domingo, 24 de dezembro de 2017

Se você não aceitasse o assassinato teria o suicídio como solução


Em Mil Platôs o devir mulher é sempre considerado o mais importante. A subjetividade feminina diferencial em relação à subjetividade dominante é importante por ser molecularizada por excelência. Porém, as mulheres talvez tenham sido a primeira subjetividade minoritária a ser incluída. Há resistência, diferença, na subjetividade feminina ainda? A inclusão foi total? As mulheres e homens no pós-moderno não formam uma massa indiferenciada? Mas a inclusão, mesmo que signifique um tipo de normatização, ela é importante; na inclusão feminina há algo de feminilidade que desterritorializa a subjetividade dominante, então, o social é atingido e modificado. Há algo da subjetividade feminina como resistência no social, em todo ele. A molecularidade feminina, assim, faz parte da subjetividade masculina. E isso – a desterritorialização e reterritorialização – se refere também às outras minorias, gays, negros, etc. O capitalismo busca a homogeneidade, a indiferenciação; e a indiferenciação é a morte, e essas linhas de fuga concernentes às minorias são a vida. As drogas psicodélicas foram tão “importantes” para esse momento extremamente “importante” para a vida global – a “contracultura” – que afetaram a subjetividade das massas. Produtos “culturais” após a “contracultura” são influenciados e muito, e às vezes diretamente, pelas viagens psicodélicas; estas desterritorializam as massas e depois disso, somos todos loucos, viajantes, subjetividades monstruosas:

E eles tinham medo de que seus filhos fossem destruídos por monstros, mas eles não sabiam que eles já eram monstros e seus filhos eram mais monstros ainda.

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A função da terapia em clínica de reabilitação é incluir, socializar o drogado. A ideia da lei seca impera, droga zero. A terapia tenta incluir e não importa se o cara vai virar um fascista, um chato, um careta, alguém infeliz; importa isso: que ele se torne mais um. Como não se importam com o molecular – os psis – não conseguem ajudar a entender a molecularização da percepção; se tivessem interesse pelo molecular, poderiam mostrar que dá para ficar chapado de cara, já que a narcose faz parte da percepção de todos. Mas em nome da vida, tentam capturar a vida, bloquear os fluxos em nome da boa cidadania; e a vida para eles é a boa cidadania, a gorda saúde dominante. “Vamos salvá-los, curá-los! Vocês não têm a opção de ser doentes, vocês têm a obrigação de ser saudáveis”. Contra esse discurso, a crítica: eu me nego a ser sadio, eu me nego a aceitar a saúde dominante.
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A luta contra o controle é a luta mais ampla. O controle é o impedimento da diferença nos corpos, nas existências, subjetividades. O controle é a prisão, a morte. O machismo é uma expressão do controle, como é o racismo, a homofobia, o fascismo, a política dominante, a proibição, a comunicação, o moralismo, a desvalorização da produção, o consumismo, o antropocentrismo, a saúde gorda dominante; as leis são formas de controle, como são as relações entre castas, pessoas, as relações consigo mesmo. O controle é a prisão, e há pouca vida em uma prisão, é o mais próximo que alguém pode chegar da morte, aliás, é pior que a morte, a prisão é o inferno.  A vida capturada, a existência padronizada imposta não é a vida em fuga, a vida que vive; a morte como forma dominante de vida coexiste com a potência da vida.  A vida é só o caminho de um corpo individuado? Ser posto no mundo, ser ensinado, disciplinado e vigiado; ter prazeres, comer, beber, fazer sexo; economizar e gastar, economizar e gastar; ter cada vez mais posses; respeitar os que estão acima: pai, professor, patrão, políticos; se sobrepor aos outros, principalmente os mais fracos, empregados, filhos, as minorias que ainda existem; lutar para não adoecer, nem morrer; usar as redes sociais, comunicar, falar e falar e falar, falas desligadas do significado, puro som, sempre o mesmo som, melhor, sons diferentes, mas com apenas um significado: viva o controle!; aceitar as coisas como elas são sem fazer muito barulho, quando se é contra as coisas como elas são; viver na cidade, não se importar com a estrutura urbana; ser perseguido “sempre” pelos mesmo fantasmas, a neurose, o estrese, a paranoia e ter “sempre” a percepção de que tudo está perdido, mas berrar ao mundo: ano que vem vai melhorar!  
