As páginas posteriores
são sobre cacos de memória, referidos a Porto Alegre na virada do século.
Tratam da indiscernibilidade entre dia e noite, sonho e vigília, lucidez e
alucinação, realidade e ficção. São coisas que vi, fiz, ouvi, outras que possivelmente
são buracos negros, invenções, truques da memória. Como são situações que não tenho
certeza se aconteceram, escrever sobre elas é literatura ou autobiografia? Por
isso, no caso, o registro artístico é mais importante do que o trabalho
cientifico, a arte expõe melhor a loucura e a narcose do que as ciências.
De madrugada, acabei de
sair de um bar, pedi um ácido prumas pessoas, desconhecidas, não sei se me
deram, se eu tomei. Estou descendo de carro a rua do Jardim Botânico, os vidros
abertos, som alto, alta velocidade, começo a respirar fundo, fundo, mais fundo,
de repente cada inspiração é como seu eu estivesse aspirando um gás que sobe
direto pro meu cérebro e me dá uma sensação de prazer. A rua fica flat, paro em
um sinal, a alucinação acaba de súbito. Penso no que aconteceu: eu tomei o
ácido? A turma me deu alguma droga, uma droga nova? Nunca havia sentido isso.
Me envenenaram? No chão da parte da frente do carro, várias caixas de vários
tipos de medicamentos estupefacientes.
Estou voltando de carro
de Canoas, cidade ao lado de Porto Alegre; tinha virado a noite. Me sinto bem;
não sei o que tinha tomado, não que eu não lembre, mas eu não sei, e não sabia.
Devia ter tomado muita coisa. Estou na estrada e tenho um acesso de risos. Não
consigo parar de rir. Me sinto louco, mas não me importo.
A gangue na frente da NEO
de manhã; a luz do dia que quase cega; me sinto meio oprimido pela luz. Poucos
carros na avenida, um pouco frio. Um carro passa em alta velocidade e um dos caras
do grupo golpeia o carro e quebra o espelho retrovisor. Isso realmente
aconteceu? Poderia acontecer algo do tipo? Um carro na rua em alta velocidade
pode ser golpeado por alguém que tá a pé? E mais, esse alguém nem se lesionou.
Tomei ácido e codeína no
Garagem Hermética. A codeína tinha batido, mesmo que eu precisasse de doses
cavalares pra fazer efeito já que eu tomava feito água. O ácido não tava
batendo. Chego em casa de manhã nada do ácido ainda, mas sentia um vento
gostoso passando sobre mim, um frio agradável. De repente, paro na frente do
espelho e me olho. Olho fixamente e quase vejo os ventos. E daí, ouço uma voz: “se
despeça de mim”, ela diz. Ouço isso apenas quando olho o espelho. Na semana
seguinte uma amiga de infância se mata com um tiro.
Saio de um puteiro na
Cidade Baixa de manhã, estou na rua. Devo ter passado a noite junto com as
prostitutas. Me direciono pra casa, que ficava na quadra abaixo. Ouço uma
prostituta gritar meu nome, não dou bola e continuo caminhando. Tudo estranho; a estranheza de se encarar o
dia depois de ter estado a noite toda em um lugar fechado e escuro. O que se
passou? Provavelmente isso aconteceu inúmeras vezes, mas eu não tenho memórias
claras.
Nova York, década de 70,
Iggy Pop louco de muita coisa como sempre. Ele passa por um pessoal, diz “oi”,
mas não vê uma escada. Ele cai, rola pra baixo. Todo mundo diz: ele morreu. Mas
ele se levanta e continua caminhando como se nada tivesse acontecido. Quando li
a história pensei: acho que isso aconteceu comigo naquela casa noturna no fim
dos 90.
É de manhã, passo na área
administrativa da cidade depois de uma longa noite. Passo um sinal vermelho, a polícia
me para, e diz: “cara, é a segunda vez que você faz isso na semana; eu não vou te
passar no bafômetro hoje, mas na próxima eu te prendo”.
