sábado, 6 de maio de 2017

porto alegre, desde os anos 90


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Vivo em Porto Alegre desde os anos noventa. A cidade mudou, eu mudei, o mundo mudou, o Brasil mudou [................] A cidade sempre foi, também, meu espaço de festas, dramas, namoros, loucuras. O adolescente não fica muito em casa já que ele não pode fazer muito nesse tipo de espaço. Maconha tem um cheiro muito forte, e outras drogas deixam louco o suficiente para ser notado. Se a namoradinha é muito nova os pais não vão querer que ela fique no quarto do filho, por respeito aos pais delas. Os pais não aprovam a amizade com certos amigos, então eles não podem frequentar a casa. E o que o adolescente pode fazer é pouco, uma hora cansa e ele vai para a rua. [................]
Os pais de certos amigos, os que tentavam prender os filhos em casa, quando estes estavam próximos dos 15 anos não conseguiam mais impedi-los de sair. Os meus pais foram aos poucos cedendo. Um dia, era de manhã cedo e perceberam que eu não estava em casa. Entenderam que eu tinha passado a noite fora. Eu tinha 14 anos e foi toda uma cena, chamaram até a polícia. Cheguei em casa pelas 10 horas da manhã, minha mãe chorava, como disse, uma cena. Eu tinha ido para a Oswaldo Aranha, fiz a festa com amigos, quando tudo fechou fomos para um bar na Avenida Goethe. Fiquei com uma garota no alpendre de um prédio, foi minha primeira transa. Depois disso, meus pais não podiam mais me dizer: não saia.
Eu morava no bairro Tristeza, ali havia muitas possibilidades de vida noturna, muitos amigos começaram a sair pela cidade a partir desse desbravamento da região. Um dos bares mais famosos da Porto Alegre marginal, o Timbuka, era muito perto da minha casa. O bairro era incrivelmente seguro sem ladrões e polícia. Apenas uma vila próxima tinha algumas gangues de adolescentes, mas eles eram colegas meus, da minha turma, eram amigos.
Esse bairro, Tristeza, é um dos mais ricos da cidade e fica junto de um outro, o Assunção, mais rico ainda, no qual estava situado o Timbuka; além disso, há um colégio público exatamente na parte central do Assunção. O colégio público reunia o pessoal pobre ou de classe média baixa de bairros das imediações. Eu estudei ali por um bom tempo. Para mim, foi muito importante, já que tive meus primeiros amigos pobres e negros. O Timbuka juntava uma turma de malucos, que ia lá para fumar maconha, traficar, beber, cheirar pó. O meu grupo era formado pelo pessoal mais novo que o frequentava. E essa era a grande questão: pra que ficar em casa, quieto, vendo televisão, se a turma podia estar na rua, bebendo, usando drogas, vivendo a vida, curtindo a vida, curtindo tudo aquilo que a cidade, grande, proporciona? Talvez a cidade nem fosse tão fascinante, ainda mais nos anos 90, mas era muito mais do que a casa familiar.
Fiquei fascinado ao ler Bukowski, Kerouac e Fante. Eu já bebia, fumava maconha, era festeiro e peregrinava a cidade de skate. Pelo meu estilo de vida me encontrei na obra deles, isso com 14 anos. A partir dessas leituras e outras não tive mais medo de usar qualquer tipo de droga; a droga que aparecia eu usava. A noite começou a ficar mais louca e perigosa; subir o morro, também, não era mais um problema. Uma das maiores vilas de Porto Alegre ficava em um bairro próximo do local que eu morava, a Cruzeiro do Sul. Quando tinha sorte, comprava lá coca de boa qualidade. Como já andava pela cidade de madrugada e tinha amigos pobres, não havia motivo para ter medo de ir numa vila.  [..........]
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Aqui do lado, do local em que moro, há um dos cartões postais da cidade, o Viaduto da Borges. Nos anos noventa havia muito comércio mais tradicional. Hoje, exatamente hoje, serve de moradia para quem está na rua. Em 2013 ficou marcado como ponto das lutas “por outro transporte público”. Outro ponto tradicional na cidade é a Usina do Gasômetro, junto ao Rio Guaíba, que sempre reuniu turmas de maconheiros no fim da tarde; nos últimos anos está sendo reformulado arquitetonicamente. Na frente do Gasômetro há uma praça que juntava meus amigos punks na virada do século; hoje é uma praça familiar, reconstruída.
Também junto ao Rio, mas no início da Zona Sul, foi fundado um museu, o Iberê Camargo. Ele reúne pessoas nos fins das tardes; é um ponto para se tirar fotos e postar no Faceboook. Além disso, foi construída uma ciclovia que vem do centro até um dos bairros mais caros de Porto Alegre. A ciclovia passa por um shopping center recentemente construído. No local em que está o shopping e a ciclovia, havia uma avenida perigosa, que era ladeada por terrenos baldios e uma vila. Na frente do Museu, uma curva era famosa por ser local de muitos acidentes de carro. Eu sofri um acidente ali, um amigo meu também, e muitos outros. O governo da cidade preocupado com a curva fez muitas tentativas de torná-la segura. Uma delas, foi a criação de sensores na pista, o que não ajudou em nada [..................................]