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A vida pulsa, biopotência, potência da vida. Há vida e muito quando corpos singulares se misturam e criam corpos mais singulares, corpos por vir. A vida pulsa quando a criança, diz “não” aos pais. Há vida quando quebram as hierarquias, as regras, as leis. O comum é a vida pulsando, e o comum não são regras nem leis e sim ação em comum entre termos heterogêneos. A primeira acampada foi o sinal de uma vida que transbordava de vida. Marcos e a EZLN encheram de vida o Ocidente numa época dominada pela a morte. Kerouac só na banheira, cheio de vida escrevendo On The Road, livro atualizado nas massas da contracultura. No fim dos 60 a vida estava explodindo, os corações e mentes, e isso ainda está aqui em muitas coisas. Deleuze se matou em nome da vida. Sexo tântrico, arte, situações no cotidiano, isso é vida. Manifestações de coletivos são expressões da vida. Manifestações são formadas por coletivos, coletivos reúnem pessoas, pessoas são compostas de muitas pessoas, pessoas são coletivos. Sou legião, SOMOS LEGIÃO – a legião é um agente cheio de vida. A sabedoria das ruas que tem um crakeiro, ou um morador de rua.... Como atingir essa sabedoria? Capturar a riqueza deles em nome da ciência? A sabedoria deles é vida; capturar sua sabedoria em nome da burocracia, isso é a morte. Quando um artista se nega a aceitar as diretrizes dos financiadores para tornar vendável seu trabalho, isso é vida. O cara que larga tudo, a “vida” pequena burguesa, não aceita ser rico, deseja a pobreza é alguém cheio de vida. Odiar, não aceitar as hierarquias, o consumo, não como uma forma de purificação, mas de crítica radical: a crítica é um elogio à vida. Eles, os realmente vivos, os amantes da vida, dizem: prefiro a morte já que me nego a ser um zumbi que aceita qualquer coisa. 
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Os pais geram filhos não por amor, mas por ódio; precisam ter alguém abaixo deles. A maior felicidade da mãe – ter um filho – é a paixão triste; como mulher, filha, esposa sempre esteve abaixo, daí deseja ter um filho para dominar alguém. Juntar os “belos” genes com os “belos” da esposa e construir alguém.... eles se acham lindos e por isso têm filhos. Os pais não entendem a riqueza dos signos das crianças, as consideram seres inferiores. A única relação que têm com as crianças, menos danosa, é o ensinamento. A criança tem que deixar de ser criança e virar adulto. É uma vergonha ser criança, alguém fraco, extremamente fraco, não consegue nem limpar a própria merda, depende deles para tudo. E os pais odeiam isso, a fraqueza, a impotência, odeiam suas crianças por serem crianças. O filho não tem o que fazer, é fraco fisicamente, está legalmente nas mãos dos pais, se ele não tem força para morar na rua ou para se matar, deve aceitar. Então, aceita e para doer menos, para manter o orgulho, um pouco de dignidade, diz: eu os amo. Ele diz: eu amo meus pais, por isso, os respeito, não fujo de casa.  
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A cidade é um caos, todos odeiam o trânsito, mas preferem que as coisas sejam assim para poder ter carros caros e manter seu estatus. Amam a morte, a vida morta, a cidade como necrópole para serem admirados andando com seus belos carros.
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O humilde não usa ternos Armani, mas Armani casual. O humilde luta contra a pobreza, luta em favor dos fracos, despossuídos, bestializados, desde que ganhe 15 mil por mês. “Se me derem 10 mil por mês beijo até cachorro de rua”, isso diz qualquer fascista de direita que tem um emprego mal remunerado.
