Esse texto não é um diário de notas, não são
anotações sobre o que está acontecendo, mas é uma experimentação sobre o que
está acontecendo, e, como é uma experimentação, não posso nomear a partir dos
rótulos tradicionais. Não são palavras jogadas a esmo, não há espontaneísmo,
como não há método. O fortalecimento, a consistência de um estilo, de uma ética
- estética concernem a uma preparação calcada na cartografia. Experimentar
territórios, criar linhas de fuga, perceber isso, projetar, projetar o caos.
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Há uma exigência de organização nos ppgs e
muitos se orgulham, lutam por isso. Para o senso comum o método, o texto bem
construído e não dispersivo, as regras duras são um bem, o fim último a ser
atingido. Para o senso comum, o cidadão comum é desorganizado, infantil,
espontâneo, e nos ppgs os pesquisadores buscam o máximo possível de
organização; ou seja, uma lógica dicotômica: organização e desorganização.
Porém, estando no ambiente acadêmico é extremamente fácil ser organizado, já
que é um espaço controlado pelos olhos do grande irmão. A estrutura de um
artigo, de uma tese, as regras próprias aos campos, as lógicas cientificas,
mesmo estar em sala de aula, respeitar horários, tudo isso é fácil já que está
dado, é da natureza do dispositivo. Agora produzir um caos projetado é muito
difícil já que é pouco atualizado, trabalhado, experimentado na academia.
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Valorizar o trabalho, e valorizar ainda mais
dizendo que é um trabalho sério, organizado e bem feito, isso é palavra de
ordem, senso comum e todos afirmam isso. Difícil é largar tudo, ser um punk de
rua, ser um okupa, ser um marginal, é tão difícil que pouquíssimos consegue ser.
Deleuze e Guattari diziam que o corpo estratificado e organizado, o organismo,
como percebemos o corpo é uma imposição do controle. Eles afrontavam essa
imposição pensando no Corpo sem Órgãos; este não pertencente a um sujeito, um corpo
criado, inventado a partir da cartografia. Contra a organização a criação de
agenciamentos, experimentações, ou seja, o caos projetado. A cartografia é o
caos projetado, afrontar o grande irmão a partir do terceiro olho.
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Para mim, é impossível escrever um texto
espontâneo já que a ética - estética que me alio guia minha existência e,
portanto, minha escrita. Esta ética - estética diz respeito ao confronto com o
controle, os seus olhos, ou seja, o grande irmão; ela se atualiza na minha
existência: na forma como eu vivo, me relaciono, penso, sonho, desejo,
enlouqueço, percebo, sinto, produzo, ou seja, nas linhas próprias à subjetividade.
A experimentação é tentativa e erro, e o erro faz parte do processo, é a linha
de fuga frustrada ou friável que leva a outras linhas de fuga. O olhar do
grande irmão, um dos efeitos do controle, é afrontado de inúmeras formas, mas o
controle é afrontado de mais e mais formas. Os olhos são uma das formas de
controle: câmeras por toda a parte, olhos de todos sobre todos, os próprios
olhos que se olham, o controle mesmo nas visões do terceiro olho, como nos
sonhos e delírios visuais. Sim, identificar, capturar pelo olhar é a forma mais
fácil, mas visibilidade é uma das linhas dos dispositivos, o controle não se
reduz obviamente aos olhos do grande irmão.
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Produzi um texto para o pós doc. Tinha como
objetivo continuar o texto, porém senti uma necessidade de cair fora, pelo
menos por um tempo. Não me preocupo mais com o lattes, não estou pensando em
fechar meu livro, que já tem mais de trezentas páginas. Não ter um note book me
ajuda a não estender o trabalho. Esses tipos de preocupações, objetivos,
sentidos, trajetos delineados servem apenas para controlar. Preciso cair fora das lógicas dominantes para
ter contatos com o fora, e ele que me permite produzir. Um assassino, um Killa,
um suicida, um presidiário, se produzem no campo de saber, podem criar coisas
maravilhosas, já que são subjetividades diferenciais. Os loucos, os drogados,
os do terceiro olho, sabemos que eles fazem isso e muito bem, a história da
filosofia e da arte nos mostram isso.
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Terminei o livro, decidi não finalizar.
Entrei no pos doc decidido em finalizar o livro, daí meu note book pegou fogo.
