Já tentei inúmeros tipos de estilos desde
quando comecei a escrever. Meu primeiro trabalho era de contos sobre realidades
delirantes. Em determinado momento escrevi um livrinho de poemas conceitual,
com linguagem de rua, mas que não funcionou e ficou esquecido. Amadureci meu
trabalho com um livro de crônicas, também conceitual, que se centra em minhas
experiências principalmente na adolescência. [........] O estilo deste livro
difere do estilo das crônicas do terceiro capítulo do livro anterior publicado
neste volume, mas há proximidades. Como já disse na primeira parte do outro
livro, este é uma linha de fuga, um aumento de território, a tentativa de
produzir o descontrole, de enlouquecer pelo menos na língua. Deleuze fala em
gagueira, estrangeirismo na própria língua [.....] Aqui fujo da língua
dominante dentro dela; e gírias, expressões de rua mostram a sua maleabilidade.
Certas turmas em certas estações, certos guetos em certas estações, os jovens,
os marginais, os drogados criam expressões que só têm sentido para eles nesses
momentos, e o que eles fazem, é poesia, considerando poesia como um devir menor
da língua. Eu uso aqui muitas expressões dos inúmeros guetos que pertenci, e
aliás, mesmo sendo doutor, eu não consigo fugir de certos vícios de linguagem
de rua, quando falo, seja em aula, palestra, o que for e que se foda. [........]
E não só em relação às expressões, alguém chapado de maconha, morfina tem um
ritmo de fala diferente, mais lento, pausado, baixo, calmo. Alguém louco de
cocaína ou anfetamina tem uma fala rápida, dura, sem respiração, direta [...]
Quem está louco de coca não quer parar de falar, por isso, conta histórias em
detalhes, os mínimos detalhes para prolongar ao máximo a fala [....] Ele, o
cheirado, não quer contar uma história quer apenas falar. [...] Membros da
trupe de Andy Warhol gravavam conversas presenciais ou por telefone loucos de
anfetamina. [................] A ideia
do texto que segue surgiu quando eu com frequência comecei a pensar em frases
sem sentido. Me perguntei se seria possível escrever algumas páginas com frases
do tipo. Fiquei espantado que escrevi de forma fluida o que será apresentado
posteriormente. [........] Há um ritmo em todo o texto, variações, mas todas as frases foram escritas e editadas para serem lidas, apresentadas em voz alta. A
linguagem da rua é a fala, dificilmente é atualizada na escrita, por isso a importância
da poesia, registrar esses fluxos linguísticos. [...............] As frases
absurdas que compõem o texto, mesmo as mais absurdas, que talvez sejam
impossíveis de serem lidas, foram escritas de tal forma que posso declamá-las.
No trabalho de revisão, e foram muitas revisões, manter o ritmo foi central. Ou
seja, as frases não foram simplesmente jogadas no texto, elas passaram por um
tratamento rigoroso. [........] Todas as frases são curtas. Frases curtas
permeiam meu trabalho literário. As frases curtas ajudam no ritmo; é mais fácil
de narrar, ler, uma frase curta; e como as frases são absurdas ou se conectam
com outras de forma absurda, quanto mais longas, mais difícil seria de manter esse
ritmo. Sempre achei pequeno burguês frases longas, escritas por aqueles que têm
total domínio textual, que se permitem escrever frases de muitas linhas para
mostrar seu domínio. Textos escritos para pequenos burgueses, os que que
conseguem manter a leitura de frases que nunca acabam. [.....] O carinha de rua,
o jovem, o marginalzinho, ele fala rápido e muitas vezes essa fala é composta apenas
de gírias, expressões de rua [......] No texto há graduações de absurdidade, de
falta de sentido, essas graduações se referem às experimentações, ao mapa que
fui montando, pequenas diferenças internas, as quais busquei, mas sem sair do
conceito do texto. Me perguntava: quanto posso enlouquecer, quais novas linhas
traçar, mantendo o conceito? [........................]
O texto é dividido em blocos, os blocos não narram histórias, há muitas frases
isoladas, que não se ligam a outras, porém, algumas frases se conectam a partir
de um possível sentido. Há um narrador, alguém, uma primeira pessoa que fala
para outros. Há sujeitos, algo como personagens, mas eles não agem, não tem
história, são citados a partir de um humor peculiar. Há humor, e muito, pelo
menos para mim. Também estão presentes alguns elementos de cultura pop, cultura
drogada. Palavras de baixo calão estão em todos os blocos, além de gírias e
expressões de certos guetos de jovens e drogados – aliás, se histórias forem
buscadas em certas partes podem ser encontradas, pelo menos por mim, e são
histórias referente à sexualidade livre e ao uso de drogas. O texto pode ser
recortado, como se quiser, pode ser lido de qualquer forma: é um caos, mas
organizado... Ele foi finalizado quando atingiu o tamanho mínimo de um livro de
literatura já que talvez nem tenha sido feito para ser lido. [....] Mas como
disse: o texto não é espontâneo, não são
palavras jogadas na tela. Escrevi com calma, li e reli, reescrevi, tirei muita
coisa, coloquei coisas novas. É necessária uma tal rigorosidade para se criar
um trabalho absurdo e caótico, considerando que quem escreveu “Diego este que
fala” é um bom cidadão, criado na academia, doutor. E mais, considerando que
tenho experiência na escrita, que não sou naif sempre estudei literatura e
artes, sei que tentar enlouquecer na arte pode se transformar em qualquer coisa.
Esse tipo de exercício é importante, já que se realiza em um meio em que posso
enlouquecer sem ser preso: a literatura; ou seja, é quase medicina. [....] E
isso já permite um grau de loucura para o leitor. Se alguém enlouquece na rua,
na sala de aula, em casa, no trabalho, pode ser preso, mal visto ou internado.
