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Vivo em Porto Alegre
desde os anos noventa. A cidade mudou, eu mudei, o mundo mudou, o Brasil mudou
[................] A cidade sempre foi, também, meu espaço de festas, dramas,
namoros, loucuras. O adolescente não fica muito em casa já que ele não pode
fazer muito nesse tipo de espaço. Maconha tem um cheiro muito forte, e outras drogas
deixam louco o suficiente para ser notado. Se a namoradinha é muito nova os
pais não vão querer que ela fique no quarto do filho, por respeito aos pais
delas. Os pais não aprovam a amizade com certos amigos, então eles não podem
frequentar a casa. E o que o adolescente pode fazer é pouco, uma hora cansa e
ele vai para a rua. [................]
Os pais de certos amigos,
os que tentavam prender os filhos em casa, quando estes estavam próximos dos 15
anos não conseguiam mais impedi-los de sair. Os meus pais foram aos poucos
cedendo. Um dia, era de manhã cedo e perceberam que eu não estava em casa.
Entenderam que eu tinha passado a noite fora. Eu tinha 14 anos e foi toda uma
cena, chamaram até a polícia. Cheguei em casa pelas 10 horas da manhã, minha
mãe chorava, como disse, uma cena. Eu tinha ido para a Oswaldo Aranha, fiz a
festa com amigos, quando tudo fechou fomos para um bar na Avenida Goethe.
Fiquei com uma garota no alpendre de um prédio, foi minha primeira transa. Depois
disso, meus pais não podiam mais me dizer: não saia.
Eu morava no bairro Tristeza,
ali havia muitas possibilidades de vida noturna, muitos amigos começaram a sair
pela cidade a partir desse desbravamento da região. Um dos bares mais famosos
da Porto Alegre marginal, o Timbuka, era muito perto da minha casa. O bairro
era incrivelmente seguro sem ladrões e polícia. Apenas uma vila próxima tinha
algumas gangues de adolescentes, mas eles eram colegas meus, da minha turma,
eram amigos.
Esse bairro, Tristeza, é
um dos mais ricos da cidade e fica junto de um outro, o Assunção, mais rico
ainda, no qual estava situado o Timbuka; além disso, há um colégio público
exatamente na parte central do Assunção. O colégio público reunia o pessoal
pobre ou de classe média baixa de bairros das imediações. Eu estudei ali por um
bom tempo. Para mim, foi muito importante, já que tive meus primeiros amigos
pobres e negros. O Timbuka juntava uma turma de malucos, que ia lá para fumar
maconha, traficar, beber, cheirar pó. O meu grupo era formado pelo pessoal mais
novo que o frequentava. E essa era a grande questão: pra que ficar em casa,
quieto, vendo televisão, se a turma podia estar na rua, bebendo, usando drogas,
vivendo a vida, curtindo a vida, curtindo tudo aquilo que a cidade, grande,
proporciona? Talvez a cidade nem fosse tão fascinante, ainda mais nos anos 90,
mas era muito mais do que a casa familiar.
Fiquei fascinado ao ler
Bukowski, Kerouac e Fante. Eu já bebia, fumava maconha, era festeiro e
peregrinava a cidade de skate. Pelo meu estilo de vida me encontrei na obra
deles, isso com 14 anos. A partir dessas leituras e outras não tive mais medo
de usar qualquer tipo de droga; a droga que aparecia eu usava. A noite começou
a ficar mais louca e perigosa; subir o morro, também, não era mais um problema.
Uma das maiores vilas de Porto Alegre ficava em um bairro próximo do local que
eu morava, a Cruzeiro do Sul. Quando tinha sorte, comprava lá coca de boa
qualidade. Como já andava pela cidade de madrugada e tinha amigos pobres, não havia motivo para ter medo de ir numa vila. [..........]
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Aqui do lado, do local em
que moro, há um dos cartões postais da cidade, o Viaduto da Borges. Nos anos
noventa havia muito comércio mais tradicional. Hoje, exatamente hoje, serve de
moradia para quem está na rua. Em 2013 ficou marcado como ponto das lutas “por
outro transporte público”. Outro ponto tradicional na cidade é a Usina do Gasômetro,
junto ao Rio Guaíba, que sempre reuniu turmas de maconheiros no fim da tarde; nos
últimos anos está sendo reformulado arquitetonicamente. Na frente do Gasômetro
há uma praça que juntava meus amigos punks na virada do século; hoje é uma praça
familiar, reconstruída.