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Porto Alegre na virada do século era uma cidade diferente. Haviam poucos controles de velocidade de carros nas ruas. Dava para beber nos postos de gasolina e fumar dentro das casas noturnas. A Rua Oswaldo Aranha estava no auge como ponto underground da cidade; as áreas de prostituição da Rua Farrapos e do Bairro Menino Deus eram bem vivas. A casa noturna NEO (antigo Fim de Século) passava pelo seu melhor momento. Outra, o Garagem Hermética, tinha bons shows de bandas locais além de festas para aqueles com interesse em cultura alternativa. Nos domingos à noite o pessoal fazia pegas de carro pela cidade, principalmente na Rua Nilo Peçanha. No fim da tarde de domingo enchia de gente nesse bar, o mais clássico da Zona Sul, o Timbuka. Nas segundas feiras de noite o pessoal tomava o cruzamento da Rua Independência com a Barros Cassal. Também nas segundas uma casa noturna abria, o Virtual. Além disso, ainda funcionavam outras, como o Elo Perdido e o DR Jekill.
Não sei se a cidade nessa época era tão diferente dela no início de 1990 quando tinha acabado de entrar na adolescência. Mas para mim aconteceu uma mudança radical ao começar a dirigir e ter mais dinheiro no bolso, passei a experimentar a cidade de outra forma. Sim, os automóveis são um dos grandes problemas urbanos, mas para um jovem, tirar a carteira, ter um carro em mãos, isso cria um tipo de empoderamento. Comentei sobre os pegas de carros, facilitados pelo trânsito não muito controlado. O pega é uma brincadeira na cidade, meio suicida: andar em alta velocidade pelas ruas, passar sinais vermelhos, não respeitar nenhuma sinalização, e isso as vezes em duplas, grupos de carros
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Na virada do século em Porto Alegre, o carro permitia então passar por todos esses espaços, comentados no primeiro parágrafo dessa parte, de uma forma simples e rápida. Um trajeto comum era ir da Oswaldo Aranha até a Farrapos. Dois pontos distantes, pouco comunicáveis, diferentes. Na Oswaldo, o pessoal ficava na rua, não tinha que pagar para entrar nos bares; dava para estacionar o carro curtir o espaço, sair dele e depois voltar. Na Farrapos, o que interessava era a área de prostituição, as meninas que ficavam nas ruas. O pessoal jovem frequentava a Rua não necessariamente para fazer um programa, mas sim para ver as meninas, falar com elas. E sem um carro fazer tudo isso seria impossível.
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Sempre me interessou a área de indiscernibilidade entre a vida diurna e noturna, quando a festa continua, sem parar: passar noites e dias seguidos na curtição da cidade, sem dormir, usando pó, anfetamina, álcool, o que vier pela frente. É dia, meio da semana, tudo funcionando a todo o vapor, gente no trabalho, os estudantes nas escolas, o trânsito lento e monótono, mas alguns poucos estão em outra lógica. Me interessa essa área de indiscernibilidade entre dia e noite já que diz respeito a uma apreensão, percepção, experimentação diferente da cidade. Virar a noite com a cabeça cheia de muita coisa e se chocar com a vida diurna, essa mudança da noite para o dia já é radical. E se a festa está rolando direto, e não importa qual é o dia, é fácil seguir o ritmo em uma cidade grande. [......................] Virar a noite, não dormir, ficar uma, duas, mais noites acordados, e isso não nas férias na praia, mas em uma cidade urbanizada, isso acentua a percepção molecular. Prostitutas, drogados, traficantes, gente maluca, sempre estão nas ruas, são fáceis de serem encontrados a qualquer hora de qualquer dia; claro que é mais difícil as três da tarde de quarta-feira do que as três da manhã de sexta; mas os malucos sempre se encontram.  
O tempo cronológico é um controle, duro, doloroso, e ele é marcado na metrópole. Em Porto Alegre a maioria das ruas estão praticamente paradas em muitos horários. E isso doí, é uma forma horrível de opressão, estando de carro ou de ônibus. Mas na rua pode ter esse pessoal, no mesmo horário, caminhando ao lado dos carros. Esse pessoal pode estar bêbado e chapado indo em direção do Rio para ver o pôr do sol.

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