olhos vermelhos de Pink em The Wall é a representação mais real de alguém completamente chapado, nunca foi visto olhos tão vermelhos na história da cultura pop. Pink estava em espectralia, como o Kurt de Last Days e Jimmy Page. Ozyy Osbourne simplesmente desapareceu em uma turnê, todos pensavam que ele estava morto, mas estava desmaiado no quarto de hotel, adormecido em espectralia. Os viciados em heroína adormecem em qualquer canto: Stiv Bators apaga em cima do prato de sopa; Iggy Pop, ao lado de Bebe Buel, pela cidade, letárgico; Jim Carroll sonhando em plena sala de aula. A heroína, a narcose dela é espectralia, mas não só ela, o álcool também: viva o coma alcoólico! No início dos 90, em Porto Alegre, de manhã cedo, no fim de semana podiam ser contemplados jovens e mais jovens dormindo na frente dos bares do Bom Fim. Casper, o fantasma camarada, personagem de Kids, bebe, usa drogas, transa com uma amiga adormecida e acorda nu depois sem saber o que tinha acontecido. Burroughs, como personagem em Naked Lunch filme de Cronemberg, nunca se recorda no que aconteceu no dia anterior. Burroughs, na vida real, encontrava seus textos e não sabia se ele quem realmente tinha escrito, possivelmente talvez tenha sido algum fantasma de espectralia. A narcolepsia do personagem principal de Private Idaho... ele simplesmente apaga e dorme em qualquer lugar na cidade, melhor, de espectralia. Sonho é irmão da morte, sonho e morte são duas temporalidades sempre conectadas. A heroína é a droga preferida pelos punks realmente punks, e talvez sua narcose revele de forma mais clara espectralia. Demora pelo menos duas semanas de uso contínuo para ficar viciado, e depois de ficar viciado, nunca mais se deixa de ser um. Duas semanas de uso, de contato extremo com espectralia, faz com que se fique preso nela, até a morte. O som punk, violento e sujo, parece mostrar melhor a vibe, o vício em heroína; heroína é chamada de lixo, e o punk é um lixo; mas é estranho uma banda tão para cima como o Happy Mondays ter um vocalista viciado em heroína. O hospício e a prisão estão na cidade e são portais para espectralia. A cidade da peste de Herzog, a cidade da peste de Da Vinci, a cidade da peste dos crakeiros, não são espectralia, mas também são. A cidade limpa, dos corpos limpos, das pessoas de bom gosto é a negação da cidade dos espectros. Mas sim, o hipster também enlouquece, toma suas drogas que não são apenas maconhas gourmets, ele sonha, delira, ele faz isso pra fugir da cidade dominante. Estar em espectralia é sair da mediatização da vida, é viver a vida. Muitos conhecem a vida apenas de forma midiatizada; para eles a vida é espetáculo. Viajam para conhecer espetáculos que já conhecem, o modelo de cidade. Os smart phones talvez tenham trazido a massa para as ruas, o que não era permitido pela televisão e o PC, porém a massa nas ruas, não as contempla, mas sim seus smart phones. Muitos cientistas negam ver as ruas, viver elas, então escolhem como objetos o que está atualizado em livros, documentos, mídias, etc; mesmo certos etnógrafos urbanos criam um bloqueio entre vida e pesquisa, eles estão nas ruas, mas não como pessoas comuns e sim como pesquisadores. Passaram a vida toda pensando que sexo são tarinhas de almanaque, que política é voto, que arte é qualquer coisa em um museu. A bunda queima, deve queimar, é algo simples, mas para muitos a bunda queima já que leram nos almanaques sobre os métodos para apimentar a relação. Em espectralia não há vagina nem pênis, apenas múltiplos cús, o Deus Cú, que é o comum sexual de todos. O machista pensava que não tinha um cú, as mulheres e as crianças riam dele, ele era a única pessoa do mundo que só via o cú dos outros. As mulheres e as crianças quando falam não rosnam, nem enchem o saco, elas podem falar e muito bem de espectralia, mesmo que muitas vezes rosnem e encham o saco. Elas se forjaram ali, sempre falaram da bela cidade, mas o macho sem cú não ouve, nem sabe que sua merda faz barulho quando chega em qualquer lugar. Ele só sabe fazer merda, mas é tão cego, tão insensível que não percebe. O padre mentiu também que não tinha cú e um cú satânico. Mentiu, mas todos sabiam que se tornou padre pra comer e dar o cú, sua vida de vergonha. O assassinato é a imposição, o poder que se quer como poder mata quem não quer morrer. Na espectralia o assassinato é consenso entre os pares, nunca uma forma de vendetta. V de Vingança é a espetacularização dos anonymous, dos espectros. O noise, a visão borrada, o gemido, o tiro sem dono e alvo, a drag queen, o queer, o anormal, os anômalos, o punk, o trovão causado por um bocejo, o bater de asas da borboleta que causa a excitação da massa, tudo isso concerne à espectralia, a cria. Talvez espectralia seja a real cidade que vivemos, nunca saímos dela, sempre estivemos nela mesmo quando não existiam cidades. Alguns têm que correr atrás da cidade dos espectros já que só vêem o coelho negro correndo, outros ficam parados, estáticos, mas explodindo de vida já que entram na cidade fantasma a partir do tédio e do bocejo. Românticos. Classe de demônios, filhos de Dionísio. Os românticos são os marginais que tem como foco de produção a arte. Eles não separam vida de obra, e assim criam obras que chocam com a moral dominante. Podem ser considerados Diablos, porém são mais especificamente um tipo de Diablo. Muitos deles atuam em um campo com visibilidade exatamente para atrair, capturar subjetividades, ou aquilo que chamam de alma. O romântico pode ser pensado não apenas como sujeito, amoral e não sujeitado, mas como devir; então romântico se refere a existências diferenciais que habitam espectralia. Há algo de romântico em todos, e romântico não é romance, mas também é. Os anarquistas pós-modernos. São demônios radicalmente materialistas, são atualizações do demônio Legião. Ganharam visibilidade no pós moderno por suas atuações em rede. Sua ação tática nasce com os românticos modernos. Eles atuam na cidade, são meio punks, meio hippies, meio guerrilheiros urbanos. Sua produção desterritorializa a cidade, ou seja, produzem focos de espectralia, vistos nas ações dos blac blocs, nas ações lúdicas, nas okupas, nas manifestações. É um agente político, não romântico, mas há algo de romântico no anarquista.  O policial corrupto. Ele é um dos instrumentos do grande irmão, porém possui algo de diabólico, já que age na borda entre legalidade e ilegalidade. O guerrilheiro urbano fazia o mesmo, atuava legalmente nos movimentos estudantis, trabalhava, mas tinha uma outra vida, lutando contra a ditadura. A questão é que o policial tem elementos satânicos, mas do satanismo criado pela moral cristã: é mau, odiento, odeia os fracos, os preceitos da teologia da libertação, quer poder, dinheiro. O guerrilheiro é satânico já que busca a destruição de símbolos dominantes. Queer. É filho de Baphomet como apresentado por Eliphas Levy. É um dos monstros mais potentes do pós moderno e pode ser confundido com o anarquista. O improdutivo. Seu desejo radical é zerar a sua existência. Diferente do niilista satânico cristão que deseja a destruição total. O punk purista é um dos improdutivos. Os cínicos, os hippies. Classes de demônios que buscaram viver com o mínimo possível. Aprenderam com Cristo, porém não são humildes, são orgulhosos de sua potência.  