Gosto de ser mal visto. Enlouquecer é buscar linhas de fuga dos padrões – a
prisão – dominantes. Enlouquecer na escrita; um pouco de ar, vida – louca vida.
sexta-feira, 26 de maio de 2017
sábado, 13 de maio de 2017
curtições
Dia
de semana, fim da tarde; notei alguns caras – o que me pareciam guardadores –
em volta de dois carros. Notei que eles olhavam para dentro dos carros. Voltei
a escrever e no cigarro seguinte fui para sacada, e tive a sorte de ver os dois
carros, grandes, caros, serem abertos no mesmo momento; e mais, saíram no mesmo
momento. Obviamente, foram roubados por aqueles que estavam em volta deles. Mas
o mais importante, me perguntei se eu delataria uma ação desse tipo. Carros
caros, comprados por cidadãos de bem, gente próxima a mim, roubados por ladrões
de rua. Eu não tenho nenhum apreço por ladrões profissionais, que desejam ser
ricos, como não tenho por banqueiros, políticos. E quanto ao cidadão de bem,
que compra seu carro com esforço, um dos grandes bens de sua vida? Tenho algum
apreço por ele? O defenderia daqueles que precisam, ou mesmo querem, ir às ruas
para roubar? Deleuze e Guattari eram ladrões profissionais, e os admiro. Eu sou
um ladrão pé de chinelo, e não estou procurando ser admirado. Sempre quando
ouvia a palavra “doutor”, ficava com medo, pensava: alguém muito importante
está próximo. Hoje, ser doutor para mim significa muito pouco. É interessante
como o empresário cheirador de pó, yuppie, o pesquisador alcoólatra, a dona de
casa que toma valium, como esses são tão bem aceitos socialmente; o que não
acontece com o ladrãozinho pobre que rouba para manter seu vício. O empresário
se orgulha de si, se sente feliz por não ser um ladrãozinho. O intelectual se
considera especial, por pensar o mundo, como se pensar fosse algo restrito a
poucos. E eu estou no meio disso, não estou livre, sou mais um; melhor, menos
um. Rimbaud dizia que era um negro. O Beatnik era negro, melhor, white negro.
Os White Phanters queriam ser negros armados. Negri foi um presidiário. Deleuze
foi um fraco, suicida; Hemingway e Thompson também. Bukowski, o vagabundo; os
ladrões, viciados, gays como Burroughs, Jim Carrol. Vagabundos, presidiários, michês,
suicidas, ladrões, me sinto bem com eles. [.......................] Há toda
essa tradição, na literatura, no cinema, na música, nas artes em geral que
tratam do excesso, da vida em excesso, dos prazeres diferenciais. Na literatura
para citar alguns: Baudelaire, os Beats, Bukowski, o Gonzo, Piva, Huxley,
Artaud, Pepe Escobar, Breton, Blake. Os Beats são centrais pelo contado deles
direto, físico com a contracultura norte americana. Burroughs, o Beat com mais
idade, é considerado pai da arte pós-moderna. Sua escrita era tão radical
quanto seus excessos. Kerouac, o
escritor desse livro tão importante para a geração da contra cultura, On the Road,
produziu uma escrita que está na borda entre realidade e ficção. A vida dele
era tão rica que se negou a escrever algo além dela. Kerouac ajuda na escrita
etnográfica, já que ele fez seu trabalho de campo pelos Estados Unidos e o
narrou em seus livros. Bukowski se irmana a Kerouac, já que ambos mostram
realidades duras, da estrada, da pobreza, da narcose, do alcoolismo. Se os escritores apresentavam eles mesmo suas
loucuras em suas obras, as vidas de muitos músicos, tão loucos quanto, são
expostas principalmente pelo jornalismo alternativo e cultural. Documentos
sobre os músicos que surgem a partir do sessenta – talvez o início de uma tradição
de suicidas, drogados, sexualmente perversos – são muitos, em formato de vídeo
e texto. São tantos, que afirmam o
fascínio por essas vidas singulares. No rock é muito comum a criação de guetos,
micro fascismos; muitos fãs se apegam a um estilo e rechaçam todos que destoem
desse estilo escolhido. Porém, no que diz respeito ao excesso, estilos
diferentes se ligam, há esse comum entre a psicodelia, o pré punk, o punk. O
pop vende a imagem do artista belo, jovem, saudável, o pop é uma música para o
bom cidadão. Entretanto, são muitos os artistas vendidos dessa forma, mas que
têm vidas desregradas. No rock, marginal, o estilo de vida desregrado é
mostrado de forma descarada. E como já
me perguntei no livro algumas vezes: por qual motivo valorizam essas vidas que
parecem não ter valor? Vício,
abstinência, prisão, temporadas em manicômios, ressacas longas e duras. O que
todos eles mostram é que a vida cotidiana é insuportável, por isso, preferem os
excessos mesmo que sejam extremamente dolorosos. É melhor o risco da morte do
que a vida das pessoas comuns. E não fazem isso para se ser uma pessoa
especial, já que um viciado não é alguém especial é um pária; e mesmo se é
glorificado pelo que faz, ninguém ficaria feliz em ser um. É comum dizerem que
as drogas ajudam na criação. Talvez em certo momento, antes da prisão do vício.
Fascina muito mais quem está de fora, o fã, do quem está por dentro, o viciado
pesado.
sexta-feira, 12 de maio de 2017
tomações
No fim da tarde, quando começa a
escurecer, a vista fica mais bonita, com as luzes dos prédios. Agora, pessoas
se reúnem em grupos pequenos no Largo; alguns fumam maconha. Depois da hora de
pico os carros passam com mais velocidade. Como estou sem internet, a vista é
minha tela. Fiquei dez anos no ap. antigo. Fiz as contas e o que gastei de
aluguel – nesses dez anos – daria para comprá-lo. O mais curioso é que eu
estava para locar um outro apartamento, que coincidentemente era da mesma
proprietária desse ap. antigo. Talvez ela tenha comprado o imóvel com o meu
dinheiro; e eu continuaria sendo sugado por ela. Aprendi na prática como o
inquilino está à mercê do proprietário. Porém, há uma liberdade em alugar, não
ter um imóvel, ter pouco, não ter laços fortes, isso para mim é importante. Ter
pouco a perder, essa é a alegria do vagabundo. Ele tem seu corpo, sua
linguagem, seu carrinho, seus desejos. [.................] A Cidade Baixa é um
dos bairros de Porto Alegre com maior número de moradores de rua. Aqui na
frente, numa praça junto ao Largo, se reúnem muitos deles. No bairro, uma
mulher que pede esmolas volta e meia desaparece e reaparece. Em 15 anos vi ela
grávida inúmeras vezes. Na República, uma das ruas mais bonitas da Cidade
Baixa, há um outro morador de rua, com idade avançada, que está ali faz uns
seis anos. Também o bairro tem muitos guardadores de carros, jovens, que
possivelmente não têm moradia. Além disso, junto a um conjunto habitacional,
faz alguns anos, um grupo grande passa o dia junto a colchões e colchas velhas.
O bairro também conta com um albergue popular e seu entorno (do albergue) reúne
essas pessoas que possuem apenas o que podem carregar com as mãos. E mais, o
cartão postal da cidade, nos últimos tempos, aglomera tendas em toda sua
extensão, se tornou espaço dos que não têm casa – é o Viaduto da Borges, que
fica a três quadras daqui e o veria se não existissem alguns prédios que tapam
a vista. A prefeitura volta e meia desaloja o pessoal, mas eles sempre voltam.