Parei de escrever, mas continuei produzindo. Como tenho um tablet passei a criar
falas gravadas no aparelho. As falas são atualizações em áudio da minha escrita,
têm o mesmo estilo, posicionamento, porém apresentam conteúdos novos em relação
ao que já foi escrito. Eu simplesmente penso em um tema, faço uma narração
mental e depois gravo direto, sem cortes. Algumas, poucas, eu tenho que
regravar por perder o andamento ou por, após ouvir, não estar satisfeito. As
gravo, posto no youtube e depois as deleto do tablet. Gosto da efemeridade, do
caráter friável do dispositivo, da impossibilidade dessa produção ser capturada
pela lógica do lattes. Voltei a escrever após conseguir um note book de mais de
dez anos. Não queria mais escrever já que as falas são muito mais prazerosas de
trabalhar. Porém, ao voltar, entendi a importância, a especificidade da
escrita.
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No pos doc queriam me dar uma sala para eu
trabalhar. Eu disse que não queria, que eu poderia usar os corredores como
todos os alunos do ppg. Agora estou propondo ter a sala, mas como um espaço
auto gestionado, trazer a sabedoria das ruas, das manifestações e das okupas
para dentro do espaço institucional. Não digo que estou fazendo o pós doc, não
quis a sala, não digo que sou um escritor, tudo isso cria uma menorização
minha, me coloca em uma posição menor; isso concerne a um grau de diferença – a
negação de si como sujeito pertencente a uma casta socialmente importante, a
intelectual – que permite o contato com o fora. A autogestão do espaço se iniciaria
pela minha experiência e seria um objeto com um problema: como pessoas que não
têm conhecimento de autogestão se relacionariam com o espaço? Será que a
autogestão não faz parte das subjetividades? Será que as revoluções face book
centradas na horizontalidade e na produção em rede não atingiram mesmo aqueles
que não se interessaram por elas? A macro política é fácil de ser percebida já
que é mostrada pelo grande irmão. Pensam que a potência dos movimentos é a
transformação da macro política, não entendem que é riqueza em si mesma. Os
movimentos podem não mudar o poder e nem devem, mas atingem a todos de forma
sub reptícia, molecularmente; outras subjetividades são criadas, outros
devires. E como perceber isso se não está atualizado nos meios do grande irmão?
Pensar apenas no atualizado, no óbvio, no visível, no que os olhos do grande
irmão permitem ver, é fotografar o caos, reduzir o mundo. A ciência com suas
lógicas recorta o real a partir do objeto, controla a partir das regras e
métodos, organiza com a estrutura textual, busca uma verdade com o trabalho
rigoroso, neurótico em cima de um pequeno pedaço do mundo; a ciência pensa em
processos, mas a partir desse pedaço, ela busca algo que está dado, atualizado
no objeto. A ciência olha a partir dos olhos do grande irmão, e a cartografia a
partir do terceiro olho não busca a verdade, cria algo muito mais próximo da
ficção do que dá ciência. Imitadores, de métodos, regras, leis, são os seres
mais rasteiros do campo do saber, mas os poetas, os cartógrafos são os
experimentadores, os mais próximos daquilo que chamam de criação.
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Não ter a produção capturada, ter uma
produção que foge é principalmente uma forma de viver, de não morrer em vida.
Um poeta que não publica, um músico punk que não se encaixa no mercado,
qualquer mercado, produtores imateriais nas ruas que não vendem sua produção,
eles têm sua ética e são dignos. O objetivo mais comum de artistas é se
encaixar na lógica mercantil, ou seja, eles são iguais a todos, querem fama e
dinheiro. A questão ética, contra dominante, é não é se tornar alguém especial,
mas sim criar existências singulares. O que é singularidade? Lógicas
diferenciais. O pária vive uma existência que pode ser singular, mas ele não é
especial, e se não quer ser então ele tem sua ética. O drogado e o vagabundo
não produzem, isso diz respeito a sua ética. A criança não produz; as mulheres,
os gays e os negros entraram como agentes produtivos a partir da inclusão e
isso é recente. Quando o controle tenta capturar uma subjetividade, impondo o
trabalho, e esta diz: não! isso é resistência.