Grande irmão. Ele é o que resta da deidade cristã. Milênios da cultura cristã fizeram com que todos se submetessem a um olho que tudo vê. Por isso as mídias foram facilmente assimiláveis. Hoje todos estão visíveis o tempo todo, todos se olham, a si mesmo e aos outros, naturalmente. O romântico é visto pelos olhos e sua potência é impedida. O grande irmão impede a conspiração. O grande irmão sustenta o modelo de cidade, o endurecimento da cidade, o estriamento da cidade. Sociedade de parceiros. As lutas de subjetividades que atuam em espectralia, como os anarquistas, os queers (considerando queer como a subjetividade sexual que reúne todas as minorias sujeitadas ao patriarcado), os guerrilheiros, que são precursores dos anarquistas pós modernos, os românticos atualizados nas subculturas, na arte (motor de lutas de minorias, que permite aos jovens um papel privilegiado, já que mostra seus desejos), essas lutas, na vitória parcial e no pacto com o poder, pacto silencioso, criaram uma inclusão generalizada da diferença, uma horizontalização entre minorias e focos do poder. O pai, o patrão, o professor, o marido, viraram parceiros dos sujeitos submetidos a eles, e isso é o que chamo de sociedade de amigos. Esta é a relação dúbia, de choque e aceitação, entre o terceiro olho e os olhos do grande irmão. O símbolo maior da inclusão da diferença na cidade do espetáculo, na necrópole é o hipster. Ele é andrógeno, é qualquer um, é todos; ninguém sabe se ele é gay ou hétero, se é rico ou pobre, se é alternativo ou moda, ele é politizado, mas faz parte de uma esquerda que é simulacro, ele é ecologista, mas de boutique, ele tem traços de anti capitalista, mas é capitalista, ele usa drogas, está nos portais que leva a espectralia, mas a cidade moldada para o hipster é a necrópole, é o bom cidadão que vai as ruas, está nas mídias sociais falando de cultura e política. A denominação hipster já é uma apropriação, uma captura pelo grande irmão. O hipster nos Estados Unidos nos anos 40 era o cara das grandes cidades que andava entre a marginalia; era um branco negro, White Negro, um sujeito dúbio, intelectual entre a marginalia, era um anômalo, um conspirador. Hippies, os filhos dos hipsters, eram os jovens que queriam largar tudo, viver outra vida, que chocavam com suas roupas multi coloridas, seus pés descalços e cabelos compridos. Eram monstros, talvez os primeiros da era dos monstros, o pós moderno. Neal Cassady era o Pantagruel do sexo, tinha um apetite sexual monstruoso. Burroughs era um Pantagruel das drogas, Bukowski do álcool. “Os caminhos do excesso levam ao palácio da sabedoria”, e a sabedoria é loucura, e a loucura é o terceiro olho, por isso Blake também dizia que “as portas da percepção devem ser abertas”. Após a contra cultura os símbolos sonoros e visuais dos produtos culturais devem e muito aos símbolos da psicodelia – o efeito da droga marca dos hippies, o ácido. Mario Bross, um jogo para crianças, mostra um Mario completamente louco, com olhos que brilham pelo ácido e alguma droga estimulante, correndo pela cidade. Em momentos, ele sai da cidade, da necrópole e entra em outros mundos, esses outros mundos são parte da espectralia. Os Smurfs são bichinhos azuis que vivem em cogumelos na floresta. Cogumelos são uma fonte de psicodelia, e quando se toma ácido são vistos bichinhos. Os Smurfs são uma viagem psicodélica, de alguém que entrou em espectralia. Gargamel, aquele que quer acabar com os bichinhos, os Smurfs, mostra que a viagem pode não ser prazerosa, pode ser uma bad trip. A cidade mágica de Harry Potter coexiste com a necrópole. Alice é precursora de Harry Potter. Matrix mostra dois mundos, e Neo só entra no outro mundo quando persegue o Coelho Branco. O Show de Truman faz algo diferente, mostra uma mini necrópole, mostra a necrópole para os que vivem nela, e eles, os habitantes da necrópole, se regozijam com ela, com a morte. As bandas de Black Metal fantasiam mundos diferentes em shows e clipes, mundos habitados por seres de negro, semi mortos, demônios, mundos em que os símbolos do cristianismo são destroçados. Louvam a morte, desejam a destruição, e eles não negam isso, reconhecem a morte e querem ela; são amantes conscientes da necrópole, já que os inconscientes dizem que a necrópole é o espaço da vida, dizem que ela é “meu espaço de espetáculo pessoal, o local em que tenho 15 minutos de fama já que sou hipster, um sujeito espetacularizado”. Os olhos do grande irmão na mídia. O sujeito midiatizado vive uma vida privada possivelmente não mediada e uma vida pública midiatizada. As mídias não se reduzem aos media das grandes corporações: há mídias de resistência, que mostram algo concernente ao terceiro, e há as outras que são parte dos olhos do Grande Irmão. Os sujeitos dominados, os que moram na necrópole, os zumbis, insistem em apenas ver o que o Grande Irmão permite. Os media falam e falam, e eles ouvem. Essa é a sua necessidade de segurança, aceitar o mundo como dizem que é. A negação do mundo, que não é reativa, mas afirmação da vida, é feita pelos românticos. Todos dizem que a mídia mente, desde sempre se falou na alienação da TV, a esquerda sempre afirmou isso, mas os sujeitos não conseguem não consumir as mídias, e, por isso, aceitam o que ela diz, esse é o mundo para eles. O mesmo com a área da saúde que constantemente se desmente. A área da saúde como espetáculo faz isso o tempo todo, já que desmentir suas mentiras, dizer que suas verdades não são mais verdades, vende, ou seja, é espetáculo. Mesmo assim, com as contradições da área, suas variabilidades, suas deficiências, todos seguem o que é dito por elas, sabem que são ilusões, mas por segurança se apegam às ilusões. Precisam de segurança, então aceitam. A esquerda é um simulacro, é algo que existiu faz muito tempo e que não mais existe. Como a política dominante é centrada no dualismo, todos aceitam o que é vendido como esquerda. Viver para o cidadão da necrópole é aceitar, se submeter, ou seja, como disse, viver para eles é estar morto, sem vida, ser um Zumbi. Traumas, auto punição. Os sonhos e delírios de espectralia não dizem respeito a um indivíduo, não são os traumas do buraco negro do neurótico, psicanalizado. Os traumas não habitam espectralia, habitam os sujeitos que vivem a necrópole. Ser perseguido pelos traumas, se auto punir, buscar salvação são formas de morrer, de negar a vida; estão sempre no passado, choram, se deprimem, ficam neuróticos, e violentos, amam suas dores, seus sofrimentos, são auto indulgentes. 

sexta-feira, 1 de junho de 2018

.............

Meus olhos, teus olhos, nossos olhos
(um poema para Natasha)
                                                                                                 

Para identificar alguém, a identificação se dá pelo rosto e é usado o olhar. O olhar é tão centralizado que é comum confundir o olhar com a percepção; o olhar é a percepção principal, e possivelmente isso foi criado a partir de uma coerção do controle. O olhar é naturalizado, dominado, modulado, e torna o que atinge em algo direto, digerido, radicalmente simples. O olhar só vê o visível, melhor, recortes do visível. Mascarar o rosto é esconder a identidade e pode ser uma forma de criar um comum entre rostos singulares. Marcos e os passamontanhas, os anonymous, eles são resistências diretas a identificação. O olhar dominante é traído a partir de linhas de fugas. 
Aqui neste curto ensaio, poético, filosófico, com linguagem diferente da dominante acadêmica, tento experimentar uma outra percepção: a partir do meu olhar, tento me aproximar de um outro olhar, este um olhar que se olha e se recria, se maneja, se teatraliza. Faço isso para abrir um outro olho, o terceiro olho. 