Interessante é o fato de que o Viaduto já foi palco de batalha entre
manifestantes e polícia, principalmente em 2013. [.......................]
Em 2013 jovens saíram do Centro e vieram
até o Largo. Ali, lutaram contra a polícia, depredaram carros e edifícios.
Nessa época, eu e um amigo, numa segunda feira, estávamos no local, em um
encontro de um coletivo libertário. Meu amigo queria tomar uma cerveja; eu
disse: vamos, mas depois voltamos. Atravessamos a Perimetral e vimos junto a
uma praça um bloco policial, todos policiais armados e em posição de ataque.
Passamos por eles. Os policiais, por fim, não agiram contra o coletivo, mas
como a cidade estava “muito quente” na época, eles faziam o controle. As
brechas na cidade não são poucas. O controle não é absoluto na cidade pela
própria estrutura dela. O poder quer que as linhas de fuga não existam, mas
existem. [........................] O nojo dos cidadãos para com os moradores
de rua mostra quem eles – os cidadãos – são; odeiam qualquer coisa que macule a
cidade que deve ser higienizada, modelada – é, eles desejam o controle. Os moradores de rua, são os sujeitos da vida
nua, despida de bens, eles praticamente não consomem, não tem moradia, são
feios e sujos, vivem do lixo. Mas são uma das diversidades do tecido urbano.
Não é uma pobreza voluntária e esse é o problema. Porém, a riqueza deles é algo
que deve ser mapeado.
.................
Essa
minha relação afetiva com a cidade é muito antiga. Quando comecei a usar
maconha – diariamente, três, quatro, cinco, mais baseados, isso com treze anos –
gostava de fumar principalmente, antes da aula, de manhã, e enfrentar a rua;
era o primeiro “beque” do dia e assim fazia efeito. Eu gostava de contemplar,
sentir o início do dia chapado. Eu pegava ônibus, ficava na janela e olhava
para a rua como se estivesse vendo um filme. Curtia, também, quando ia fumar
com meus amigos mais velhos de carro. Era a mesma sensação, o para-brisas como
tela. Quando estava sentado do lado do motorista, ficava olhando o espelho
retrovisor que parecia uma pequena televisão. [..........................] Minha
primeira crônica foi sobre o trecho de uma estrada que vai de Porto Alegre até
uma cidade vizinha; minha primeira reportagem foi sobre a noite na cidade. Na
monografia trabalhei com a vagabundagem urbana. Parte da tese dediquei à cidade
de Barcelona. [............] A questão afetiva sempre moveu meus trabalhos, por
isso, não me encaixo na identidade ideal de pesquisador, de cientista. O que
move meu trabalho, sempre, é o afeto. Considero que é impossível pensar o
mundo, a sociedade em que vivemos, sem sentir dor, medo, frustração e, até
mesmo, um sentimento perigoso como o de insuportabilidade. Mas, como as linhas de fuga estão sempre
agindo, como a multidão produz, resiste, deseja, pensar nisso permite afetos
nobres, como paixão, alegria. E como ou por qual motivo abstrair isso – o afeto
– se está sempre presente? Falar de forma aberta, franca, demonstrar os
sentimentos, não se perder em uma assepsia própria a ciência é uma falha, um
erro? Sim, é um erro, mas eu gosto de errar. Quando falo “eu” (e isso é
frequente aqui) afirmo minha posição afetiva, tento fugir da fala impessoal
acadêmica; mas obviamente ‘eu’ não diz muito. Dizer “EU” é rotular, criar uma
fotografia que nega os fluxos, as conexões, os agenciamentos. O livro está
cheio de memórias pessoais que dizem respeito a esse “eu”, mas foi a forma que
encontrei para pensar certos coletivos e os processos que passam as cidades. Como
já disse, há contradições no meu trabalho, claro, pois é uma experimentação.
.......................
[....................]
Como havia pessoas no pátio dessa ocupação aqui perto – que eu estava rondando
faz um tempo – eu abordei o pessoal e disse: olha, eu pesquiso okupas, eu
passei aqui na frente inúmeras vezes, vocês devem ter me notado, estava com
vergonha de me aproximar de vocês, já que eu sei que o pessoal antissistema não
gosta de pesquisadores, mas gostaria de falar com um de vocês, fazer perguntas
sobre o funcionamento do espaço, como ele está sendo gerido [..............] O
coletivo, no momento, era formado por garotas, já tinha notado que a maior
parte dos membros eram mulheres. As garotas me interrogaram e muito, disseram
que eu deveria saber que eles não são abertos ao diálogo, pelo menos com gente
como eu, um pesquisador. Notei que elas estavam incomodadas com a situação.
Quando vi que não haveria realmente diálogo eu disse: peço desculpas por ter
vindo aqui, não vou mais passar na frente do espaço, admiro vocês, que vocês
fiquem bem e que dê tudo certo.
........................................................
[...................]
As pessoas pensam sempre no futuro, desejam um bom mundo, mas que sempre está
além e, por isso, não dão importância para o que está acontecendo, agora no
presente. E o que é o presente? Tempos diversos sempre estão interagindo. O tempo
do drogado não é o tempo do bom cidadão. O tempo em uma okupa funciona de forma
diferente do tempo em uma empresa ou escola. Qual presente? [.....................]
A revolução Contra Cultural aconteceu faz quanto tempo? E não foi apenas
cultural, uma revolução de costumes – não há como separar cultura de política –,
foi uma luta contra o poder reticular, as disciplinas, os dispositivos de poder
atualizados: no chão da fábrica, na universidade, nas relações parentais, na família
como destino obrigatório, no Estado de Bem Estar que estancava as lutas mais
radicais, no patriarcado, nos gêneros e na sexualidade, no racismo, na guerra
as drogas.................. [........................] As lutas moleculares de 68 atingiram as malhas
do poder e o mundo não foi mais o mesmo; direitos foram conquistados; porém o
poder, tomou outras formas, mais capilares. A empresa modulada,
desterritorializada, impediu a luta dos trabalhadores. As minorias se tornaram
consumidores e produtores. O poder transcendente, mais localizado, os termos
dominantes que se sobrepunham a termos menores, ficaram mais fluidos, imanentes.
A sociedade de controle abarcou todo o social. Se na sociedade disciplinar
ainda existiam buracos, brechas de subversão, na sociedade de controle o poder
começou a aparecer em todo o lugar. Os cidadãos, todos, viraram policiais, de
si e dos outros. Formas novas de opressão surgiram. [.............................]