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O pacto com o poder é sempre tendente as
necessidades do poder, pactuar com ele é aceitar suas lógicas. Por isso, as
demandas não devem existir, mas sim produzir para viver. A negação radical
frente ao poder é a afirmação radical da vida. A história mostra que o poder dá
migalhas para continuar sendo poder. O pacto que criou o Estado de bem estar, a
inclusão das minorias, o esmaecimento das dicotomias, a criação da sociedade de
parceiros, tudo isso aconteceu para termos a sensação de mais empoderamento, que
mascara um endurecimento muito mais forte do poder. As mídias são um exemplo:
as de massa ajudaram a educar o povo, trazer o não visto para o espaço público;
as mídias digitais tiraram os sujeitos da posição passiva, de recepção. Para
Levy a internet permitiria uma real democracia. Porém, as mídias intensificaram
o controle exatamente naquilo que sempre foi considerado intocável, a
subjetividade. O trabalho possível nas redes digitais, percebido como horizonte
nos anos 90, seria o fim do trabalho explorado, seria o ápice do trabalho
imaterial, intelectual e afetivo, criativo e prazeroso. Porém, o mercado sucumbiu
na virada do século e levou a falência jovens promissores. Isso produziu uma
depressão generalizada. Como disse no texto sobre Afro Killa: o empoderamento
leva a uma compressão do mundo, e isso pode levar ao sentimento de
insuportabilidade, já que o mundo é compreendido e os sujeitos sabem que ele
vai continuar igual. O Prozac surgiu logo após o boom do trabalho imaterial.
Não seria a depressão reflexo do empoderamento e da impotência frente ao controle?
E o Prozac não foi a forma que o controle encontrou para domesticar ainda mais as
massas, deixá-las felizes como consumidores e produtores, sujeitos passivos?
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Para os românticos a arte é o remédio, a
medicina, para que não morram. Zeus quase mata, sonha em ser um Killa, por isso
Afro Killa. A impotência pode levar a abolição, ao suicídio, ao assasinato. Se
Zeus não enlouquecesse em sua arte estaria nas ruas matando – a loucura é uma
das suas marcas, vista nos olhos injetados no vídeo. Para amenizar ainda mais
ele precisou do amor, da musa, precisou da parceria, que é o amor entre os
manos, de Pig, sempre ao seu lado impondo respeito. Zeus não luta sozinho, é Aquiles
e sua turma, seu bando, sua legião, e Zeus já é uma legião infernal. O rap foi escolhido
por ser violento, direto, por ser discurso critico. Tyson apenas arrancou com
os dentes a orelha do adversário, se não lutasse boxe poderia ser um serial
killa. Zeus é um possível homem bomba, nos seus olhos vemos que ele está
explodindo. Os torturadores na época da ditadura precisavam torturar para se
acalmar; assassinos matam para se acalmar; é o remédio deles. Os românticos têm
a arte, mas precisam de outros remédios, como as drogas, o sexo livre, os
desvios. A musa acalma também, já que o amor é uma forma de medicina. O amor Wertheriano
era o amor abolicionista ou o sentido de uma vida? Depois de amar daquela forma
nada mais era necessário. O “eu morro por você” dito pelos amantes é acreditar
no amor, e se matar é exatamente sair da crença e provar, a prova de amor. As
meninas sempre servem como mediadoras nas brigas dos meninos nas ruas, elas
acalmam os ânimos muitas vezes apenas pela sua presença. E a musa está ali para
isso. Zeus nos encara, quer briga, nós não brigamos com Zeus, já que a musa
está ali, mediando, suavizando a vibe violenta dos Killa. A questão existencial
é o mais importante do rap de Zeus, seu rap existencial. Zeus fala do que
conhece, fala a partir do empoderamento sobre a vida insuportável. Zeus ensina
o que fazer para não morrer, como todos se sentem, mostra a vida dos afetos,
ilumina, já que Zeus é Lúcifer; e essa luz não mostra outro mundo, ilusório, isso
é feito pela luz do cristianismo, é a luz que permite a visão do terceiro olho,
luz vinda do fogo, fogo que incinera os signos dominantes. Lúcifer mostra o que
não queríamos ver ou fingíamos não ver; não é o esclarecimento iluminista, mas
desvelamento, o tirar da máscara do bom cidadão. Zeus mostra a angústia da
juventude, a prisão, mostra aos adultos a vida que eles viveram e esqueceram e
que hoje é experimentada pelos seus filhos. Se fossem mostradas, tornadas visíveis
as angústias das crianças os adultos seriam destruídos; a iluminação e
destruição Luciferiana. “Se as portas da percepção fossem abertas” como dizia
Blake, o grande irmão seria destruído. Zeus dá uma grande importância ao uso de
drogas em sua música, é uma das suas armas. Quando uma criança vira adolescente
a partir das drogas, os pais obviamente ficam preocupados, isso é o óbvio,
porém, eles ficam com medo de perder o trono, o poder, já que os filhos ficam
mais fortes que eles ao usarem substâncias que a maioria dos pais tem medo de
usar.