O texto é guiado pelos afetos, pela intuição, pela paixão por esse olhar. O objeto principal é um dos vídeos de Mc Zeus, rapper gaúcho, de 17 anos de idade, com uma obra extensa e consistente. Após assistir algumas vezes seus vídeos e de proposta do orientador de pós doutorado, comecei a pensar no possível texto. Eu dirigia pela cidade e lembrei do olhar de uma menina em um dos vídeos. Fiquei uma hora dirigindo e construindo mentalmente o texto. Nesse momento, só pensava no olhar dela. Quando cheguei em casa revi o vídeo e notei que ele não era exatamente como eu me lembrava. Para mim, naquele momento de devaneio intelectual, o olhar dela centralizava todo o vídeo; e sim, ele é importante no vídeo, mas não tanto quanto eu pensava. Decidi, portanto, escrever o texto centrando no olhar dela, a partir da imagem falsa que tive quando dirigia. Ou seja, o texto parte de uma ficção, e mesmo essa afirmação do falso pode ser um jogo meu. Assim, me coloco não como cientista, nem acadêmico, mas como poeta, criminoso, conspirador, enganador, alguém possuído pelo demoníaco, sendo o demônio criador da mentira.  
O texto, ensaio, ensaio crítico, ou seja, político, portanto, é poesia, poesia que mascara um humor peculiar, que não vou revelar, pelo menos agora. Essa soma, conexão de linhas diferenciadas é a transversalidade, e esta não é um campo, um dispositivo, nem deseja ser, mas é exatamente o atravessamento de campos para fugir da lógica identitária. O ensaio tem esse centro, o vídeo de Zeus, o qual atualiza o olhar da musa, mas tenta fugir o tempo todo, criar brechas. Essas fugas direcionam para um futuro, são sacações para serem trabalhadas nos textos seguintes sobre Zeus; assim, é um texto aberto, com pontas de possíveis, que tenta entrar no campo virtual. E isso já é uma crítica aos trabalhos fechados, organizados, não dispersivos que são frutos do controle, ilusões do grande irmão (um dos personagens conceituais do texto), que insiste em afirmar, impor, um mundo seguro, harmônico, melhor, controlado. O grande irmão, o controle, é a soma de todos os dispositivos e o terceiro olho concerne às linhas de fuga possíveis neles.   
Trepanação é fazer um furo na fronte, no crânio para permitir a abertura do terceiro olho continuamente, até a morte. O terceiro olho não é um sexto sentido, mas “N sentidos”. Ele também é aberto de inúmeras outras formas, com as drogas, o sexo tântrico, a meditação, a loucura, a arte. O terceiro olho está sempre aí tentando se abrir e poucos o notam. O grande irmão, o controle, tenta impedir a abertura do terceiro olho. Os olhos do grande irmão se impõem como único olhar, e ele não está acima, está dentro, é o olhar rotineiro, dominante. O terceiro olho e o grande irmão estão continuamente em conflito, nunca em diálogo. O terceiro olho não faz concessão, como desejo ele é resistência ao domínio. Em todos agenciamentos sempre há poder e resistência, e a cartografia, atualização do terceiro olho, permite perceber a natureza dos agenciamentos, a soma de linhas, a transversalidade.  
O grande irmão impõe o olhar como percepção principal, mas quando o terceiro olho é experimentado, sabemos que ele pode ser aberto pelos poros, pelo pênis, pela vagina... Portanto, ele não é localizado, está em todo corpo, como o grande irmão está em toda a parte. O grande irmão diz que a mulher é mulher, impõe isso para a mulher. O terceiro olho é pertencente à mulher como minoria sujeitada – ela empresta esse olho para todo o social, o devir mulher. O grande irmão odeia a mulher e reduz sua existência, por isso, por ser resistência a ele. Mas o grande irmão está na mulher, e ela luta e luta e tenta; Deleuze e Guattari alertavam que a mulher também tem que devir mulher.
Ela é linda, tem talvez dezoito, é loira, moradora do sul do Brasil. Ela faz parte de uma subcultura, o rap, curte drogas, está na melhor fase de sua vida. Ganhou peso nos últimos tempos, já que é uma mulher que sofre por ser mulher e seu corpo é um campo de batalhas. Ela é a musa de Zeus no vídeo da música Afro Killa. Zeus, esse ser híbrido, de muitas cores, esse Killa que mata em nome da arte, portanto, da vida. Ela está ali, muitas vezes no centro do vídeo, mostrando seu olhar de forma natural. Talvez ela seja o que de mais natural e espontâneo haja no vídeo, ela é teatral naturalmente. Sendo a musa de Zeus e sua trupe, tendo sido sempre a musa das pessoas do seu nicho, aprendeu a agir no mundo – ela sabe que o teatro é uma forma de defesa, mas esse teatro brinda o mundo com sua existência intensificada.
No vídeo, ela é um olhar. Ela tem esses olhos germânicos, com pálpebras de uma brancura especial, e seu olhar é potencializado por um brilho de quem abriu o terceiro olho. Sim, ela brinda o mundo com o olhar, o qual quer ser visto. Ela sabe disso, então maneja o olhar, ela olha o próprio olhar e trabalha ele, e para trabalhar ele usa o terceiro olho, e a maconha, o beque em suas mãos, ajuda e muito.
A musa – esse personagem dominante na arte moderna – é intocável (mas não pelos outros, ninguém tem ciúmes de sua musa), ela é intocável para aquele que a admira. É uma obra de arte a ser admirada, não apenas vista, mas sentida de inúmeras formas; e a musa só se torna musa quando o terceiro olho é aberto, quando ela é sentida a partir de todos os sentidos, mesmo que o grande irmão diga que é um objeto que deve ser apenas visto. 
Tadzio, loiro, jovem, de olhos claros era apenas visto pelo escritor, Tadzio era o muso do escritor. Quando em Lolita o pedófilo apaixonado tentou tocá-la, quando ela deixou de ser um objeto a ser fruído com distância, ele perdeu sua musa. A musa não é a objetificacão do corpo, quando falo em objeto, esse objeto específico se refere a aquilo que deve estar próximo, mas distante, assim como qualquer obra pictórica figurativa, que apresenta algo próximo, um rosto, uma paisagem, etc, mas que está distante, já que é uma ilusão.
A distância é necessária na experimentação do terceiro olho: estar com ele, mergulhar nele, mas com cautela. Abrir o terceiro olho com muita intensificação é entrar no caos e não mais sair. Sid Barret fez isso e se perdeu em um buraco negro sem volta. Waters, seu companheiro, comentou o olhar de Barret, os olhos de Barret, para Waters , eram buracos negros no céu. Johnny Thunders, pelo vício em opiáceos, tinha um olhar parecido, percebido em muitos vídeos em apresentações suas. 
E a musa de Zeus... Sim, está perto e distante, deve estar distante – senão deixa de ser musa e se torna amante. Ela é uma linda imagem, algo atualizado no vídeo, em sua especificidade, é algo fruível. Ela tem um belo corpo que dança suavemente; seu ventre exposto é incrivelmente lindo, e estar acima do peso, pelo peso da entrada na vida adulta, a torna mais linda ainda. Ela se veste sem cerimônia, sua bermuda cinza é de um tecido leve, delicado, possivelmente gostoso de tocar; meio moleque, está de boné. Ela faz praticamente três coisas no vídeo: mostra o olhar, brinca com a fumaça de cigarros com seus lábios delineados, movimenta o corpo em uma sutil dança. A sutileza e a delicadeza são suas marcas, mas são trabalhadas de tal forma por ela que se tornam algo sexy, que arrebata. A estética dela no vídeo não é cosmética, ela não é adornada, falsificada por possíveis tratamentos estéticos, como disse, ela é ela, ela é natural, mesmo que seja a naturalidade do teatro.  