Uma das formas de opressão é exatamente a negação de que estamos em outro
paradigma, faz muito tempo. Qual presente? Ainda usam conceitos de outros
paradigmas para pensar o presente. As dicotomias correm soltas, como se o mundo
fosse uma coisa simples, uma luta de opostos que leva para um bom futuro. As dicotomias
ainda correm soltas: homem x mulher, inteligência x idiotia, loucura x sanidade,
riqueza x pobreza, trabalho x vagabundagem, norte x sul, ciência x empiria, público
x privado, frieza científica x paixão artística, indivíduo x massa, eu x o
outro, direita x esquerda. Isso é o óbvio, o que todos veem, muitos só enxergam
isso. Só que eles não entenderam as lutas de 68 e desconhecem as lutas em rede
que começaram com os Zapatistas. Eles desconsideram as análises de poder de Foucault
(o velho, mas sempre presente Foucault), não entendem o trabalho de Deleuze,
nunca leram Negri. E não por falta de inteligência; eles não suportam a
insegurança que o trabalho do pensamento da diferença produz, já que este mostra
um mundo caótico, deliciosamente caótico. Usam bases intelectuais de um
paradigma para pensar outro. Ou seja, se loucura é estar fora da realidade,
isso é loucura. Qual presente? [.....................................................]
O idiota não é alguém com menos saber, não há problema em ter menos saber. Idiotia
é amar a segurança ao ponto de não querer enxergar o caos, e o caos é o mundo. O
pensador privado em sua sala, aquele que pensa, se vê como um indivíduo, que
gosta de ser visto como um sujeito pensante, dono de suas ideias, autor, ou
seja, o gênio moderno, se ainda existe, não consegue ler Deleuze, já que ama
sua segurança, sua vidinha pequeno burguesa. Ele, o que faz é apenas dar certa consistência
para o que pensa, pensamento que na verdade é só reflexo do senso comum. Se acha
especial por conseguir falar e escrever o que pensa, mas como disse, ele pensa
como todos, é tão moralista, conservador, idiota como todos; só é um idiota com
um capital. Como pouquíssimos conseguem fazer isso, ele se acha diferente dos que
não escrevem e falam de forma articulada. Ele gosta de pensar e falar muito e
sempre, ou seja, extensivamente, não intensivamente, por isso, não há diferenças
de natureza entre um idiota que não escreve e um idiota que escreve, só
diferenças de grau. [..........] O que pouco veem e o que o “intelectual” não vê
é o caos. Para ele, caos é uma expressão pejorativa, idiotia é sua forma de se
impor em relação aos outros, loucura é o que ele detesta já que é um moderno,
racional. Mas idiotia é o bom senso; caos é a beleza do mundo, que deve ser experimentada
com certa cautela; loucura, esquizofrenia são marcas do pós-moderno, são possibilidades
de alegria ou expressões do poder. [.................................]. Os movimentos
em rede não precisam ler Negri já que sabem muito bem o que Negri pensa. Deleuze
e Negri já fizeram o trabalho de leitura e contextualização de Marx, Espinoza, Foucault,
Bergson e tantos outros. Apenas o “gênio” moderno – que vive faz décadas na
pós-modernidade e não sabe – que tentaria se colocar ao lado de Negri e fazer
sua leitura de Marx para pensar o paradigma atual. [..............] Contra a
segurança, dura, linha dura da mentalidade velha e cansada, contra isso temos a
leveza e a liberdade da criação de conceitos novos. “O velho tem que morrer” é
uma palavra de ordem dos setenta, mas faz tempo que morreu; e muitos tentam dar
vida ao cadáver. [...........].
...................................
Em Porto Alegre, nos últimos tempos, a
mobilidade ficou mais fácil, a partir de muitas ciclovias criadas. Está na moda
se locomover de skate, bike e roller. E me parece que isso faz parte da moda hipster.
O hipster difere dos que estão na moda, é alternativo; porém ser hipster é uma
moda, mesmo que dita alternativa. Para ser um tem que se estar dentro de certos
padrões. O hipster é ligado em arte e cultura de massa cult; tem interesse em
gastronomia. Visualmente, a partir de suas roupas, se percebe um sem
dificuldades: barbas longas, cabelos alinhados, camisas de manga curta com
colarinho apertado e bermudas (ambas com adornos psicodélicos), tênis social,
óculos enormes. Durante mais de um ano, ao menos em Porto Alegre, foi usado por
homens um tipo peculiar de corte de cabelo: Razor, uma imitação do corte dos
samurais. Todos os hipsters o usavam. Da mesma forma que surgiu, o cabelo razor
despareceu, de uma hora para outra. A Cidade Baixa é o bairro hipster de Porto
Alegre. Aqui há os cafés com bebidas não alcoólicas especiais, os
restaurantes-bares com comidas, feitas de forma criativa, e cervejas
artesanais. Além disso, o bairro tem inúmeras casas noturnas com som chamado
alternativo. O bom gosto gastronômico aliado ao bom gosto musical. Nos últimos
meses em Porto Alegre e, claro, na Cidade Baixa, começaram a aparecer centros
de moda hipsters. Neles se faz o cabelo, a barba, tatuagens, se toma cerveja e
se come. É uma moda tão pegajosa que é difícil não ter certos atributos da
identidade hipster, tanto que há hipsters que odeiam ser chamados de
hipsters. Quanto a questão da
mobilidade verde, aliada de um certo repúdio a grandes empresas, marcas dos
hipsters, isso diz respeito a um tipo de anti-capitalismo, a uma questão
ecológica, portanto, desvios de certas normas dominantes. Mas o Hipster se
desvia da norma para criar uma nova norma. Ele é o bom cidadão das redes
sociais, ele vai às ruas, luta por seus direitos, milita como pode, é o sujeito
controlado, mas que vive como se tivesse um grande grau liberdade. Ele se sente feliz por lutar por um bom
mundo, acredita que está construindo um bom mundo possível. Se sente feliz por ser quem é: politizado,
com uma moral elevada, além de ser alguém diferenciado. O barulho que faz é
pouco, não abala em nada os códigos dominantes; esse barulho não passa de uma
resistência incluída, ou seja, não é resistência. Se o cidadão está feliz, não
incomoda. E se ele sente feliz por ter um sentido em sua vida, ele pode dizer:
eu vivi, eu lutei, eu busquei um bom mundo, sou uma pessoa especial.
................
quinta-feira, 11 de maio de 2017
sacações
[..................................]
Dessubjetivar com drogas, que é um tipo de
dessubjetivação, mas a partir de outras linhas de fuga e devires, faz parte da
ética dos drogados. Dessubjetivação é uma questão ética, o sentido de uma vida,
a forma mais importante de resistência. A cartografia não é uma questão apenas
intelectual, e não precisa ser: um disco, um livro, uma transa, uma tomada da cidade, a relação com a
droga podem ser mapas.