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O controle exige o máximo de desempenho, esforço nos estudos, no trabalho; o controle diz: isso é a forma mais eficaz de produzir algo com qualidade. O controle diz que a qualidade está na extensão, principalmente do tempo, e todos acreditam. Isso é feito para gerar a aceitação da massa, a aceitação do controle por toda a vida e sempre. Mais trabalho por toda a vida é o controle por toda a vida, trabalho é uma forma de controle; e, portanto, o controle é confundido com valor, com produção. As exigências, os horários, a rotina produzem uma massa cansada, quase morta, uma massa de zumbis. Zumbis – que para fantasiar um sentido na vida – que dizem com orgulho: trabalho tantas horas por dia, sou rigoroso, sério, sou um batalhador. “Amo o meu trabalho”, os zumbis dizem, mas isso é apenas uma máscara para esconder a verdade: amam o controle.    
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Ele tem sete anos, é um menino e vive com os pais; ele sonha com aranhas, não uma aranha, mas um ninho de aranhas. Essas aranhas são mulheres, uma mistura de mulher com aranha. No sonho ele se sente radicalmente bem, quer ficar com as aranhas, deseja as aranhas. Futuramente vão dizer que ele estava sonhando com a mãe, que ele a viu nua e sonhou com ela, ou seja, a edipinização do seu sonho, do seu delírio. Mas não era uma aranha, eram aranhas, uma multiplicidade. O sonho era o desejo do menino de não mais estar preso a dona aranha, mamãe, e sim de estar com as mulheres, viver, sair da prisão; como criança a liberdade só era possível dessa forma.   
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As disciplinas no campo do saber impedem as linhas de fuga, aprisionam as multiplicidades a partir da setorização. Uma disciplina é um território fechado, ordenado, organizado, com suas regras e leis. A disciplina reduz a vida. O campo da arte é uma disciplina que se refere a esse conceito vago, que não diz nada: arte. Expressões, relações, ações, acontecimentos, objetos, produtos, grupos, coletivos, sujeitos, inúmeras coisas heterogêneas e singulares são unidas nessa denominação: arte.  
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Muitas formas de arte se centram em apresentar formas de vida não normatizadas e ajudam a mudar as subjetividades; isso fez Mapplethorpe e seu elogio a homossexualidade. Ele mostrava que um pênis é só um pênis, um braço no cú é uma brincadeira, é só o corpo, e todos têm corpo. Assim, sua obra estava vinculada com as lutas dos gays nos EUA na época da contracultura. Era arte, mas não só, era uma das linhas das lutas dos gays, que eram radicais. Genesis P Orridge, o artista Queer mais importante, é um ativista, ele se centra em mostrar a opressão do corpo normatizado. Se punks, nas manifestações de 2013, colocaram um crucifixo no cú em plena rua, fizeram isso a partir das experimentações de Mapplethorpe e dos situacionistas. Provavelmente, não sabiam da fonte de inspiração para o ato, e isso mostra a importância desses artistas e teóricos, como eles modificaram, potencializaram as subjetividades. Mulheres nuas, lutando nas ruas, a Femen e as Pussy Riot devem e muito as garotas punks dos setenta. Blake escreveu uma máxima que influenciou coletivos, subculturas, músicos, artistas, pessoas comuns a viverem de forma desregrada, colocando o corpo e a sanidade em risco. A arte interessante é aquela que não é só arte, mas também política, crítica social, crítica existencial, filosofia; a arte como linha da revolução molecular conceituada por Guattari. A arte revoluciona o social, muda as subjetividades. Apenas os de bom gosto, a classe média, tratam a arte como um bem puramente estético, sem vinculação com a política, a vida, melhor, como algo cosmético. Também, para esses, e curiosamente para os intelectuais, a vida é como a vida de todos. Eles têm a vida do trabalho, da dita militância, e a vida cotidiana totalmente des estetizada. No máximo, têm relações de gêneros, com filhos, com as hierarquias um pouco diferentes dos que chamam de fascistas, mas sem diferenças de natureza.