Se fosse cosmetizada seria objetificada e viraria algo totalmente distante, frio, friável, um produto. A paixão pelo produto é marca do controle, a subjetividade é tão colonizada que nem os desejos ficam ilesos. Essa marca mostra o grande irmão dentro de todos. O grande irmão diz: consuma, ame as coisas como elas são. Porém, como ele está dentro, diz respeito aos sujeitos, a palavra de ordem não é necessária, todos consomem e amam as coisas como elas são. E de forma alguma eu faria uma ode a um produto. Warhol não fez isso, ele mostrou exatamente a paixão triste pelos caixões produzidos pelas indústrias. Mostrou para a sociedade o que ela é, mostrou que os sujeitos amam a morte, se regozijam com ela. Os objetos de Warhol não eram artísticos, mas reproduções de produtos, ou seja, reproduções de reproduções. Portanto, a obra de Warhol era filosófica, partia do conceito crítico. Danto, um filósofo de arte conservador, conseguiu expor isso: a morte da arte quando ela se tornou filosofia exatamente com Warhol. Porém, arte para mim é um conceito vago e raso, o qual tenta fotografar inúmeros processos. Na época de Warhol inúmeros suportes, campos, territórios simbólicos foram misturados de forma descarada, e com os movimentos em rede e a internet essa mistura se torna dominante; uma das marcas do pós-moderno é a conjuração dos campos fechados, que ainda tentam viver, melhor reviver. O cartógrafo, o experimentador da transversalidade é um desses conjuradores. 
Zeus, no vídeo, está sempre ao seu lado – da musa – a intimidando, mas ela não quebra a pose, e ela não quebra a pose com sua arma, o olhar, mantém o olhar, já que tem domínio dele. Ela nos olha, ela sabe que nós a olhamos, ela gosta disso, joga com isso, sabe o que está fazendo a partir de sua percepção molecularizada, de sua intuição, de seu devir mulher. Não é espontâneo, como disse, ela aprendeu a jogar com a vida. A vida dela, como mulher, seu devir mulher, depende do seu olhar. Olhar vago que está em outro mundo, o mundo do terceiro olho (não do grande irmão), no qual ela é uma deusa.
A importância dos olhos, do olhar, é algo constante na cultura pop. Joan Jett tem olhos azuis e um olhar penetrante, hipnótico. Dakota Fanning tem olhos verdes tão hipnóticos quanto. Duas najas, ninjas do olhar, que dominaram o olhar dos homens ainda ninfetas. Heroin chic se referia ao corpo magro e macerado, mas o que mais marcava no estilo dessa moda era o olhar com ares próprios à narcose. Bowie ganhou o mundo pelo olhar, ele tinha uma deformidade nos olhos. Morrissom entrou em decadência quando seu olhar perdeu forças.  A música de maior sucesso dos Stooges se chamava TV Eye, um tipo de olhar que mostra o desejo de um homem por uma mulher. Ana Karina era seu olhar, e isso bastava. A banda punk mais importante do Brasil se chamava Olho Seco; “o olho seco daqueles que viram as desgraças do mundo”, como diz seu fundador Fábio. 
Sendo mais fácil identificar pelo rosto e pela centralidade do olhar, os olhos mostram quando o sujeito está drogado; e cada droga dá uma especificidade ao olhar. O terceiro olho não é um olho ou uma percepção, mas a conjugação – transversalidade – de todas as percepções humanas dominantes e todas as outras possíveis. Os olhos da musa de Zeus são os olhos da mulher, uma minoria – chapada, assim, outra minoria – em conexão com todas as outras minorias. Ela, a musa, é vista por mim a partir das minorias que me habitam, e o afeto para produzir esse texto a partir do seu olhar, o meu terceiro olhar é meu e dela e de todos nós.
Ela é única mulher no vídeo; Zeus faz arte, bela arte, prim-arte (como diria nosso mano Pig), e precisa de um intercessor minoritário, ela, para potencializar seu trabalho. O rapper Zeus é violento, tem um olhar louco, injetado, meio afetado, em fúria que dialoga, copula com sua “Vênus em fúria”, a nossa musa. O olhar de Pig é mais calmo, mas talvez seja a calma de um assassino, de um Killa.
 O terceiro olho está em toda a parte, o nosso comum, nossa loucura. O grande irmão une a todos como se estivessem presos em um lamaçal. Sem saída, todos dizem que amam a lama para manter o orgulho. Afro Killa, Aquiles sabe que vai morrer, mas vai se tornar herói, Zeus é um herói ao lado de sua Afro dite, o amor de Zeus, seu devir mulher, que quebra a pose de rapper machista, o tornando um rapper amoroso, um Killa amoroso. E Zeus não mata já que faz arte, mas seu olhar mostra que sua arte é feita por ódio, ódio ao grande irmão, e esse ódio é amor à vida. 
O grande irmão chama o terceiro olho de olho, mas não é um olho a mais, é uma multiplicidade, N olhos que não são mais olhos. Por isso, Édipo se torna vidente quando fura os olhos, algo parecido com o que aconteceu com Tirésias; eles negam a percepção dominante centrada na visão para entrar na percepção vidente do terceiro olho. Blake mostra como o cientista é cego, ele olha apenas um ponto e nega todo o resto: o cosmos, o subterrâneo que existem não para serem vistos, mas percebidos e sentidos.
As sensações e percepções permitidas pela metrópole sempre estarão em posição privilegiada em relação à arte. O grande irmão e seus utensílios fazem a captura. Estamos sob o olhar das câmeras de vigilância, dos outros e de nós mesmos. Mas na cidade as linhas de fugas estão por toda parte em espaços não vigiados, espaços prontos para a conspiração, e a conspiração necessita do terceiro olho; a necessidade de conspiração se dá a partir da abertura do terceiro olho, o qual faz enxergar o grande irmão e daí o desejo busca a resistência. Foucault nos brindou mostrando a percepção do grande irmão, atualizada no panóptico, o olho que tudo vê que domina a materialidade do dispositivo prisional. Sim, necessitamos de cinema, de vídeos, de música, mas que compitam com a potência da cidade.
A importância desse vídeo de Zeus, como de tantos outros seus, é mostrar a juventude produzindo valor. No vídeo, Zeus pode enlouquecer de tal forma que o grande irmão não pode impedi-lo; ele nos ensina a prudência da experimentação. O grande irmão tem medo da arte, não a entende, então a aceita; sim, a arte, uma das filhas do terceiro olho. Zeus mostra o afeto entre os manos, a importância da festa e da bagunça, a testosterona aliada à violência tipicamente jovem e, claro, nossa musa. 
Zeus é um conspirador, experimentador, busca quebrar com os símbolos, é um Diabolos, um divisor. Lúcifer porta um tipo de luz que mostra o poder negativo de Deus, que é outro tipo de luz. As trevas são iluminadas pelo fogo que queima, queima os símbolos dominantes. A nomeação Zeus talvez seja uma quebra de símbolo, própria ao Diabo, uma forma de sarcasmo, uma inversão. Zeus pode ser na verdade Hades e Hades pode ser Lúcifer.
A inversão direta é comum nas falas cotidianas para mascarar aquilo difícil de dizer. A impossibilidade de silêncio usa metáforas para não macular a moralidade. Mentir no cotidiano envolve um tipo de narrativa próxima da poesia e uma pantomima que diz respeito ao teatro. A arte já é uma mentira, um jogo, uma ficção, uma realidade em si mesma. E a mentira é elemento próprio do demoníaco. O problema da mentira é quando ela é usada para algum fim, enganar os outros para obter poder; mas a mentira em si mesma é potência da vida e pode tomar forma no “dito sistema da arte” ou no cotidiano. 
 Zeus, na verdade, é um dos senhores do Abismo que usa uma máscara para não ser visto, identificado pelo grande irmão? Sonho, morte, demônio, são os reis do subterrâneo... Seria Zeus mais um deles conspirando? Nosso Zeus, o rapper, talvez nem saiba disso, já que as forças da vida, da resistência, contra o poder podem ser atualizadas na vida mesmo sem a compreensão dos sujeitos. 