[.............................................................................]
E obviamente quando falo em loucos, em
enlouquecer, estou falando em fluxos esquizos, experimentações de modulações do
caos, que são os mapas, aumentar o território, dessubjetivar.
[......................]
Há um comum [....] que aproxima marginais,
coletivos libertários, artistas, filósofos, cientistas; esse comum concerne a formas
de viver e pensar o mundo, que não deixam de ser também políticas, já que
viver é uma questão ética, estética, não de sobrevivência. Penso que a não
aceitação do controle, a luta contra ele, é esse comum. A luta contra o
controle é o ponto de partida para experimentações, criações de linhas de fuga.
E as linhas de fuga possibilitam uma percepção ou experimentação do molecular. Essa
percepção move este trabalho. Esse comum também toma uma forma mais direta, quase física: certos artistas, da linha
romântica, aqueles que viveram e muito, e muitas vezes isso está mais que
visível em suas obras, foram marginais e influenciaram coletivos
libertários. Muitos desses coletivos têm
contato direto com teóricos. Teóricos libertários foram
influenciados por artistas românticos e vice versa; e muitos desses artistas
são teóricos, e certas obras do campo do conhecimento são obras de arte
romântica. Essas proximidades se devem já
que, como disse, há uma questão existencial que os aproxima.
[.............................................]
Deleuze não inventou a percepção
molecular, deu um nome a ela, essa percepção tão especial que nos permite
fugir, devir outro, enlouquecer. E quanto a fuga, a linha de fuga: Deleuze não
inventou a fuga da prisão, nem o rap nos presídios ou o baseado antes do café
da manhã. [........] Uns chamam a potência da vida de “aquele momento em que
faço sexo com minha 'Garota Mágica' e parece que meu coração explode”, outros
de “quando estou dormindo, junto a 'Ela' e [......................]
[.................................]
Perceber que até o funcionamento do corpo
é uma prisão [......] que a cidade é uma prisão, que fazer parte de um povo é
estar preso a sua identidade, perceber que ser homem, branco racional é uma
prisão, que uma família, escola, empresa são prisões, perceber que o sexo pode estar centrado em tarinhas de almanaque, que quando se delira
muitos dos delírios são apenas neuroses presenteadas pela espetacularização da área
médica, perceber que os porcos pensam, são racionais e têm bom senso, muito mais do que a maioria dos humanos, que prazeres são vendidos no atacado, que mesmo a
luta na rua pode afirmar o modelo político dominante [..........................]
Perceber tudo isso pode levar a impotência ou a abolição. [....] Negri e Deleuze
criaram esses conceitos que são linhas de fuga em relação a tudo isso, que nos
mostram o vitalismo , possibilidades de formas de vida não
capturadas; conceitos que afirmam a crítica total e radical e ajudam a
enfrentar o encarceramento ao ar livre. E para compreendê-los, os conceitos, se
necessita ativar a percepção molecular. E como ativar? Vivendo.
[..............................]
Importante reconhecer as significações
dominantes, em nós, na vida, na sociedade e traçar as linhas de fuga, isso é a
cartografia, uma dessubjetivação em constante processo: não sou mais tão idiota, mas permaneço idiota. E deve permanecer, importante
ter um pouco de segurança. Idiota
não é uma pessoa, como o crítico da idiotia não é uma pessoa; percepção
molecular e idiotia não são duas coisas separadas isoladas, são linhas de um
agenciamento. Mesmo ao produzir crítica podemos estar afirmando o
controle, o descontrole pode muitas vezes se confundir com o micro fascismo,
por isso a cartografia.
[................]
Sim, eu sei ler, escrever, interpretar,
muitos não conseguem dar consistência para o que pensam, mas isso não me torna
especial, já que muitos fascistas, seres
sacanas, sabem ler, escrever e interpretar; e fazem isso melhor do que eu.
Talvez o que eu faça bem seja esse processo de despersonalização em que “Eu”
não diz muito, diz muito pouco. A despersonalização não exige inteligência,
genialidade e, sim, abertura ao caos.
[........]
O comando central é desnecessário já que
as regras e normas circulam livremente: sabemos as formas “corretas” de sentar,
nos portar, caminhar, falar, urinar, cagar, nos alimentar, fazer sexo. Sonhamos
com um futuro, acordamos de manhã, dormimos à noite, regramos os excessos, nos
vestimos, amamos, conversamos, trabalhamos, estudamos, festejamos, ficamos
felizes, nos submetemos [....] fazemos tudo isso,
e muito mais, naturalmente. Sim, todos sabem disso, mas estou falando obviedades já
que é divertido rir de tudo isso,
dessa vida de rebanho afirmada duramente.
Fazer sexo, ter prazeres, amar, e muito mais, são obviamente importantes, o
problema é quando há uma forma correta de fazer isso e os desvios são
rechaçados. A forma correta une as pessoas, e isso é muito diferente do comum
que é a base da tradição romântica, marginal [....] A grande importância social dessa tradição é mostrar que a vida pode
ser tão bela, melhor, tão interessante, quanto uma bela, melhor, interessante
obra de arte.
[........................................]
Posso apresentar muitas palavras de ordem
que dizem respeito à base de dispositivos de poder, ao senso comum do bom cidadão: “é um policial,
então mostre os documentos”. “É um pai, um
padre, um patrão: respeite”. “ Faz frio: se agasalhe”. “É uma vida, a sua:
não se mate”. “É um drogado, um traficante: fuja”. “É uma rua: caminhe na faixa”.
“São sete horas da manhã: acorde”. “Está tarde: durma”. “É sexta: fique
feliz”. “Fuja da pobreza”. “Ele leu muitos livros: é um bosta de intelectual, o
respeite”. “Está com fome: coma”. “Não fume: é proibido”. “Ame a vida. Seja
feliz”. “Está com dor de dente: vá ao dentista”. “Seja de direita ou de
esquerda.”.
[.........]
A arte cria um
outro mundo, muito mais interessante por ser fictício. A função da droga não é
essa? Arte, alucinações, devires são realidades em si mesmas. Fictício diz
respeito à diferença, é tão real quanto o real, é melhor. [.........]. Para entender o mundo não se necessita de teses, estudos de caso, e
sim, se experimenta a arte; a arte ajuda a entender o mundo, mesmo que seja o
mundo das percepções e afecções [....] A cidade é o suporte dessas proezas que alguns
fazem: deliram a cidade, deliram na cidade.
[..........]