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O controle deixou todos paranóicos, mais e
mais, tanto que sentimos como se todos soubessem o que pensamos. O controle é a
onisciência divina, vê e sabe de tudo, não há como fugir do controle, não há
fora; e a punição é exatamente o controle, a vida impedida, e quando a saída é
o suicídio o senso comum impede, como a lógica cristã fazia. A vida
descontrolada é a resistência, sim, exatamente aquilo que chamavam de pecado.
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Alex, o fora da lei, sem lei, o A-Lex, nos
brinda com seu olhar chapado já na primeira cena de Laranja Mecânica. O plano é
longo, dura, e mostra Alex e sua trupe sentados, chapados com sua droga
favorita: leite com facas. De início a câmera fecha nesses olhos claros, com
cílios postiços, com uma forma de olhar hipnótica. Depois a câmera vai abrindo,
aos poucos, e mostra os membros da gangue todos chapados também com olhares em
narcose. Quando a câmera mostra os corpos inteiros, vemos que eles não se
movem, nem mesmo piscam, estão paralisados, seres hipnotizados que hipnotizam a
partir de nosso olhar da cena. Mas não é só a droga que cria o olhar, mas
também a ultra violência de Alex e sua trupe presente em seus olhares já que eles
são Killas. A cena me arrebatou quando com 14 anos a vi chapado de maconha. Meu
olhar chapado se conectou com tudo isso, e talvez eu tenha entendido que aquele
olhar, o de Alex, era também o meu. Talvez eu tenha me afetado pelo olhar da
musa já que ela é loira e de olhos claros como Alex. O mais interessante é que
Alex é destruído exatamente a partir do olhar. Ele é condicionado a se tornar
um bom cidadão, passivo, a partir de um tratamento que concerne em obrigá-lo a
ver imagens violentas narcotizado por uma droga que o faz se sentir doente. Ele
associa a violência, atualizada nas imagens, com a dor causada pela droga e a
partir daí o seu desejo por violência lhe causa repulsa, o deixa terrivelmente
nauseado. O grande irmão doma Alex pelo olhar, faz ele ver as coisas de forma
diferente, e diferente para ele era ser o bom cidadão. O Cura no filme se
revolta e diz a todos que ele não tinha mais escolha, o livre arbítrio. Essa é
a natureza do controle, não temos escolha, e quando escolhemos somos muitas
vezes presos, internados ou mortos.
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A minha resistência existencial está sempre
em jogo com o controle. Não posso muito já que não quero ser preso ou
internado. O que posso fazer aprendo a partir da experimentação, da minha
preparação. Traço linhas de fuga, me perco em inter meios, me sinto afetado,
depois sou re territorializado de alguma forma e fujo de novo. Dentro e fora,
momentos de fora, e se o fora não virar depois um dentro daí a linha de fuga se
torna uma de abolição. Parece uma fórmula, uma imitação da máxima de Deleuze e
Guattari, mas não é uma fórmula, eles entendiam muito bem a vida, aprenderam
com os da tradição romântica.
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As subjetividades são formatadas a partir de
longos períodos de coerção. Hoje comunicamos nas redes o tempo todo já que a
modernidade foi a época das mídias; as mídias sempre comunicaram pelo máximo de
tempo possível de qualquer forma: falas vazias contínuas, redundâncias, como a
mulher histérica que não se cala, fala qualquer coisa. Nos acostumamos com
isso, esse tipo de comunicação contínua e vazia se tornou naturalizado. Nas
redes a conspiração é impedida pela visibilidade e ninguém quer ser visto como
um conspirador, um pária, um marginal. As redes são o espaço da fala hiper vigiada.