Como afirmo: ver o visível, o atualizado, o óbvio isso é imposto pelo poder; já buscar o molecular, o imperceptível, como insisto no texto, é a experimentação do terceiro olho, de chegar nele. Esse texto ensaístico tentou criar uma narrativa que pensa não nas atualizações, nas miradas dominantes, mas naquilo que virtualmente está presente e que é tão real quanto o real e, mais, melhor que o real, já que o real é fruto do poder e de seu olhar transcendente, o qual se sobrepõe a todos e, ao mesmo tempo, está em todos.
O segredo, a conspiração, a arte sempre foram armas contra a onisciência divina. O crente nunca teve escolha, além de ser visto tinha que se confessar para purgar os pecados. O moralista, após a derrocada de Deus, ou esconde ou se purga no consultório com seu analista. O moralista peca e se assusta consigo mesmo, ele não age é agido, pelo menos pensa assim, como forma de defesa, diz que não sabe o que faz. O romântico é imoral, amoral, mostra suas sujeiras ao mundo não como purgação, mas exatamente para quebrar com a moral dominante, o romântico é um demônio específico.
O romântico para não morrer, para resistir à moral dominante, necessita de um território existencial singular, algo diferente da vida de todos, a vida imposta e amada. Ele diz não ao não, nega a interdição, as leis, da sua forma; porém todos fazem o mesmo, de uma forma ou outra, dizem não. Às vezes, a necessidade de dizer não é tão forte que acaba se tornando micro fascismos, como assassinatos e violência.
O suicídio se tornou um símbolo da juventude e aumentou nas últimas décadas. Ao mesmo tempo, os jovens foram empoderados pelas redes de comunicação, pelas redes de resistência, pela horizontalidade das relações dos jovens com os focos de poder. Os jovens decidem se suicidar talvez exatamente por isso, pelo empoderamento. As leis continuam duras impondo a “identidade jovem” a eles, o recorte, a sobrecodificação do grande irmão. Os jovens, com mais poder, acionam o terceiro olho e entendem que um pouco de poder é pouco; eles sabem que estarão na prisão por muito tempo ainda. Aliás, os jovens no paradigma atual ficam jovens por mais tempo, talvez por uma necessidade de captura do grande irmão, sua tentativa de bloquear a potência. No outro paradigma, eles entravam na vida adulta muito antes, mas agora os vinte anos se tornaram trinta anos. E como negação dessa captura estendida eles fazem o que podem fazer, fazem a negação absoluta.   

...


Esse texto não é um diário de notas, não são anotações sobre o que está acontecendo, mas é uma experimentação sobre o que está acontecendo, e, como é uma experimentação, não posso nomear a partir dos rótulos tradicionais. Não são palavras jogadas a esmo, não há espontaneísmo, como não há método. O fortalecimento, a consistência de um estilo, de uma ética - estética concernem a uma preparação calcada na cartografia. Experimentar territórios, criar linhas de fuga, perceber isso, projetar, projetar o caos.
............................................................
Há uma exigência de organização nos ppgs e muitos se orgulham, lutam por isso. Para o senso comum o método, o texto bem construído e não dispersivo, as regras duras são um bem, o fim último a ser atingido. Para o senso comum, o cidadão comum é desorganizado, infantil, espontâneo, e nos ppgs os pesquisadores buscam o máximo possível de organização; ou seja, uma lógica dicotômica: organização e desorganização. Porém, estando no ambiente acadêmico é extremamente fácil ser organizado, já que é um espaço controlado pelos olhos do grande irmão. A estrutura de um artigo, de uma tese, as regras próprias aos campos, as lógicas cientificas, mesmo estar em sala de aula, respeitar horários, tudo isso é fácil já que está dado, é da natureza do dispositivo. Agora produzir um caos projetado é muito difícil já que é pouco atualizado, trabalhado, experimentado na academia.
..............................................................
Valorizar o trabalho, e valorizar ainda mais dizendo que é um trabalho sério, organizado e bem feito, isso é palavra de ordem, senso comum e todos afirmam isso. Difícil é largar tudo, ser um punk de rua, ser um okupa, ser um marginal, é tão difícil que pouquíssimos consegue ser. Deleuze e Guattari diziam que o corpo estratificado e organizado, o organismo, como percebemos o corpo é uma imposição do controle. Eles afrontavam essa imposição pensando no Corpo sem Órgãos; este não pertencente a um sujeito, um corpo criado, inventado a partir da cartografia. Contra a organização a criação de agenciamentos, experimentações, ou seja, o caos projetado. A cartografia é o caos projetado, afrontar o grande irmão a partir do terceiro olho. 
..................................................................    
Para mim, é impossível escrever um texto espontâneo já que a ética - estética que me alio guia minha existência e, portanto, minha escrita. Esta ética - estética diz respeito ao confronto com o controle, os seus olhos, ou seja, o grande irmão; ela se atualiza na minha existência: na forma como eu vivo, me relaciono, penso, sonho, desejo, enlouqueço, percebo, sinto, produzo, ou seja, nas linhas próprias à subjetividade. A experimentação é tentativa e erro, e o erro faz parte do processo, é a linha de fuga frustrada ou friável que leva a outras linhas de fuga. O olhar do grande irmão, um dos efeitos do controle, é afrontado de inúmeras formas, mas o controle é afrontado de mais e mais formas. Os olhos são uma das formas de controle: câmeras por toda a parte, olhos de todos sobre todos, os próprios olhos que se olham, o controle mesmo nas visões do terceiro olho, como nos sonhos e delírios visuais. Sim, identificar, capturar pelo olhar é a forma mais fácil, mas visibilidade é uma das linhas dos dispositivos, o controle não se reduz obviamente aos olhos do grande irmão.  
..................................................................
Produzi um texto para o pós doc. Tinha como objetivo continuar o texto, porém senti uma necessidade de cair fora, pelo menos por um tempo. Não me preocupo mais com o lattes, não estou pensando em fechar meu livro, que já tem mais de trezentas páginas. Não ter um note book me ajuda a não estender o trabalho. Esses tipos de preocupações, objetivos, sentidos, trajetos delineados servem apenas para controlar.  Preciso cair fora das lógicas dominantes para ter contatos com o fora, e ele que me permite produzir. Um assassino, um Killa, um suicida, um presidiário, se produzem no campo de saber, podem criar coisas maravilhosas, já que são subjetividades diferenciais. Os loucos, os drogados, os do terceiro olho, sabemos que eles fazem isso e muito bem, a história da filosofia e da arte nos mostram isso.
...............................................
Terminei o livro, decidi não finalizar. Entrei no pos doc decidido em finalizar o livro, daí meu note book pegou fogo. Parei de escrever, mas continuei produzindo. Como tenho um tablet passei a criar falas gravadas no aparelho. As falas são atualizações em áudio da minha escrita, têm o mesmo estilo, posicionamento, porém apresentam conteúdos novos em relação ao que já foi escrito. Eu simplesmente penso em um tema, faço uma narração mental e depois gravo direto, sem cortes. Algumas, poucas, eu tenho que regravar por perder o andamento ou por, após ouvir, não estar satisfeito. As gravo, posto no youtube e depois as deleto do tablet. Gosto da efemeridade, do caráter friável do dispositivo, da impossibilidade dessa produção ser capturada pela lógica do lattes. Voltei a escrever após conseguir um note book de mais de dez anos. Não queria mais escrever já que as falas são muito mais prazerosas de trabalhar. Porém, ao voltar, entendi a importância, a especificidade da escrita.
............................................