Junk, como chamam heroína, significa lixo
e é uma das drogas mais potentes. A percepção molecular diz respeito a droga; é
um estado narcótico, não é sadio [....] Mas a bad trip para quem curte drogas é algo interessante. O pesadelo é
uma experiência das mais ricas; ser assaltado, ser esfaqueado, sofrer um
acidente, enfrentar cirurgias, sofrer de abstinência, transar com garotas e
depois saber que estavam doentes; enfrentar o mundo, vivê-lo com toda sua dor e
alegria. O prazeroso e o doloroso, o triste e o feliz, esses conceitos são
rasteiros; importam sim, os excessos; experimentar. Bukowski em um poema diz que
se pôr em risco, mas com estilo, que isso é arte; ou
seja, a existência deve ser uma obra de arte.
[........]
Talvez o erro seja mais importante. O fazer acadêmico é o certo. O certo é a assepsia. O vagabundo é sujo, o punk é sujo, o hippie é sujo. Esse texto é meio punk, meio hippie. A pureza é importante, desde que seja uma anfetamina pura, coca pura, o que cria um corpo sujo, doente, drogado, maculado.
Talvez o erro seja mais importante. O fazer acadêmico é o certo. O certo é a assepsia. O vagabundo é sujo, o punk é sujo, o hippie é sujo. Esse texto é meio punk, meio hippie. A pureza é importante, desde que seja uma anfetamina pura, coca pura, o que cria um corpo sujo, doente, drogado, maculado.
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sábado, 6 de maio de 2017
porto alegre, desde os anos 90
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Vivo em Porto Alegre
desde os anos noventa. A cidade mudou, eu mudei, o mundo mudou, o Brasil mudou
[................] A cidade sempre foi, também, meu espaço de festas, dramas,
namoros, loucuras. O adolescente não fica muito em casa já que ele não pode
fazer muito nesse tipo de espaço. Maconha tem um cheiro muito forte, e outras drogas
deixam louco o suficiente para ser notado. Se a namoradinha é muito nova os
pais não vão querer que ela fique no quarto do filho, por respeito aos pais
delas. Os pais não aprovam a amizade com certos amigos, então eles não podem
frequentar a casa. E o que o adolescente pode fazer é pouco, uma hora cansa e
ele vai para a rua. [................]
Os pais de certos amigos,
os que tentavam prender os filhos em casa, quando estes estavam próximos dos 15
anos não conseguiam mais impedi-los de sair. Os meus pais foram aos poucos
cedendo. Um dia, era de manhã cedo e perceberam que eu não estava em casa.
Entenderam que eu tinha passado a noite fora. Eu tinha 14 anos e foi toda uma
cena, chamaram até a polícia. Cheguei em casa pelas 10 horas da manhã, minha
mãe chorava, como disse, uma cena. Eu tinha ido para a Oswaldo Aranha, fiz a
festa com amigos, quando tudo fechou fomos para um bar na Avenida Goethe.
Fiquei com uma garota no alpendre de um prédio, foi minha primeira transa. Depois
disso, meus pais não podiam mais me dizer: não saia.
Eu morava no bairro Tristeza,
ali havia muitas possibilidades de vida noturna, muitos amigos começaram a sair
pela cidade a partir desse desbravamento da região. Um dos bares mais famosos
da Porto Alegre marginal, o Timbuka, era muito perto da minha casa. O bairro
era incrivelmente seguro sem ladrões e polícia. Apenas uma vila próxima tinha
algumas gangues de adolescentes, mas eles eram colegas meus, da minha turma,
eram amigos.
Esse bairro, Tristeza, é
um dos mais ricos da cidade e fica junto de um outro, o Assunção, mais rico
ainda, no qual estava situado o Timbuka; além disso, há um colégio público
exatamente na parte central do Assunção. O colégio público reunia o pessoal
pobre ou de classe média baixa de bairros das imediações. Eu estudei ali por um
bom tempo. Para mim, foi muito importante, já que tive meus primeiros amigos
pobres e negros. O Timbuka juntava uma turma de malucos, que ia lá para fumar
maconha, traficar, beber, cheirar pó. O meu grupo era formado pelo pessoal mais
novo que o frequentava. E essa era a grande questão: pra que ficar em casa,
quieto, vendo televisão, se a turma podia estar na rua, bebendo, usando drogas,
vivendo a vida, curtindo a vida, curtindo tudo aquilo que a cidade, grande,
proporciona? Talvez a cidade nem fosse tão fascinante, ainda mais nos anos 90,
mas era muito mais do que a casa familiar.
Fiquei fascinado ao ler
Bukowski, Kerouac e Fante. Eu já bebia, fumava maconha, era festeiro e
peregrinava a cidade de skate. Pelo meu estilo de vida me encontrei na obra
deles, isso com 14 anos. A partir dessas leituras e outras não tive mais medo
de usar qualquer tipo de droga; a droga que aparecia eu usava. A noite começou
a ficar mais louca e perigosa; subir o morro, também, não era mais um problema.
Uma das maiores vilas de Porto Alegre ficava em um bairro próximo do local que
eu morava, a Cruzeiro do Sul. Quando tinha sorte, comprava lá coca de boa
qualidade. Como já andava pela cidade de madrugada e tinha amigos pobres, não havia motivo para ter medo de ir numa vila. [..........]
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Aqui do lado, do local em
que moro, há um dos cartões postais da cidade, o Viaduto da Borges. Nos anos
noventa havia muito comércio mais tradicional. Hoje, exatamente hoje, serve de
moradia para quem está na rua. Em 2013 ficou marcado como ponto das lutas “por
outro transporte público”. Outro ponto tradicional na cidade é a Usina do Gasômetro,
junto ao Rio Guaíba, que sempre reuniu turmas de maconheiros no fim da tarde; nos
últimos anos está sendo reformulado arquitetonicamente. Na frente do Gasômetro
há uma praça que juntava meus amigos punks na virada do século; hoje é uma praça
familiar, reconstruída.
Também junto ao Rio, mas no
início da Zona Sul, foi fundado um museu, o Iberê Camargo. Ele reúne pessoas
nos fins das tardes; é um ponto para se tirar fotos e postar no Faceboook. Além
disso, foi construída uma ciclovia que vem do centro até um dos bairros mais
caros de Porto Alegre. A ciclovia passa por um shopping center recentemente
construído. No local em que está o shopping e a ciclovia, havia uma avenida
perigosa, que era ladeada por terrenos baldios e uma vila. Na frente do Museu,
uma curva era famosa por ser local de muitos acidentes de carro. Eu sofri um
acidente ali, um amigo meu também, e muitos outros. O governo da cidade
preocupado com a curva fez muitas tentativas de torná-la segura. Uma delas, foi
a criação de sensores na pista, o que não ajudou em nada
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Porto Alegre na virada do
século era uma cidade diferente. Haviam poucos controles de velocidade de
carros nas ruas. Dava para beber nos postos de gasolina e fumar dentro das
casas noturnas. A Rua Oswaldo Aranha estava no auge como ponto underground da
cidade; as áreas de prostituição da Rua Farrapos e do Bairro Menino Deus eram
bem vivas. A casa noturna NEO (antigo Fim de Século) passava pelo seu melhor momento.