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Militância diz respeito à macro política, é molar, quase sempre se refere a alguém especial, um político, etc, que luta por uma causa. Militância e vida do militante estão sempre em desacordo, ele afirma o dualismo: produção e reprodução. A militância busca sempre um fim; o militante pensa grande, no bom futuro, sendo, portanto, alguém importante. O ativismo é molecular; o ativista vive as dinâmicas de coletivos sem buscar um fim. O ativista não tem grandes preocupações com o futuro, mas sim com o que está acontecendo; ele reconhece a importância – não de si – do seu coletivo e principalmente do movimento que o coletivo faz parte. O militante diz: “eu luto por alguma coisa”. O ativista diz: SOMOS LEGIÃO.
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O suicídio como questão política, quando se pensa no social, é completamente diferente do suicídio como questão pessoal. Claro que muito está sempre envolvido, mas é colado no suicida uma razão profunda, presente em sua história familiar; o suicida, para esses, é alguém radicalmente individualista, já que todos são radicalmente individualistas. A questão fica política quando o suicida diz: não quero fazer parte, vou me matar já que não quero continuar matando, eu como ser humano civilizado. E ele faz isso já que não tem com cair fora, ele não vai conseguir se animalizar numa floresta, ele é um sujeito urbano.      
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Método? Método do bom transar? Isso dão as revistinhas baratas para as minas neuróticas lerem e testar, o método, com seus noivinhos, chatos, aguados e machos. Sexo é acontecimento, deve – sim deve! – ser singular “sempre”; e “sempre” é “mesmo” que esteja presente visualmente o “mesmo” casal. E não são “sempre” as mesmas pessoas: é ela em outro dia, ele em outro dia; melhor, ele como legião, ela como legião, legiões “sempre” em metamorfoses; e não são outros dias, são outras conjunções moleculares e astrais. É um erro tentar repetir uma transa maravilhosa, a partir do método, ela não se repete, mas a próxima transa pode vir a ser uma transa maravilhosa, tanto quanto aquela:

sabe aquela: a necessidade de dizer eu te amo, quando beijava, e eu nem acreditava em amor, mas naquele momento, na conjunção das moléculas, era a única coisa a ser dita, me sentia bem em dizer, e eu acredito no meu sentimento quando brincamos em nossa sagrada satânica yoga psicodélica... e na outra semana algo tão maravilhoso aconteceu, eu não sabia que poderia acontecer de novo, para mim, a transa anterior era o sentido, a obra de uma vida; mas rolou de novo aquele afeto tão diferente e tão bom, melhor, e daí eu entendi o que era amor e para ser amor eu não podia te ver de dia, de tarde, no parque, na rotina...  nenhuma rotina, ou foda rotineira faria com que eu.... bem, a gente é muito mais do que isso. Você viu, eu estava completamente louco, mas sabia – sei – exatamente o que estava fazendo, o que faço... a loucura estava ali, mas rolava o reconhecimento da loucura, entende? Duas coisas completamente diferentes sendo experimentadas por mim... e era eu? Eu estava louco, era nitidamente um duplo, uma fratura em associação; é difícil perceber, impossível de ver a legião, mas o duplo estava descarado; e isso, essa loucura só foi permitida por você.  

E as pessoas tentam se fechar no que chamam de dois, quatro ou nos obrigatórios três, e não percebem todo o resto. 

E sim, você chama de mentira com essa boca, esses lábios que não necessitam de nada mais, apenas deles, e eu passo o fim de semana com os seus lábios; eu passo o fim de semana com os seus pés, com a cor da sua pele; e ela, a pele, não precisa de nenhuma maquiagem, nada falta na sua pele e sobra meu desejo dela, da sua pele, isso transborda nos meus poros todos os dias só de imaginar... meu amor e morte... e se você acha que isso é loucura, sim, é loucura, o amor é uma loucura. O meu por você.