No pos doc queriam me dar uma sala para eu trabalhar. Eu disse que não queria, que eu poderia usar os corredores como todos os alunos do ppg. Agora estou propondo ter a sala, mas como um espaço auto gestionado, trazer a sabedoria das ruas, das manifestações e das okupas para dentro do espaço institucional. Não digo que estou fazendo o pós doc, não quis a sala, não digo que sou um escritor, tudo isso cria uma menorização minha, me coloca em uma posição menor; isso concerne a um grau de diferença – a negação de si como sujeito pertencente a uma casta socialmente importante, a intelectual – que permite o contato com o fora. A autogestão do espaço se iniciaria pela minha experiência e seria um objeto com um problema: como pessoas que não têm conhecimento de autogestão se relacionariam com o espaço? Será que a autogestão não faz parte das subjetividades? Será que as revoluções face book centradas na horizontalidade e na produção em rede não atingiram mesmo aqueles que não se interessaram por elas? A macro política é fácil de ser percebida já que é mostrada pelo grande irmão. Pensam que a potência dos movimentos é a transformação da macro política, não entendem que é riqueza em si mesma. Os movimentos podem não mudar o poder e nem devem, mas atingem a todos de forma sub reptícia, molecularmente; outras subjetividades são criadas, outros devires. E como perceber isso se não está atualizado nos meios do grande irmão? Pensar apenas no atualizado, no óbvio, no visível, no que os olhos do grande irmão permitem ver, é fotografar o caos, reduzir o mundo. A ciência com suas lógicas recorta o real a partir do objeto, controla a partir das regras e métodos, organiza com a estrutura textual, busca uma verdade com o trabalho rigoroso, neurótico em cima de um pequeno pedaço do mundo; a ciência pensa em processos, mas a partir desse pedaço, ela busca algo que está dado, atualizado no objeto. A ciência olha a partir dos olhos do grande irmão, e a cartografia a partir do terceiro olho não busca a verdade, cria algo muito mais próximo da ficção do que dá ciência. Imitadores, de métodos, regras, leis, são os seres mais rasteiros do campo do saber, mas os poetas, os cartógrafos são os experimentadores, os mais próximos daquilo que chamam de criação. 
.................................................
Não ter a produção capturada, ter uma produção que foge é principalmente uma forma de viver, de não morrer em vida. Um poeta que não publica, um músico punk que não se encaixa no mercado, qualquer mercado, produtores imateriais nas ruas que não vendem sua produção, eles têm sua ética e são dignos. O objetivo mais comum de artistas é se encaixar na lógica mercantil, ou seja, eles são iguais a todos, querem fama e dinheiro. A questão ética, contra dominante, é não é se tornar alguém especial, mas sim criar existências singulares. O que é singularidade? Lógicas diferenciais. O pária vive uma existência que pode ser singular, mas ele não é especial, e se não quer ser então ele tem sua ética. O drogado e o vagabundo não produzem, isso diz respeito a sua ética. A criança não produz; as mulheres, os gays e os negros entraram como agentes produtivos a partir da inclusão e isso é recente. Quando o controle tenta capturar uma subjetividade, impondo o trabalho, e esta diz: não! isso é resistência.
.................................................
O pacto com o poder é sempre tendente as necessidades do poder, pactuar com ele é aceitar suas lógicas. Por isso, as demandas não devem existir, mas sim produzir para viver. A negação radical frente ao poder é a afirmação radical da vida. A história mostra que o poder dá migalhas para continuar sendo poder. O pacto que criou o Estado de bem estar, a inclusão das minorias, o esmaecimento das dicotomias, a criação da sociedade de parceiros, tudo isso aconteceu para termos a sensação de mais empoderamento, que mascara um endurecimento muito mais forte do poder. As mídias são um exemplo: as de massa ajudaram a educar o povo, trazer o não visto para o espaço público; as mídias digitais tiraram os sujeitos da posição passiva, de recepção. Para Levy a internet permitiria uma real democracia. Porém, as mídias intensificaram o controle exatamente naquilo que sempre foi considerado intocável, a subjetividade. O trabalho possível nas redes digitais, percebido como horizonte nos anos 90, seria o fim do trabalho explorado, seria o ápice do trabalho imaterial, intelectual e afetivo, criativo e prazeroso. Porém, o mercado sucumbiu na virada do século e levou a falência jovens promissores. Isso produziu uma depressão generalizada. Como disse no texto sobre Afro Killa: o empoderamento leva a uma compressão do mundo, e isso pode levar ao sentimento de insuportabilidade, já que o mundo é compreendido e os sujeitos sabem que ele vai continuar igual. O Prozac surgiu logo após o boom do trabalho imaterial. Não seria a depressão reflexo do empoderamento e da impotência frente ao controle? E o Prozac não foi a forma que o controle encontrou para domesticar ainda mais as massas, deixá-las felizes como consumidores e produtores, sujeitos passivos?
...................................................
Para os românticos a arte é o remédio, a medicina, para que não morram. Zeus quase mata, sonha em ser um Killa, por isso Afro Killa. A impotência pode levar a abolição, ao suicídio, ao assasinato. Se Zeus não enlouquecesse em sua arte estaria nas ruas matando – a loucura é uma das suas marcas, vista nos olhos injetados no vídeo. Para amenizar ainda mais ele precisou do amor, da musa, precisou da parceria, que é o amor entre os manos, de Pig, sempre ao seu lado impondo respeito. Zeus não luta sozinho, é Aquiles e sua turma, seu bando, sua legião, e Zeus já é uma legião infernal. O rap foi escolhido por ser violento, direto, por ser discurso critico. Tyson apenas arrancou com os dentes a orelha do adversário, se não lutasse boxe poderia ser um serial killa. Zeus é um possível homem bomba, nos seus olhos vemos que ele está explodindo. Os torturadores na época da ditadura precisavam torturar para se acalmar; assassinos matam para se acalmar; é o remédio deles. Os românticos têm a arte, mas precisam de outros remédios, como as drogas, o sexo livre, os desvios. A musa acalma também, já que o amor é uma forma de medicina. O amor Wertheriano era o amor abolicionista ou o sentido de uma vida? Depois de amar daquela forma nada mais era necessário. O “eu morro por você” dito pelos amantes é acreditar no amor, e se matar é exatamente sair da crença e provar, a prova de amor. As meninas sempre servem como mediadoras nas brigas dos meninos nas ruas, elas acalmam os ânimos muitas vezes apenas pela sua presença. E a musa está ali para isso. Zeus nos encara, quer briga, nós não brigamos com Zeus, já que a musa está ali, mediando, suavizando a vibe violenta dos Killa. A questão existencial é o mais importante do rap de Zeus, seu rap existencial. Zeus fala do que conhece, fala a partir do empoderamento sobre a vida insuportável. Zeus ensina o que fazer para não morrer, como todos se sentem, mostra a vida dos afetos, ilumina, já que Zeus é Lúcifer; e essa luz não mostra outro mundo, ilusório, isso é feito pela luz do cristianismo, é a luz que permite a visão do terceiro olho, luz vinda do fogo, fogo que incinera os signos dominantes. Lúcifer mostra o que não queríamos ver ou fingíamos não ver; não é o esclarecimento iluminista, mas desvelamento, o tirar da máscara do bom cidadão. Zeus mostra a angústia da juventude, a prisão, mostra aos adultos a vida que eles viveram e esqueceram e que hoje é experimentada pelos seus filhos. Se fossem mostradas, tornadas visíveis as angústias das crianças os adultos seriam destruídos; a iluminação e destruição Luciferiana. “Se as portas da percepção fossem abertas” como dizia Blake, o grande irmão seria destruído. Zeus dá uma grande importância ao uso de drogas em sua música, é uma das suas armas. Quando uma criança vira adolescente a partir das drogas, os pais obviamente ficam preocupados, isso é o óbvio, porém, eles ficam com medo de perder o trono, o poder, já que os filhos ficam mais fortes que eles ao usarem substâncias que a maioria dos pais tem medo de usar.  
.........................................................