Outra, o Garagem Hermética, tinha bons shows de bandas locais além
de festas para aqueles com interesse em cultura alternativa. Nos domingos à
noite o pessoal fazia pegas de carro pela cidade, principalmente na Rua Nilo
Peçanha. No fim da tarde de domingo enchia de gente nesse bar, o mais clássico
da Zona Sul, o Timbuka. Nas segundas feiras de noite o pessoal tomava o cruzamento
da Rua Independência com a Barros Cassal. Também nas segundas uma casa noturna
abria, o Virtual. Além disso, ainda funcionavam outras, como o Elo
Perdido e o DR Jekill.
Não sei se a cidade nessa
época era tão diferente dela no início de 1990 quando tinha acabado de entrar
na adolescência. Mas para mim aconteceu uma mudança radical ao começar a
dirigir e ter mais dinheiro no bolso, passei a experimentar a cidade de outra
forma. Sim, os automóveis são um dos grandes problemas urbanos, mas para um
jovem, tirar a carteira, ter um carro em mãos, isso cria um tipo de
empoderamento. Comentei sobre os pegas de carros, facilitados pelo trânsito não
muito controlado. O pega é uma brincadeira na cidade, meio suicida: andar em
alta velocidade pelas ruas, passar sinais vermelhos, não respeitar nenhuma
sinalização, e isso as vezes em duplas, grupos de carros
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Na virada do século em
Porto Alegre, o carro permitia então passar por todos esses espaços, comentados
no primeiro parágrafo dessa parte, de uma forma simples e rápida. Um trajeto
comum era ir da Oswaldo Aranha até a Farrapos. Dois pontos distantes, pouco
comunicáveis, diferentes. Na Oswaldo, o pessoal ficava na rua, não tinha que
pagar para entrar nos bares; dava para estacionar o carro curtir o espaço, sair
dele e depois voltar. Na Farrapos, o que interessava era a área de
prostituição, as meninas que ficavam nas ruas. O pessoal jovem frequentava a
Rua não necessariamente para fazer um programa, mas sim para ver as meninas,
falar com elas. E sem um carro fazer tudo isso seria impossível.
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Sempre me interessou a
área de indiscernibilidade entre a vida diurna e noturna, quando a festa continua,
sem parar: passar noites e dias seguidos na curtição da cidade, sem dormir, usando
pó, anfetamina, álcool, o que vier pela frente. É dia, meio da semana, tudo
funcionando a todo o vapor, gente no trabalho, os estudantes nas escolas, o
trânsito lento e monótono, mas alguns poucos estão em outra lógica. Me
interessa essa área de indiscernibilidade entre dia e noite já que diz respeito
a uma apreensão, percepção, experimentação diferente da cidade. Virar a noite
com a cabeça cheia de muita coisa e se chocar com a vida diurna, essa mudança
da noite para o dia já é radical. E se a festa está rolando direto, e não
importa qual é o dia, é fácil seguir o ritmo em uma cidade grande. [......................]
Virar a noite, não dormir, ficar uma, duas, mais noites acordados, e isso não
nas férias na praia, mas em uma cidade urbanizada, isso acentua a percepção
molecular. Prostitutas, drogados, traficantes, gente maluca, sempre estão nas
ruas, são fáceis de serem encontrados a qualquer hora de qualquer dia; claro
que é mais difícil as três da tarde de quarta-feira do que as três da manhã de
sexta; mas os malucos sempre se encontram.
O tempo cronológico é um
controle, duro, doloroso, e ele é marcado na metrópole. Em Porto Alegre a
maioria das ruas estão praticamente paradas em muitos horários. E isso doí, é
uma forma horrível de opressão, estando de carro ou de ônibus. Mas na rua pode
ter esse pessoal, no mesmo horário, caminhando ao lado dos carros. Esse pessoal
pode estar bêbado e chapado indo em direção do Rio para ver o pôr do sol.
sexta-feira, 5 de maio de 2017
cartografia
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O idiota é o bom cidadão; é o controlado,
é aquele que afirma as significações dominantes. Mas o idiota não é alguém, uma
pessoa, diz respeito a uma forma de pensar. Não há como não ser idiota, não
pensar como todos, não ser bom cidadão. Porém, pode-se traçar linhas de fuga,
ficar menos protegido, experimentar. Isso pode ser na arte, na vida, na
ciência, na filosofia, na música, no que for.
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O controle não necessita de um comando
central; as pessoas vigiam a si e aos outros. A cartografia não é
autovigilância é exatamente a compreensão da vigilância, e o que se pode ou se
quer fazer em relação a isso. As pessoas são apegadas a uma certa normalidade e
lutam a todo custo para mantê-la. Se sentem seguras aprisionadas, longe do
caos. Gostam de suas casas, querem elas bem cuidadas e agradáveis. E quando
estão na rua se sentem bem em ver um policial. Seria um mundo perfeito se
houvessem policiais em todas as esquinas; mas há policiais tão duros, ou
piores, nas ruas, por todos os lados, como disse, vigiando os outros e a si
mesmo.
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Não é fácil, principalmente sendo um
doutor, branco, classe média, compor a cartografia, já que os devires, as
linhas de fuga são mais imperceptíveis para a subjetividade dominante. É
interessante que muitos, o bom cidadão, só conseguem pensar em termos de macro
política, política do Estado. Desconsideram a micro política, que não é menos
expressiva, mas se refere a outras lógicas. Não conseguem enxergar a multidão
já que ela não tem rosto e não assina seu próprio nome. Ninguém diz: ‘somos a
multidão’; ou: ‘ali está a multidão’. Já um político é facilmente identificado:
tem um nome, um partido, fala por si mesmo, se representa. Políticos de
qualquer esquerda são um atraso, parece que não viveram a virada do século; se
tivessem vivido não seriam políticos, esses “Eus” centrados, personas; eles
deveriam estar no meio dos movimentos em rede, ser mais um na multidão. Sim, os
indivíduos são importantes e singulares nos movimentos, mas não são
egocêntricos ao ponto de ter o desejo de salvar o mundo sendo um político do
Estado. As pessoas enxergam apenas o visível: um político, um rosto, um
posicionamento ideológico, um discurso. Belzebu é um enxame; Legião (o demônio)
é uma multiplicidade; Baphomet é um monstro impuro; isso é a Multidão, não um
bom Deus, seu bom filho, alguém acima, em um mundo ideal que dá as leis para
que seus filhos vivam. Por isso, Negri trata os políticos, o Estado, como
afirmadores de transcendência. Voltamos para a luta primeva? Deus X a Legião
Demoníaca? Talvez por isso não se fale em multidão e movimentos em rede e sim
apenas na política estatal. O demoníaco não pode nem ser mencionado pelos
fanáticos pela transcendência. Isso mostra a necessidade de uma nova percepção
para entender um outro mundo vivo, atual e caótico – e só os loucos enxergam o
caos.