A web era um espaço nômade que se tornou totalmente estriado. O facebook atrai
de tal forma que não há como sair dele. O Google impõe os caminhos; youtube,
net flix são redundantes. As ferramentas de busca tradicionais levam sempre
para os mesmos caminhos; uma palavra postada qualquer leva para inúmeros sites
de venda de produtos. A deep web aparece como opção. A conspiração de Benjamim dizia respeito a
outro paradigma, época que Foucault também tratava. Nessa época as tavernas
eram o fora dos espaços vigiados; porém no controle a conspiração toma outras
características já que parece que não há fora.
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Falar de mim não é um ato vaidoso já que não
falo de mim, mas de linhas de fuga, uso um empírico que me ajuda a pensar os
processos. Falar de si diz respeito ao mais raso, empírico, ao cotidiano; crianças
escrevem seus diários, cronistas, os escritores mais baixos, falam de sua
existência. Ou seja, falar de mim é uma menorização do trabalho, e isso é
importante já que se choca com os olhos do grande irmão, esses olhos que impõem
a todos a espetacularização de si: dizer-se orgulhoso de sua vida, de sua
carreira, de suas produções. Ninguém diz que é um sujeito baixo, vil e
rasteiro, mesmo que saiba que é, e todos são, o capitalismo impõe a podridão
das relações, então todos são maus. O homem não é mau, mas o sujeito do
capitalismo é mau. Ele passa por cima de todos para manter sua pose, seu
espetáculo particular. As redes sociais, os avatares, os perfis particulares
são exemplo disso. Se não são ricos, se são feios, se são intelectualmente
débeis, se são fracassados, mesmo assim nunca dirão que são, já que têm que se
sobrepor aos outros, mesmo que seja a partir de uma ilusão. Falsear sua imagem
para bem vendê-la, essa é a lógica do capitalismo, mentir, roubar para
conseguir algo, nem que seja apenas auto estima. E todos fazem isso e mascaram,
ou fecham os olhos para não perceber. Chamam de jogada de marketing mentir para
vender um produto, e isso é uma forma de mascarar a sujeira do capitalismo.
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Moro em um prédio de classe media e sou o
único do prédio que freqüenta a parte marginal da rua, estou sempre na rua. Na
rua, na minha rua, há traficantes, ladrões, mendigos, michês, prostitutas,
rappers, skatistas, maconheiros, viciados em muita coisa, e estou sempre com
eles. O que faço nesse espaço é diferente do que faço em outros. As ruas são os
espaços controlados, trajetos delimitados. Espaços têm sua especificidade, mas
conjugados compõem o dispositivo cidade. Em certos espaços são permitidas
certas experimentações, cada espaço possui suas linhas de fuga. Como a cidade é
pequena, às vezes vou até a zona mais rica, falo com amigas que trabalham numa
loja, e depois vou para um bar aqui do lado repleto da marginália. Me sinto bem
com isso, com esse choque de fauna e paisagens. E a Cidade Baixa é isso, já que
Porto Alegre é assim, essa contradição interna, desigualdades sociais no mesmo
espaço. Os hipsters, os de bom gosto, comem suas comidinhas nas mesas postas nas
calçadas ao lado do esgoto na bela rua arborizada, a República. Famílias de
classe média, com seus caros utilitários, esperam na fila, no sábado e domingo,
junto também ao esgoto e seu mau cheiro, para almoçar no Tudo pelo Social; algo
parecido acontece no Geovanaz. Essa mistura não é harmônica, não gera uma paz
entre os diferentes, não os aproxima, aliás, talvez até os distancie mais. A
classe média necessita da pobreza para se sentir orgulhosa de si. Eles mostram
os pobres para os filhos pequenos e dizem: não somos como esses animais. E os
pobres necessitam deles para admirá-los. Necessidade de domínio e de ser
dominado.