O controle deixou todos paranóicos, mais e mais, tanto que sentimos como se todos soubessem o que pensamos. O controle é a onisciência divina, vê e sabe de tudo, não há como fugir do controle, não há fora; e a punição é exatamente o controle, a vida impedida, e quando a saída é o suicídio o senso comum impede, como a lógica cristã fazia. A vida descontrolada é a resistência, sim, exatamente aquilo que chamavam de pecado.  
..........................................................
Alex, o fora da lei, sem lei, o A-Lex, nos brinda com seu olhar chapado já na primeira cena de Laranja Mecânica. O plano é longo, dura, e mostra Alex e sua trupe sentados, chapados com sua droga favorita: leite com facas. De início a câmera fecha nesses olhos claros, com cílios postiços, com uma forma de olhar hipnótica. Depois a câmera vai abrindo, aos poucos, e mostra os membros da gangue todos chapados também com olhares em narcose. Quando a câmera mostra os corpos inteiros, vemos que eles não se movem, nem mesmo piscam, estão paralisados, seres hipnotizados que hipnotizam a partir de nosso olhar da cena. Mas não é só a droga que cria o olhar, mas também a ultra violência de Alex e sua trupe presente em seus olhares já que eles são Killas. A cena me arrebatou quando com 14 anos a vi chapado de maconha. Meu olhar chapado se conectou com tudo isso, e talvez eu tenha entendido que aquele olhar, o de Alex, era também o meu. Talvez eu tenha me afetado pelo olhar da musa já que ela é loira e de olhos claros como Alex. O mais interessante é que Alex é destruído exatamente a partir do olhar. Ele é condicionado a se tornar um bom cidadão, passivo, a partir de um tratamento que concerne em obrigá-lo a ver imagens violentas narcotizado por uma droga que o faz se sentir doente. Ele associa a violência, atualizada nas imagens, com a dor causada pela droga e a partir daí o seu desejo por violência lhe causa repulsa, o deixa terrivelmente nauseado. O grande irmão doma Alex pelo olhar, faz ele ver as coisas de forma diferente, e diferente para ele era ser o bom cidadão. O Cura no filme se revolta e diz a todos que ele não tinha mais escolha, o livre arbítrio. Essa é a natureza do controle, não temos escolha, e quando escolhemos somos muitas vezes presos, internados ou mortos.
...................................................................  
A minha resistência existencial está sempre em jogo com o controle. Não posso muito já que não quero ser preso ou internado. O que posso fazer aprendo a partir da experimentação, da minha preparação. Traço linhas de fuga, me perco em inter meios, me sinto afetado, depois sou re territorializado de alguma forma e fujo de novo. Dentro e fora, momentos de fora, e se o fora não virar depois um dentro daí a linha de fuga se torna uma de abolição. Parece uma fórmula, uma imitação da máxima de Deleuze e Guattari, mas não é uma fórmula, eles entendiam muito bem a vida, aprenderam com os da tradição romântica.
................................................................
As subjetividades são formatadas a partir de longos períodos de coerção. Hoje comunicamos nas redes o tempo todo já que a modernidade foi a época das mídias; as mídias sempre comunicaram pelo máximo de tempo possível de qualquer forma: falas vazias contínuas, redundâncias, como a mulher histérica que não se cala, fala qualquer coisa. Nos acostumamos com isso, esse tipo de comunicação contínua e vazia se tornou naturalizado. Nas redes a conspiração é impedida pela visibilidade e ninguém quer ser visto como um conspirador, um pária, um marginal. As redes são o espaço da fala hiper vigiada. A web era um espaço nômade que se tornou totalmente estriado. O facebook atrai de tal forma que não há como sair dele. O Google impõe os caminhos; youtube, net flix são redundantes. As ferramentas de busca tradicionais levam sempre para os mesmos caminhos; uma palavra postada qualquer leva para inúmeros sites de venda de produtos. A deep web aparece como opção.  A conspiração de Benjamim dizia respeito a outro paradigma, época que Foucault também tratava. Nessa época as tavernas eram o fora dos espaços vigiados; porém no controle a conspiração toma outras características já que parece que não há fora.
.................................................................  
Falar de mim não é um ato vaidoso já que não falo de mim, mas de linhas de fuga, uso um empírico que me ajuda a pensar os processos. Falar de si diz respeito ao mais raso, empírico, ao cotidiano; crianças escrevem seus diários, cronistas, os escritores mais baixos, falam de sua existência. Ou seja, falar de mim é uma menorização do trabalho, e isso é importante já que se choca com os olhos do grande irmão, esses olhos que impõem a todos a espetacularização de si: dizer-se orgulhoso de sua vida, de sua carreira, de suas produções. Ninguém diz que é um sujeito baixo, vil e rasteiro, mesmo que saiba que é, e todos são, o capitalismo impõe a podridão das relações, então todos são maus. O homem não é mau, mas o sujeito do capitalismo é mau. Ele passa por cima de todos para manter sua pose, seu espetáculo particular. As redes sociais, os avatares, os perfis particulares são exemplo disso. Se não são ricos, se são feios, se são intelectualmente débeis, se são fracassados, mesmo assim nunca dirão que são, já que têm que se sobrepor aos outros, mesmo que seja a partir de uma ilusão. Falsear sua imagem para bem vendê-la, essa é a lógica do capitalismo, mentir, roubar para conseguir algo, nem que seja apenas auto estima. E todos fazem isso e mascaram, ou fecham os olhos para não perceber. Chamam de jogada de marketing mentir para vender um produto, e isso é uma forma de mascarar a sujeira do capitalismo.   
................................
Moro em um prédio de classe media e sou o único do prédio que freqüenta a parte marginal da rua, estou sempre na rua. Na rua, na minha rua, há traficantes, ladrões, mendigos, michês, prostitutas, rappers, skatistas, maconheiros, viciados em muita coisa, e estou sempre com eles. O que faço nesse espaço é diferente do que faço em outros. As ruas são os espaços controlados, trajetos delimitados. Espaços têm sua especificidade, mas conjugados compõem o dispositivo cidade. Em certos espaços são permitidas certas experimentações, cada espaço possui suas linhas de fuga. Como a cidade é pequena, às vezes vou até a zona mais rica, falo com amigas que trabalham numa loja, e depois vou para um bar aqui do lado repleto da marginália. Me sinto bem com isso, com esse choque de fauna e paisagens. E a Cidade Baixa é isso, já que Porto Alegre é assim, essa contradição interna, desigualdades sociais no mesmo espaço. Os hipsters, os de bom gosto, comem suas comidinhas nas mesas postas nas calçadas ao lado do esgoto na bela rua arborizada, a República. Famílias de classe média, com seus caros utilitários, esperam na fila, no sábado e domingo, junto também ao esgoto e seu mau cheiro, para almoçar no Tudo pelo Social; algo parecido acontece no Geovanaz. Essa mistura não é harmônica, não gera uma paz entre os diferentes, não os aproxima, aliás, talvez até os distancie mais. A classe média necessita da pobreza para se sentir orgulhosa de si. Eles mostram os pobres para os filhos pequenos e dizem: não somos como esses animais. E os pobres necessitam deles para admirá-los. Necessidade de domínio e de ser dominado.  
...............................
A contradição interna mais forte da sociedade de controle concerne às minorias que amam o padrão dominante de vida, que almejam ser a classe média, ter dinheiro seja como for. Os gays fizeram um pacto silencioso com o poder para terem dinheiro, assim, uma subjetividade de resistência se tornou incluída, o mesmo com mulheres, negros, etc. O pós-moderno é a era da potência dos monstros, mas a monstruosidade pode ter virado norma já que não há mais fora: feministas fascistas, anarquistas estadistas, esquerda fascista, gays capitalistas, budistas capitalistas. O Rap, e Zeus, não estão de fora do jogo. Zeus, possivelmente, quer ser alguém bem sucedido, como todos os músicos. O Rap, em certos segmentos do rap, há a ostentação. Essa é uma marca dos musicistas negros. Os blueseiros ou jazzistas negros quando ganhavam um pouco de dinheiro investiam na vestimenta, que é a forma de se mostrar ao mundo. Mas em um mundo em que há, como disse, feministas fascistas, esquerdistas fascistas, gays capitalistas, budistas capitalistas... ao reconhecer a loucura da sociedade, não há motivo para julgar os rappers. Todos os sujeitos do capitalismo são maus.
