“Franco Berardi, mais conhecido por Bifo (Bolonha, 1949) é um filósofo e agitador cultural italiano" (WIKIPÉDIA)
Conheci o trabalho de Bifo no hoje desativado site rizoma e em alguns textos do Peter Pál Pelbart. Fiquei bem interessado com a forma como ele relaciona comunicação e resistência. Guattari e Bifo tiveram ligaçoes com a emergência das rádios livres na europa nas décadas de setenta e oitenta. Infelizemente tem pouca coisa dele traduzida aqui no Brasil; de livros apenas a Fábrica da Infelicidade.
O texto mais recentes de Bifo que encontrei (de 2009) foi publicado no generation-online, site que tem algumas traduções para o inglês de autores da crítica italianos, como o famoso Antonio Negri, e Paolo Virno que também trabalha com o conceito de multidão, entre outros.
Segue abaixo parte do texto que trata da crise atual do capitalismo e das potencialidades da crise. Tradução (livre) do inglês é minha do original que se encontra aqui.
O COMUNISMO ESTÁ DE VOLTA, MAS DEVERÍAMOS CHAMÁ-LO DE TERAPIA DA SINGULARIZAÇÃO
Franco Berardi
1. Além do nosso conhecimento
Economistas e políticos estão preocupados: eles chamam o que está acontecendo de crise e esperam que ela se revele como as crises que atingiram a economia no século passado, e que apenas deixaram o capitalismo mais forte. Eu acho que o que está acontecendo é diferente. Isso não é uma crise, mas o sintoma de incompatibilidade da potência das forças produtivas (trabalho cognitivo em rede) e o paradigma do crescimento. Isso não é uma crise, mas o colapso final de um sistema que perdurou pelos últimos cinco séculos.
As grandes potências mundiais estão tentando resgatar instituições financeiras. Mas o colapso financeiro afetou o sistema industrial, a demanda está caindo, empregos são perdidos aos milhões. No objetivo de resgatar os bancos o Estado está tirando dinheiro de impostos futuros, e isso significa que a demanda cairá ainda mais nos próximos anos. As despesas das famílias estão em declínio, e conseqüentemente a produção industrial será demitida. Isso não terminará em poucos anos, essa situação será eterna.
Em artigo para o Herald Tribune o conservador moderado David Brooks diz: “estou preocupado, pois estamos operando além de nosso conhecimento econômico.” Este é o ponto: a complexidade da economia global está além de qualquer conhecimento e governança. Apresentando o plano de regate de Obama, em fevereiro de 2009, Timothy Geithner, o secretário do tesouro americano, disse: “eu quero ser franco. Esta estratégia custará dinheiro, ela envolve riscos e tempo. Nós teremos que nos adaptar enquanto a situação muda. Teremos que tentar coisas que nunca tentamos antes. Cometeremos erros. Entraremos em período, no qual as coisas ficarão piores e o progresso será interrompido.” Enquanto essas palavras mostram a honestidade intelectual de Geithner e a diferença entre a nova liderança americana comparada com as “Bushites”, elas também apontam o colapso da autoconfiança política.
O conhecimento político que herdamos da filosofia racionalista moderna é inútil agora. Caos (um grau de complexidade que está além do entendimento humano) é o novo rei mundial. Os problemas que o mundo está encarando atualmente não podem ser resolvidos pelo caminho da adaptação e racionalização econômica. O paradigma capitalista não pode mais ser o domínio universal da atividade humana.
A história do capitalismo moderno acabou. E daí?
2. Net vs Crime
Vamos dar uma olhada retrospectiva na ascensão e queda da economia neoliberal, a economia da lei do mais forte. Há dois lados na economia pós-moderna dos últimos trinta anos: um que pode ser chamado de “Net-Economy”, e o outro, “capitalismo criminoso”. A net-economy é baseada na colaboração e compartilhamento, na criação de novas formas de administração da atividade social. A net-economy desafia o principio proprietário que reinou na sociedade capitalista moderna.
A fim de repensar e reimpor o domínio proprietário, o capitalismo reagiu de forma criminosa: a face criminosa do capitalismo é baseada no abandono de toda regra legal na busca de lucro e santificação da competição. Políticos criminosos levaram a economia global para a desordem presente, mas os criminosos estão ainda no poder em todas as nações, enquanto eles falharam em governar a realidade caótica criada pela desregulação. [...]
Uma contradição cresce entre o intelecto geral e a classe criminosa dominante. Quem vencerá?
A vitória de Obama nos Estados Unidos pode ser a abertura de um novo período na evolução da humanidade. Este acontecimento injetou novas esperanças no exército pacífico do intelecto geral em todo o mundo. O novo presidente foi eleito pelo trabalho cognitivo, e sua vitória é a derrota da classe criminosa representada por Cheney-Bush. Mas essa vitória marca apenas o inicio da luta que acontecerá entre as forças intelectuais e a força bruta da ignorância e do lucro.