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O bom cidadão é apaixonado por si e os
seus, eles são bons; o vagabundo é o erro da sociedade, como os outros párias.
Mas o vagabundo mostra outras realidades, tempos possíveis, e isso dói no bom
cidadão já que ele é apaixonado por sua vida. O bom cidadão, o sujeito
incluído, de classe média, que vive com mais segurança que os outros, se ama
tanto que deseja que todos tenham uma vida igual a sua, essa é sua utopia. Ele
não aceita a vida do pária, o pária não pode ser pária, ele não pode ter essa
possibilidade de vida. Todos têm que trabalhar, ter casa, ser consumidor, ter
seus deveres e cumpri-los. Mais democracia, mas numa falsa democracia, continua
sendo falsa democracia; capitalismo mais humano continua sendo
capitalismo. Claro que ‘bom cidadão’ é
uma identidade ideal que não abarca uma pessoa, todos fogem, enlouquecem de
certa forma, mesmo sem notar.
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A não aceitação da vida como ela é imposta
é a crítica, assim, mesmo sem produzir obra, sem teorizar a sua existência, o
drogado é um crítico apenas por ser quem é. É radical, não aceita a percepção e
a afecção normatizadas, não aceita o funcionamento do próprio corpo, não aceita
o tempo cronológico, as leis, é contra a lógica do trabalho assalariado, mas
produz, sim, essas formas de vidas críticas. Pensar assim, no drogadinho como
crítico, permite que se fuja da transcendência, de colocar a teoria, o campo do
saber, em um local privilegiado. Viva a sabedoria das ruas!
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Método? Se faz o possível em determinado
momento a partir de certas condições para produzir, pensar e viver. Não há
método para viver. Cartografia não é um método. Percepção molecular não diz
respeito a métodos. Ver, ouvir, cheirar, tocar, lamber, perceber o mundo
molecularmente não é método, é questão existencial. Cartografia não é um método
a ser usado para se pensar determinados tipos de objetos. Não se tem a
cartografia em mãos e se usa ela quando em campo. A percepção molecular, por
ser um tipo de percepção, está sempre acionada, em alguns momentos fica mais
clara, expressiva. É a percepção livre dos freios da normatização. Muitos não a
notam, ou se assustam com ela. Como ela faz parte da vida, pensar sobre ela, é
pensar sobre a vida.
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Creio que os “meus” cacos de memória, que
misturam sonhos, alucinação, drogadição, vida em vigília, lembranças pela
metade ou borradas, com buracos negros sempre presentes, são como Cut Ups,
recortes prontos e daí…. os uso aqui nesse texto. Burroughs escreveu muitos
livros a partir de Cut Ups completamente louco de morfina. Ele mesmo dizia que
relia seus escritos e não tinha ideia de como aquilo havia sido escrito. Os Cut
Ups, como cacos de lembranças, não se referem a método, os cacos são
experiências de vida, que já estavam mais consistentes ou que foram aparecendo
na escrita, se atualizando. Assim, em muitas partes o livro toma a forma de um
mosaico, os cacos reunidos.
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Perceber valor na vida de um viciado,
abobado, desletrado como um punk, pode parecer um romantismo bobo, mas creio
que seja importante buscar valor no extremo da pobreza. O discurso corrente
diz: “o suicida se matou pela tristeza”, “o mendigo é totalmente infeliz pela
pobreza”, “o preso de forma alguma conseguiria sorrir”, “o viciado em crack tem
que se regenerar”. Qualquer um, mesmo o bom cidadão tem momentos de tristeza e
alegria. Um fumante de crack, um mendigo, um preso tem seus momentos de
alegria. Um viciado em crack é tratado como um rato, ou é preso ou morto, mas
naquele momento que junta um pouco de dinheiro, quando o tem em mãos, ele se
dirige para a boca, pega as pedras e se recolhe feliz em sua tenda imunda; daí
ele acende a pedra e se a quantidade for o suficiente para o seu vício, o
suficiente para que ele se chape, fique bem chapado, naquele momento ele é mais
feliz que um rei, ele é um rei. Claro que depois o barato passa e ele sente a
pior dor que pode ser sentida por alguém.
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A poesia, o que ela faz bem é trazer,
atualizar, mostrar, todos esses fluxos linguísticos, de fala, do que seja,
menores, perdidos por aí: na rua, em certos guetos, em certas estações,
cidades. Enlouquecer na língua, enlouquecer a língua, fazer ela delirar, foder
a língua, a currar como ela merece. O acadêmico é aquele que fala corretamente;
ele fala como poucos já que os da sua casta falam assim. Contra essa prisão,
contra a seriedade dos caretas, a fala do louco, daquele que não domina a fala,
do ignorante que se quer assim e que se foda, não mais que isso. E o coração do
poeta está com estes, os párias.
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Este livro é uma experimentação, nele testo
estilos de escrita: crônica, ensaio, caderno de notas, cadernos de notas
refinado, texto acadêmico, literatura. A crônica atravessa todos os capítulos,
como também insights, sacações que podem ser elementos da crônica. Junto a tudo
isso está a cartografia, que não é um método, e se isso transparece em certos
momentos se deve as contradições internas do trabalho.
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O grande tema do livro, portanto, é a
cidade, pensada como local do controle, o qual é afrontado pelas
experimentações dentro dela, contra e fora de controle. O que move o livro é a
tentativa de experimentação de uma percepção molecular, essencial para pensar a
potência das formas de resistência dentro da cidade.
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Acentuando o caráter experimental do
trabalho, após o fim do livro, publico no mesmo volume um outro livro. Sim, é
outro livro, tem um tamanho mínimo de um livro de literatura, e é publicado
conjuntamente, pelos seguintes motivos: 1. Foi escrito ao mesmo tempo que o
primeiro livro. 2. Ele é continuação das linhas de fuga traçadas. 3. Ele possui
uma escrita absurda, é totalmente experimental, não sei se foi feito para ser
lido [..........] Esse outro livro é a dessubjetivação em estado mais bruto e
ele será apresentado com mais detalhes em uma abertura em seu espaço nesse
volume.
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