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A contradição interna mais forte da sociedade
de controle concerne às minorias que amam o padrão dominante de vida, que
almejam ser a classe média, ter dinheiro seja como for. Os gays fizeram um
pacto silencioso com o poder para terem dinheiro, assim, uma subjetividade de resistência
se tornou incluída, o mesmo com mulheres, negros, etc. O pós-moderno é a era da
potência dos monstros, mas a monstruosidade pode ter virado norma já que não há
mais fora: feministas fascistas, anarquistas estadistas, esquerda fascista,
gays capitalistas, budistas capitalistas. O Rap, e Zeus, não estão de fora do
jogo. Zeus, possivelmente, quer ser alguém bem sucedido, como todos os músicos.
O Rap, em certos segmentos do rap, há a ostentação. Essa é uma marca dos
musicistas negros. Os blueseiros ou jazzistas negros quando ganhavam um pouco
de dinheiro investiam na vestimenta, que é a forma de se mostrar ao mundo. Mas
em um mundo em que há, como disse, feministas fascistas, esquerdistas
fascistas, gays capitalistas, budistas capitalistas... ao reconhecer a loucura
da sociedade, não há motivo para julgar os rappers. Todos os sujeitos do
capitalismo são maus.
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Acabar o doutorado fez com que eu sentisse
algo de liberdade. A clausura foi dura por mais de quatro anos. Depois da
prisão, fiz a festa e ela não terminou. Hoje me penso não como intelectual, mas
como poeta, e não como poeta, mas como comediante. A minha comédia não se
atualiza apenas na escrita, mas na fala, e também nas falas e gestualidades na
rua. Os olhos do grande irmão, o controle, são meus objetos de resistência e
são atualizados nos olhares de todos e também nos meus; sei que quando sonho o
controle está ali, ou seja, em mim, por isso a experimentação, tentativa e
erro. Tenho quarenta e dois anos e todos pensam que tenho 33 já que falo mole,
me movimento de forma mole, sou esportista e me visto como quero, além de ser
um mentiroso compulsivo, o que permite que eu invente histórias absurdas sobre
minha vida. Aprendi que não tem como eu não ser notado pelo meu estilo, pelas
minhas cicatrizes, meu porte, e uso isso exatamente para criar graus de
estranheza nos ambientes que estou. Me visto de forma estranha, caminho de
forma estranha, me relaciono com as pessoas de uma forma que ninguém se
relaciona. Isso não é espontâneo, é o projeto, sei o que estou fazendo, aprendi
experimentando, percebendo os outros, o que os outros pensam, como pensam, o
que percebem, como percebem. As pessoas quando notam os outros os identificam e,
se podem, os rebaixam. A lógica capitalista é a de ser o vencedor, o melhor, e
se é vencedor não vencendo, mas estando acima dos outros. Assim, com 1 metro e
80 de altura, cheio de cicatrizes na cara, com tatuagens feias, sei que serei
notado e intensifico isso exatamente para contemplar, curtir, me divertir com a
percepção de todos. As formas de identificação são sempre as mais clássicas:
gay, pobre, vagabundo, louco. Esses são os personagens que causam risos nos
programas humorísticos: a bicha louca, o louco idiota, o pobre desletrado.
Pareço um punk ou uma bicha, eu sei disso, e essa é minha menorização, me ajuda
na dessubjetivação. Poderia usar la martina e nike shox nos sábados e domingos
nos passeios familiares, como já fiz, e assim ser incluído, pelo menos mais
incluído; eu sei me vestir como um pequeno burguês, ou como um hipster, todos
sabem, mas me desmonto propositadamente. Acho interessante como as pessoas se assustam
com qualquer tipo de diferença, com aquilo que chamam de diferença, como a
imagem é importante para elas. Sim, são os olhos do grande irmão vendo,
identificando. Comecei a usar algo simples, muito, que são mangas avulsas,
mangas separadas da peça. Comprei em lojas de artigos para bike e comecei a usar
no verão para não queimar a pele dos braços quando dirijo. Também quando está
frio eu as uso, se não quero por uma camiseta de manga comprida, aliás, é muito
mais barato ter elas do que comprar camisetas de manga comprida. Todos me
perguntam maravilhados o que elas são e dizem que sou excêntrico. Uma simples
manga lhes causa estranheza, como se fosse uma falha na matrix. As pessoas têm
a necessidade extrema de segurança, e o que foge, o inseguro as coloca próximas
ao caos, e elas têm medo do caos. Mangas, sim mangas, podem fazer revoluções,
pelo menos em uma cidade do interior do Brasil. Outra coisa que faço com
freqüência é ir em restaurantes veganos vestindo jaqueta de couro natural.