Eu tava vidrado nessa
mina. A gente se via sempre na NEO e ela virava a cara pra mim. Num domingo na
Oswaldo Aranha ela cede e a gente vai pro meu ap na Cidade Baixa. É de noite,
madrugada, ela se apoia na janela, nua. Nunca havia visto uma mulher tão bela,
gostosa. A gente transa na janela mesmo, olhando pra rua. Depois acho que já é
dia, a gente tá na sala, eu estou nu e ela tá com aquele vestido negro
mostrando o corpo. Horas mais tarde estou sozinho em casa e vejo que ela tinha
escrito em meu diário: “vai a merda, eu te amo”. Na noite posterior a tudo
isso, a garota que eu gostava, uma ninfeta dez anos mais nova, permite que eu a
beije, não na boca, como rolou no Parque da Redenção horas antes, mas em seus
peitos, em seu ventre, em sua vagina. Daí, dias depois, estou fumando um na
janela e vejo que ela – a ninfeta – lê meu diário; ela lê aquilo que a outra
mina tinha escrito: “vai a merda, eu te amo”. Ela, a ninfeta, foi embora e
nunca mais a vi.
Caminho pela rua, parece
que estou caminhando sempre, sem parar, dia e noite. Encontro um amigo e a
gente vai tomar uma ceva num bar perto da Redenção. Antes eu tava na Redenção beijando
duas EMOS. Sempre encontrava elas e não sei o que mais rolava, não lembro. Eu e
o amigo a gente tava bebendo uma cerveja e comentei com ele: acho que eu tava de
tarde no centro, perto da Matriz, tinha poucas pessoas na rua, vi uma mina. A
gente, eu e a mina se olhou, eu beijei ela, assim do nada. Nunca tinha visto
ela e ela gostou. Sim, isso aconteceu, mas eu não me lembro.
Eu, minha amante e minha namorada,
a gente foi pro acampamento do Fórum Social Mundial. Isso em 2001 ou 2003 ou
2002. Minha namorada ficou conversando com minha segunda amante e eu fiquei com
a minha primeira já que ela tinha várias caixas de Valium e Rohypnol. Então ela
foi me dando comprimidos. Eu pedia, ela me dava. Isso era de noite quando o
pessoal dançava, bebia e tocava instrumentos rústicos entre fogueiras. De manhã
a gente chega em casa, não sei como. Mas lembro bem de tomar tudo que ela tinha
em mãos, mas não lembro da overdose, nem quando me levaram pro ambulatório. E
tudo isso pode ter sido um sonho.
É uma noite escura, estou
na Barros Cassal. Eu encontro aquela mina com sotaque estranho que era atriz de
filmes de terror pornô. Em outra noite eu pedi pra fotografar os peitos dela,
enquanto o diretor dela tava cheirando cocaína em um grande espelho, isso no Garagem
Hermética. Daí eu tava com a mina e a gente deu umas voltas pela cidade de
carro. Acho que tava junto aquele cara, o Paulista. Eu digo pra ela que não
posso comprar codeína, a única farmácia que tinha não vendia mais pra mim. Ela
vai até a farmácia com as receitas e consegue comprar. Daí o Paulista, enquanto
ela comprava, disse que iria me dar pelo menos mil reais se a gente roubasse a
farmácia. Eu mudo de assunto. A gente tava num posto perto na Farrapos e o Paulista
desaparece num carro com um psicopata cheirador. Eu fico com ela como queria. A
gente tira umas fotos. Eu peço um beijo e ela me chama de infantil. Deixo ela
em algum lugar muito longe, talvez na Avenida Assis Brasil.
O dia nasce e estou
caminhando em direção da Farrapos pra ir num puteiro; tinha perdido o
carro?
Eu e minha namorada a
gente decide conversar sobre a relação dentro do banheiro de um bar na Lima e Silva.
