sábado, 29 de abril de 2017

um delírio, um sonho, um estado de narcose


Exemplifico a percepção molecular, a cartografia do molecular, a partir de três momentos distintos: uma cena que aconteceu no cotidiano, um sonho e um estado de narcose. Esses momentos mostram áreas de indiscernibilidade entre sujeitos, colocam em jogo a racionalidade e o bom senso, afirmam mundos diferentes, dos sonhos, dos delírios, das drogas, mostram uma relação com a vida de estranheza, mas também de alegria, a possibilidade de outros mundos, não só possíveis, mas atuais, mesmo que seja a atualização a partir do delírio. A percepção molecular permite o contato com o caos, e o caos é o mundo, já a percepção normatizada, fotografa, congela, impede os fluxos.      

1. Estava na praia do rio Guaíba em Porto Alegre. Estava fumando um cigarro. Vi um rapaz entrar no rio com sua prancha de Wind Surf. Ele entrou sozinho. Começou a surfar, fazer manobras. Em determinado momento caiu na água. A partir daí ele lutou durante dez minutos para se levantar. Fiquei olhando preocupado já que ele estava sozinho. Se levantou e voltou para a areia. Senti vontade de ir perguntar a ele se estava tudo bem, queria saber como estava se sentindo. Quando fui dar o primeiro passo em direção a ele, me senti estranho, uma sensação estranha; fiquei com medo, fui para o meu carro. Quando entrei no carro, reconheci a sensação: era a mesma que sentia após ficar preso em buracos na água da praia. Para sair de um buraco se exige um grande esforço e por ser na água isso gera um tipo específico de cansaço. Penso que senti o que o surfista estava sentindo já que ele lutou na água por dez minutos para ficar de pé. Aconteceu algo entre nós, compartilhamos o mesmo afeto, ou seja, uma linha de fuga da individuação dos nossos corpos, os corpos compartimentados e isolados. Isso é uma molecularização da percepção: sentir o sentimento do outro, que não é mais outro, mas uma linha de um agenciamento no qual eu era também uma linha. 
2. Um sonho, parecido com a cena acima, no que se refere a indiscernibilidade entre sujeitos. Me perece ser um sonho recorrente, desde a adolescência. Caio de um andar baixo, mas de nuca e assim quebro o pescoço. Na caída, fico com medo, que aumenta até o contato com o solo. No contato, quando quebro o pescoço, ao mesmo tempo, penso: ok, morri. Morto, ainda me percebo; sei que estou morto e me percebo morto – isso dura uns segundos, e nesses segundos conjuntamente, algo muito estranho acontece: vejo uma garota caminhando em um espaço tempo que não reconheço; ela caminha, está feliz, não muito, mas está; uma felicidade de adolescente, quando se sente feliz sem grandes motivos. Só que entendo que eu sou aquela garota; ainda me reconheço como aquele que morreu, mas sei que agora, depois daquela morte, sou essa garota. Mais uns segundos, a lembrança da vida daquele que morreu se apaga e a garota segue a vida dela – e parece que algo meu, o que morreu, ficou com ela. É difícil de narrar esse sonho, pois ele trata de uma despersonalização, da inexistência de barreiras entre sujeitos, é um tipo de esquizofrenização. Obviamente, não faço uma leitura extra real, de vida após a morte, de reencarnação; mas sim, para mim, fica óbvio no sonho que a vida não se resume a vida pessoal: os fluxos passam entre sujeitos, entre sujeitos acontece muita coisa; há o caos, mas o enxergamos a partir de lentes embaçadas. O sonho é um delírio, e posso falar muito bem de delírios já que sou um drogado desde os 13 anos de idade. Aliás, mesmo não me drogando, consigo perceber meu devir drogado, por isso, trabalho com a percepção molecular e gosto de pensar e lembrar de meus sonhos. Esse delírio permite uma narrativa da morte interessante e acolhedora, tranquila e não dolorosa. A vida continua em sua potência ou tristeza. Fico feliz com a felicidade da garota que também sou eu, e nós somos moléculas entre o núcleo da terra e o cosmos.
3. Uma viagem de inalante recorrente: a viagem é mais difícil de ser narrada, eu sinto que a compreendo quase completamente, mas é difícil de narrar o que sinto, já que é um delírio, os signos do delírio são diferentes aos normatizados. Por isso que em momentos do livro eu tenho que usar literatura; preciso de uma linguagem inexata para expor exatamente as descodificações. Eu cheiro e praticamente apago, meu corpo deve estar parado, não tenho consciência do meu corpo, mas estou sonhando (viajando). A viagem: percebo um mundo, um mundo como o nosso, idêntico, mas eu não sou eu, eu sou um outro. Tenho uma outra vida, sou outra pessoa, estou feliz, eu me compreendo como a outra pessoa da mesma forma que todos têm uma compreensão de si, de seu corpo, história, etc.  Essa outra vida é boa, mas não muito diferente da minha em estado não onírico. Em certo momento, pelo enfraquecimento da dose de inalante, eu retorno a compreensão de minha vida em vigília, volto a ser “Diego este que fala”. Mas há um ponto, um momento na viagem, que me faz compreender as duas vidas ao mesmo tempo; e sinto um desejo de manter a vida onírica. Quando sou empurrado para a vigília sinto nostalgia da outra vida. Após passar por essa viagem inúmeras vezes, raramente, surge uma dúvida: se essa vida que penso ser minha em um mundo concreto, neste mundo, se ela não é uma viagem de inalante. Será que agora estou viajando e posso retornar em breve para outra vida? Como me sinto e me compreendo agora não é diferente de como me sentia e me compreendia nas viagens de inalante.    

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