Também junto ao Rio, mas no
início da Zona Sul, foi fundado um museu, o Iberê Camargo. Ele reúne pessoas
nos fins das tardes; é um ponto para se tirar fotos e postar no Faceboook. Além
disso, foi construída uma ciclovia que vem do centro até um dos bairros mais
caros de Porto Alegre. A ciclovia passa por um shopping center recentemente
construído. No local em que está o shopping e a ciclovia, havia uma avenida
perigosa, que era ladeada por terrenos baldios e uma vila. Na frente do Museu,
uma curva era famosa por ser local de muitos acidentes de carro. Eu sofri um
acidente ali, um amigo meu também, e muitos outros. O governo da cidade
preocupado com a curva fez muitas tentativas de torná-la segura. Uma delas, foi
a criação de sensores na pista, o que não ajudou em nada
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Porto Alegre na virada do
século era uma cidade diferente. Haviam poucos controles de velocidade de
carros nas ruas. Dava para beber nos postos de gasolina e fumar dentro das
casas noturnas. A Rua Oswaldo Aranha estava no auge como ponto underground da
cidade; as áreas de prostituição da Rua Farrapos e do Bairro Menino Deus eram
bem vivas. A casa noturna NEO (antigo Fim de Século) passava pelo seu melhor momento.
Outra, o Garagem Hermética, tinha bons shows de bandas locais além
de festas para aqueles com interesse em cultura alternativa. Nos domingos à
noite o pessoal fazia pegas de carro pela cidade, principalmente na Rua Nilo
Peçanha. No fim da tarde de domingo enchia de gente nesse bar, o mais clássico
da Zona Sul, o Timbuka. Nas segundas feiras de noite o pessoal tomava o cruzamento
da Rua Independência com a Barros Cassal. Também nas segundas uma casa noturna
abria, o Virtual. Além disso, ainda funcionavam outras, como o Elo
Perdido e o DR Jekill.
Não sei se a cidade nessa
época era tão diferente dela no início de 1990 quando tinha acabado de entrar
na adolescência. Mas para mim aconteceu uma mudança radical ao começar a
dirigir e ter mais dinheiro no bolso, passei a experimentar a cidade de outra
forma. Sim, os automóveis são um dos grandes problemas urbanos, mas para um
jovem, tirar a carteira, ter um carro em mãos, isso cria um tipo de
empoderamento. Comentei sobre os pegas de carros, facilitados pelo trânsito não
muito controlado. O pega é uma brincadeira na cidade, meio suicida: andar em
alta velocidade pelas ruas, passar sinais vermelhos, não respeitar nenhuma
sinalização, e isso as vezes em duplas, grupos de carros
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Na virada do século em
Porto Alegre, o carro permitia então passar por todos esses espaços, comentados
no primeiro parágrafo dessa parte, de uma forma simples e rápida. Um trajeto
comum era ir da Oswaldo Aranha até a Farrapos. Dois pontos distantes, pouco
comunicáveis, diferentes. Na Oswaldo, o pessoal ficava na rua, não tinha que
pagar para entrar nos bares; dava para estacionar o carro curtir o espaço, sair
dele e depois voltar. Na Farrapos, o que interessava era a área de
prostituição, as meninas que ficavam nas ruas. O pessoal jovem frequentava a
Rua não necessariamente para fazer um programa, mas sim para ver as meninas,
falar com elas. E sem um carro fazer tudo isso seria impossível.
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Sempre me interessou a
área de indiscernibilidade entre a vida diurna e noturna, quando a festa continua,
sem parar: passar noites e dias seguidos na curtição da cidade, sem dormir, usando
pó, anfetamina, álcool, o que vier pela frente. É dia, meio da semana, tudo
funcionando a todo o vapor, gente no trabalho, os estudantes nas escolas, o
trânsito lento e monótono, mas alguns poucos estão em outra lógica. Me
interessa essa área de indiscernibilidade entre dia e noite já que diz respeito
a uma apreensão, percepção, experimentação diferente da cidade. Virar a noite
com a cabeça cheia de muita coisa e se chocar com a vida diurna, essa mudança
da noite para o dia já é radical. E se a festa está rolando direto, e não
importa qual é o dia, é fácil seguir o ritmo em uma cidade grande. [......................]
Virar a noite, não dormir, ficar uma, duas, mais noites acordados, e isso não
nas férias na praia, mas em uma cidade urbanizada, isso acentua a percepção
molecular. Prostitutas, drogados, traficantes, gente maluca, sempre estão nas
ruas, são fáceis de serem encontrados a qualquer hora de qualquer dia; claro
que é mais difícil as três da tarde de quarta-feira do que as três da manhã de
sexta; mas os malucos sempre se encontram.
O tempo cronológico é um
controle, duro, doloroso, e ele é marcado na metrópole. Em Porto Alegre a
maioria das ruas estão praticamente paradas em muitos horários. E isso doí, é
uma forma horrível de opressão, estando de carro ou de ônibus. Mas na rua pode
ter esse pessoal, no mesmo horário, caminhando ao lado dos carros. Esse pessoal
pode estar bêbado e chapado indo em direção do Rio para ver o pôr do sol.
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