A gente entra e começa a conversar. Ao mesmo tempo uma das atendentes do bar
fica batendo na porta dizendo pra gente sair. A gente não sai, ficou lá uma meia
hora. Nossa turma de amigos tava lá fora fazendo não sei o que, mas nos
esperando. Dez anos antes eu e meus amigos a gente entra em um banheiro
minúsculo pra cheirar pó pela primeira vez. A porta começa a bater, e a gente
ouve berros pedindo pra que a gente saísse. Isso era meio óbvio já que era o
único banheiro masculino de um bar que enchia de caras que bebiam cerveja. Mas
lá no bar da Lima e Silva eu e minha namorada a gente ouve uma voz alta e
masculina dizendo: é a polícia, se não abrirem a porta, vamos derrubar. A gente
abriu e saiu sem problemas; apenas nunca mais deixaram a gente entrar no bar.
Mas o mais interessante é que a polícia bate as sete horas da manhã na porta do
meu ap na José do Patrocínio. Pensei: me ralei. Eu abro a porta e o policial
diz: mas você de novo! Era o policial que me tirou do banheiro em que eu tava
com minha namorada. Nesse dia a coisa foi simples, eu só tinha estacionado o
carro em frente de um bar o que tava impedindo que o bar fosse aberto. Não sei
o quanto de verídico é essa história, já que eu não confio em mim.
Eu saio de manhã da NEO.
Uma garota debocha de seu amigo gay. Ela lhe dá um tapa no rosto. Eu fico puto
já que ela tava sendo sádica com alguém mais fraco. Eu lhe digo: bate em mim.
Ela abaixa a cabeça. Eu lhe digo: venha com minha turma não tem ninguém na rua
vocês podem ser assaltados. Ela vem atrás de mim e me beija na boca.
Eu peço cocaína pra
alguém, é um segurança e ele me põe pra fora de algum lugar que eu não me
lembro.
Eu beijo uma garota
dentro de um bar enquanto acontece uma chuva de garrafas, uma briga de gangue.
Eu acordo na rua, e a
minha futura namorada aparece e me compra um XIS pra eu comer.
Ela me chupa em seu
apartamento depois de anos tentando me comer. Meses depois eu vou na casa dela
de madrugada, mas ela mesmo assim me acolhe. Anos antes a gente caminhava de
madrugada da Osvaldo até a casa dela na Independência. Ela queria ficar comigo,
eu não. Anos depois eu durmo na casa dela e a gente transa. Ela fica brava
comigo já que derramei vinho no sofá. Anos depois eu digo a ele que a amo, e
ela diz que sabe que é mentira. Não posso falar sobre ela, já que não sei se
ela realmente existe ou existiu.
Eu entro em um banheiro
de um bar – não sei qual – com duas garotas. O banheiro é o feminino, talvez
estivessem lá outras garotas. Eu e as garotas a gente se beija. Não sei como era
o rosto delas. Parece que elas tavam tão seguras, livres, quanto eu. A gente
não tava nem aí com seguranças, com as pessoas em volta. Sinto que isso
aconteceu não uma vez, mas inúmeras vezes, em inúmeros lugares em inúmeras
épocas.
Em uma casa noturna eu
começo a caminhar e beijar qualquer garota que passa pela frente. Eu beijo
todas, umas dez, talvez tenha beijado rapazes, não sei. Lembro do afeto
envolvido, algo que me impulsionou a isso. Depois eu tava transando com uma garota dentro da casa, junto a uma das janelas, de frente pra Redenção, só que daí um dos seguranças saca o que estou fazendo e sou expulso do lugar.
Estou caminhando com um
amigo e digo: Lucia é uma garota bonita, não? Ele diz: você ficou com ela noite
passada. Eu pergunto prum outro amigo: eu tentei agarrar a Maria noite passada?
Ele diz: você não devia ter feito isso.
Eu saio de um táxi na frente
da casa noturna e vejo uma mina; ela tava
conversando com um cara, acho. Não dou atenção pro cara e falo pra ela: vamos pro meu ap? A gente pega o mesmo táxi, vai pra minha casa e transa.
Depois disso ela foi embora. Não lembro do seu rosto.