Causo um mal estar, eu sei disso, mas as vezes acontecem coisas interessantes.
Um dia um casal falou para eu ir no burger king, que ali não era meu lugar. Era
um casal classe media, de bom gosto, que estava de carro, um carro caro,
vestiam roupas da moda e usavam smart phones; eram os veganos incluídos,
ecologistas de boutique. Ouvi muitas vezes no doutorado que eu não estava no
meu lugar, por agir, me vestir, falar da forma que falo. Ou seja, me coloco
como objeto, um chamariz, algo a ser notado, para eu ver as reações, entender o
moralismo, os efeitos do controle. Às
vezes me sinto como se estivesse na parede sendo agredido por pedras, mas como
é teatro, praticamente não me incomoda, incomoda e dói é perceber os olhos do
grande irmão e a impossibilidade de não ser visto por ele, nem na frente do
espelho. Eu sou igual a todos, tão mau quanto todos, sacana como todos, a
diferença é que eu reconheço isso, não me mascaro dizendo que sou bom.
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O punk causava insegurança, caos, desordem
por sua existência. Uma de suas marcas era o visual, aliás, no rock o visual,
às vezes, muitas vezes, se sobrepõe ao musical: os olhos de Bowie, os de Joan Jett,
a cara louca de Barret, a maquiagem e as roupas do glam, a beleza de Nico, a
loucura no olhar de J Calle, o visual como o mais importante para Genesis P Orridge.
Sid Vicious não sabia tocar, mas sabia criar cenas, espetáculos para serem
vistos a partir da auto agressão, das brigas. GG Allin era um péssimo músico,
mas criava espetáculos ultra violentos para serem vividos e vistos. O punk
rapidamente virou moda nos 70, foi mercantilizado, já que o capitalismo
recupera todas as produções, as torna produto. Warhol fez o inverso, tornou o
produto um objeto artístico. Já como é fruto do grande irmão, o olhar, e ele é
a primeira percepção a ser usada, então se usa ele contra ele. De dentro se
produz as linhas de fuga, que são relações com o fora. O punk brasileiro, o
punk dos países pobres, são, eram os verdadeiros punks, os punks do ABC talvez
tenham sido os punks mais puristas. O punk não se monta, ele se desmonta
principalmente no visual; ele pega uma calça velha e a rasga e coloca patches,
compra um coturno e uma jaqueta de couro usados, mete alfinetes na cara. Daí
depois disso, o punk se torna algo como um mendigo com estilo e choca a
sociedade, que tem o olhar como percepção principal e o moralismo como base do
seu pensamento. Baudelaire causava máxima estranheza com cabelos verdes, falas
loucas, e tinha prazer em fazer isso. Wilde era um dandi gay, ou seja,
duplamente ator do choque. Rimbaud aterrorizou Paris ao lado de Verlaine. Carvalho,
os situacionistas, os filhos da contra cultura todos experimentaram o choque.
Chocar é pouco, mas importante criar esse grau de diferença local, e a partir disso
ver as relações construídas e perceber o moralismo, os olhos do grande irmão, a
paixão pelo controle.
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Incrivelmente nos últimos anos o uso de cigarros
aumentou também entre os jovens. As pessoas estão mais saudáveis, senhoras de
cinqüenta anos parecem meninas se não olhamos para os seus rostos que mostram a
idade. Como todos estão mais saudáveis, pelo menos nas grandes cidades, locais
com melhor qualidade de vida, as pessoas não têm mais medo de fumar. As imagens
de alerta de enfermidades das carteiras de cigarros tiveram três momentos, de
forma crescente, um mais chocante que o outro. No segundo momento já estava
óbvio que eram imagens espetacularizadas. Essa tentativa de enganar os sujeitos
pela área da saúde e pelo Estado pode ter gerado uma raiva generalizada, que se
atualizou no uso. O Estado disse “não” e todos disseram: a vida é minha, não
sou criança, não sou um idiota, faço o que quero. O Estado que tenta ser o
grande irmão, a área da saúde uma das miradas do grande irmão, que fazem o
controle da vida. Fugir disso é perceber de forma diferente, aquilo que chamam
de autonomia, e diz respeito ao terceiro olho.
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