A classe criminosa, composta de aventureiros das finanças, administradores de grande corporações, se apropriou do poder em duas direções: primeiro com a declaração neo-liberal da primazia da competição sobre qualquer domínio ético, político e legal. Segundo através da ocupação dos sistemas de produção da mente coletiva: o sistema de mídia. Fabricando esperanças e a imaginação coletiva, as mídias finalmente oprimiram a classe produtiva cognitiva; e dominou a exploração para os pesadelos dos explorados.
A privatização do espaço social comunicativo (propaganda, tv) produziu um efeito de alienação, de privatização da vida [...] que aniquilou com a solidariedade social, e forçou cada pessoa a pensar no isolamento de suas necessidades. Tome por exemplo a privatização da mobilidade, como uma distorção da esfera pública. Um objeto irracional, poluidor e desajeitado como o automóvel privado, foi objeto central da produção industrial no século 20.
Por qual motivo os automóveis têm que ser privados? Eles poderiam ser objetos públicos que cada pessoa poderia pegar e usar por um tempo, e então deixá-lo aberto na rua, pronto para o transporte de outras pessoas. Eles poderiam ser substituídos por um sistema de transporte público muito mais confortável. Por qual razão o sistema público de transporte foi sabotado pela classe dominante nas últimas décadas? Nós sabemos muito bem. A economia capitalista cria escassez no domínio dos transportes, como nos outros domínios. A criação de escassez é a premissa da acumulação, possibilitada pela privatização da necessidade.
Durante os anos 90 a ascensão da produção em rede e a expansão da cibercultura libertária abriram caminho para uma aliança entre capitalismo financeiro e trabalho cognitivo. Sob a bandeira do pontocom, jovens intelectuais e cientistas poderiam encontrar dinheiro para criar seus próprios empreendimentos, e um processo de redistribuição de renda tornou-se possível. Mas essa aliança quebrou-se quando a classe criminosa tomou o controle da nova potência tecnológica e a sujeitou ao poder da guerra. A experiência do pontocom foi capturada pela isca neoliberal, e na primeira década do novo século o trabalho intelectual tornou-se precário, forçado a aceitar todo tipo de chantagem econômica. A classe criminosa escravizou a classe cognitiva: o conhecimento foi fracionado, rendas reduzidas, a exploração cresceu.
O crash do pontocom e o 11/9 marcaram a submissão da experiência high tech. Isso perverteu a potência da tecnologia e do conhecimento, provocando incontáveis vítimas; o ódio se espalhou por todo o mundo. [...] Cidadãos do oeste foram convidados por Bush a viajar e consumir. Fazer shopping contra o terror, contra a depressão. Mas estes acessos massivos ao consumo eram financiados com uma vasta dívida. A população européia foi sistematicamente empurrada a comprar quantias enormes de coisas inúteis, mentalmente intoxicada pela publicidade e forçada a identificar felicidade com consumo e bem-estar com posses.
A privatização da necessidade e a redução do bem-estar a aquisições destruíram todo sentido de dignidade e amor próprio. O tempo social foi ocupado pelo fluxo de publicidade. [...] amor, ternura, sexo, afecções e cuidado com os outros transformaram-se em mercadoria. Cada pessoa tornou-se proprietária de muitos cartões de crédito, obrigada a trabalhar mais e mais a fim de pagar uma dívida cada vez mais crescente. Dívida tornou-se universal, e isso criou as condições perfeitas para o colapso. No fim o colapso aconteceu.
O crescimento nunca mais voltará, não apenas porque as pessoas não poderão pagar pela dívida acumulada durante as três ultimas décadas, mas também pelo fato de que os recursos físicos do planeta estão próximos do esgotamento, e os recursos nervosos do cérebro social estão próximos do colapso.
3. Protesto ético e Guerra
No fim dos anos 90, quando o processo de globalização e privatização estava além de criticas e sua potencial devastação estava bem escondida nas palavras dos gurus neoliberais, um movimento de protesto ético surgido da classe do trabalho cognitivo tornou-se consciente dos perigos da desregulação. No fim do século capitalista, em Seattle, centenas de milhares de pessoas se reuniram e marcharam com o objetivo de parar o encontro da OMC e protestar contra os efeitos da exploração global.
Foi o início da Era das Manifestações Éticas. De Seattle à Genova, de Praga à Bolonha, multidões de trabalhadores precários e cognitivos marcharam juntos. Eles eram a consciência ética do mundo, e, é claro, a agressão policial, instigada pela classe criminosa, tentou os esmagar. Alguns morreram, assasinados, pois falavam a verdade. Eles queriam avisar as pessoas do planeta que havia um grande perigo. Agora nós sabemos que eles estavam certos. Os No-global protesters davam a nós um aviso da catástrofe vindoura, e agora a catástrofe está aqui.
Catastrophe em grego significa uma mudança de posição que possibilita a visão de coisas que não poderiam ser vistas antes. Catástrofe abre novos espaços de visibilidade, e, portanto de possibilidade, mas também ela exige uma mudança de paradigma. Os manifestantes éticos foram derrotados após a marcha mundial contra a guerra em 15 de fevereiro de 2003. Cem milhões de pessoas marcharam contra a guerra no Iraque naquele dia. Bush disse que não precisava de conselhos, e ele começou a guerra.