..................................................
Acabar o doutorado fez com que eu sentisse algo de liberdade. A clausura foi dura por mais de quatro anos. Depois da prisão, fiz a festa e ela não terminou. Hoje me penso não como intelectual, mas como poeta, e não como poeta, mas como comediante. A minha comédia não se atualiza apenas na escrita, mas na fala, e também nas falas e gestualidades na rua. Os olhos do grande irmão, o controle, são meus objetos de resistência e são atualizados nos olhares de todos e também nos meus; sei que quando sonho o controle está ali, ou seja, em mim, por isso a experimentação, tentativa e erro. Tenho quarenta e dois anos e todos pensam que tenho 33 já que falo mole, me movimento de forma mole, sou esportista e me visto como quero, além de ser um mentiroso compulsivo, o que permite que eu invente histórias absurdas sobre minha vida. Aprendi que não tem como eu não ser notado pelo meu estilo, pelas minhas cicatrizes, meu porte, e uso isso exatamente para criar graus de estranheza nos ambientes que estou. Me visto de forma estranha, caminho de forma estranha, me relaciono com as pessoas de uma forma que ninguém se relaciona. Isso não é espontâneo, é o projeto, sei o que estou fazendo, aprendi experimentando, percebendo os outros, o que os outros pensam, como pensam, o que percebem, como percebem. As pessoas quando notam os outros os identificam e, se podem, os rebaixam. A lógica capitalista é a de ser o vencedor, o melhor, e se é vencedor não vencendo, mas estando acima dos outros. Assim, com 1 metro e 80 de altura, cheio de cicatrizes na cara, com tatuagens feias, sei que serei notado e intensifico isso exatamente para contemplar, curtir, me divertir com a percepção de todos. As formas de identificação são sempre as mais clássicas: gay, pobre, vagabundo, louco. Esses são os personagens que causam risos nos programas humorísticos: a bicha louca, o louco idiota, o pobre desletrado. Pareço um punk ou uma bicha, eu sei disso, e essa é minha menorização, me ajuda na dessubjetivação. Poderia usar la martina e nike shox nos sábados e domingos nos passeios familiares, como já fiz, e assim ser incluído, pelo menos mais incluído; eu sei me vestir como um pequeno burguês, ou como um hipster, todos sabem, mas me desmonto propositadamente. Acho interessante como as pessoas se assustam com qualquer tipo de diferença, com aquilo que chamam de diferença, como a imagem é importante para elas. Sim, são os olhos do grande irmão vendo, identificando. Comecei a usar algo simples, muito, que são mangas avulsas, mangas separadas da peça. Comprei em lojas de artigos para bike e comecei a usar no verão para não queimar a pele dos braços quando dirijo. Também quando está frio eu as uso, se não quero por uma camiseta de manga comprida, aliás, é muito mais barato ter elas do que comprar camisetas de manga comprida. Todos me perguntam maravilhados o que elas são e dizem que sou excêntrico. Uma simples manga lhes causa estranheza, como se fosse uma falha na matrix. As pessoas têm a necessidade extrema de segurança, e o que foge, o inseguro as coloca próximas ao caos, e elas têm medo do caos. Mangas, sim mangas, podem fazer revoluções, pelo menos em uma cidade do interior do Brasil. Outra coisa que faço com freqüência é ir em restaurantes veganos vestindo jaqueta de couro natural. Causo um mal estar, eu sei disso, mas as vezes acontecem coisas interessantes. Um dia um casal falou para eu ir no burger king, que ali não era meu lugar. Era um casal classe media, de bom gosto, que estava de carro, um carro caro, vestiam roupas da moda e usavam smart phones; eram os veganos incluídos, ecologistas de boutique. Ouvi muitas vezes no doutorado que eu não estava no meu lugar, por agir, me vestir, falar da forma que falo. Ou seja, me coloco como objeto, um chamariz, algo a ser notado, para eu ver as reações, entender o moralismo, os efeitos do controle.  Às vezes me sinto como se estivesse na parede sendo agredido por pedras, mas como é teatro, praticamente não me incomoda, incomoda e dói é perceber os olhos do grande irmão e a impossibilidade de não ser visto por ele, nem na frente do espelho. Eu sou igual a todos, tão mau quanto todos, sacana como todos, a diferença é que eu reconheço isso, não me mascaro dizendo que sou bom.
...........................................
O punk causava insegurança, caos, desordem por sua existência. Uma de suas marcas era o visual, aliás, no rock o visual, às vezes, muitas vezes, se sobrepõe ao musical: os olhos de Bowie, os de Joan Jett, a cara louca de Barret, a maquiagem e as roupas do glam, a beleza de Nico, a loucura no olhar de J Calle, o visual como o mais importante para Genesis P Orridge. Sid Vicious não sabia tocar, mas sabia criar cenas, espetáculos para serem vistos a partir da auto agressão, das brigas. GG Allin era um péssimo músico, mas criava espetáculos ultra violentos para serem vividos e vistos. O punk rapidamente virou moda nos 70, foi mercantilizado, já que o capitalismo recupera todas as produções, as torna produto. Warhol fez o inverso, tornou o produto um objeto artístico. Já como é fruto do grande irmão, o olhar, e ele é a primeira percepção a ser usada, então se usa ele contra ele. De dentro se produz as linhas de fuga, que são relações com o fora. O punk brasileiro, o punk dos países pobres, são, eram os verdadeiros punks, os punks do ABC talvez tenham sido os punks mais puristas. O punk não se monta, ele se desmonta principalmente no visual; ele pega uma calça velha e a rasga e coloca patches, compra um coturno e uma jaqueta de couro usados, mete alfinetes na cara. Daí depois disso, o punk se torna algo como um mendigo com estilo e choca a sociedade, que tem o olhar como percepção principal e o moralismo como base do seu pensamento. Baudelaire causava máxima estranheza com cabelos verdes, falas loucas, e tinha prazer em fazer isso. Wilde era um dandi gay, ou seja, duplamente ator do choque. Rimbaud aterrorizou Paris ao lado de Verlaine. Carvalho, os situacionistas, os filhos da contra cultura todos experimentaram o choque. Chocar é pouco, mas importante criar esse grau de diferença local, e a partir disso ver as relações construídas e perceber o moralismo, os olhos do grande irmão, a paixão pelo controle.  
...................................................................
Incrivelmente nos últimos anos o uso de cigarros aumentou também entre os jovens. As pessoas estão mais saudáveis, senhoras de cinqüenta anos parecem meninas se não olhamos para os seus rostos que mostram a idade. Como todos estão mais saudáveis, pelo menos nas grandes cidades, locais com melhor qualidade de vida, as pessoas não têm mais medo de fumar. As imagens de alerta de enfermidades das carteiras de cigarros tiveram três momentos, de forma crescente, um mais chocante que o outro. No segundo momento já estava óbvio que eram imagens espetacularizadas. Essa tentativa de enganar os sujeitos pela área da saúde e pelo Estado pode ter gerado uma raiva generalizada, que se atualizou no uso. O Estado disse “não” e todos disseram: a vida é minha, não sou criança, não sou um idiota, faço o que quero. O Estado que tenta ser o grande irmão, a área da saúde uma das miradas do grande irmão, que fazem o controle da vida. Fugir disso é perceber de forma diferente, aquilo que chamam de autonomia, e diz respeito ao terceiro olho.