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O louco, o idiota, o jovem, eles dizem: mundo de merda, quero só um barato. Daí o jovem cresce na força, vira um profissional de alguma coisa, alguém maduro e chega a conclusão: que merda, só quero um barato. Caminho idiota para chegar a lugar nenhum. A sabedoria do jovem, do louco, do idiota não é reconhecida, mas quando ele se torna adulto, alguém autônomo, daí ouvem ele.  
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Os criativos e suas metáforas rasas, associações fracas; fazem pequenas variações óbvias para criar uma aura de mistério e expor sua criatividade; tipo: “Ela é uma vadia” no lugar de “Você é um puto”. Uma inversão direta, óbvia para uma criança. Se é tudo tão óbvio, já que não podem, não conseguem ser criativos, por que não dizem na cara? Não vão conseguir ser criativos de qualquer forma, pelo menos podem ser corajosos.
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Comem o cú da mulher para ela virar duplamente alguém inferior: além de mulher, ela se torna o viadinho dos sonhos do macho. Ela já foi castrada e rasgada, castrada ao nascer e depois quando cresceu, daí vem o marido e rasga também o cú. Uma mulher é só um buraco? Não, uma mulher é muito mais do que isso: três buracos a serem destruídos. São obrigadas a chupar, dar o cú, e fingem que gostam de receber um pau na vagina. Fingem para dar prazer aos machos, aos escrotos, já que elas têm que se submeter.
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Os chatos moralistas odeiam o suicídio, querem salvar todos os que querem se matar; para os cristãos é pecado mortal, quem se mata vai para o inferno, mas mesmo os que se dizem ateus compartilham de um sentimento parecido, tão moralista quanto, apenas exclui o supra real. Se matar pode ser uma forma de não querer mais morrer, de não querer viver como um zumbi; zumbi em caixões de lata (automóveis, ônibus, metrôs), em caixões de concreto (casas, apartamentos, prédios comerciais...) entre outros zumbis. A área da saúde (controle) impõe um discurso moralista, naturalizado no social sobre a vida; alguém sofre um acidente, está inconsciente e sem perguntarem para ele o levam para um hospital, fazem uma cirurgia e ele fica um tempo internado. Mas e se o cara não quisesse de forma alguma fazer uma cirurgia, ser internado? Fazem isso em nome da vida? Mas isso é uma imposição, e imposição é prisão, e prisão não é vida. Um saco esses moralistas, eles dizem: “nós os gays não somos doentes” ou “eles os gays não são doentes”. Qual o problema em ser doente? Há uma beleza nos glutões (dão sua vida para poder comer o que querem), nos alcoólatras e drogados (dão a vida para abusar de drogas), nos anoréxicos (desejam o corpo fraco e deteriorado), nos viciados em adrenalina (praticam esportes extremos que podem levar a morte, pelo prazer). E isso, essas relações de presença da morte, a necessidade de pôr o corpo em risco, o saber da possibilidade de morte a partir de certos atos, isso é vida, já que viver é construir um plano existencial diferente da existência imposta e afirmada pelos zumbis.
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Em 2011, ele já estava pronto para se matar, um senhor de idade, morador antigo de um bairro tradicional de Barcelona. Ele ia ser despejado do apartamento, devia muito dinheiro para o banco; a dívida era decorrente da crise econômica, e estava esperando o dia certo para pular da janela, de forma alguma iria viver na rua. Algumas pessoas, na mesma situação, do bairro haviam feito o mesmo – pularam da janela – pelo mesmo motivo; e esse ato – o suicídio – acompanhou os anos duros da crise em todo o país. Incrivelmente, o senhor de idade recebeu uma grande quantia de dinheiro antes de ser despejado, e então, poderia pagar a dívida e não precisava se matar. Porém, ele passou meses experimentando os sentimentos de um pré suicida, pensou muito na vida e na morte e a ideia da morte se tornou interessante. Como disse, com o dinheiro não precisava mais se matar, mas ele se apaixonou pela ideia de suicídio e se matou.
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A insegurança pós-moderna, o medo do futuro, todos sabem que a crise sempre estará presente. Não se fazem mais futuros como antigamente, como dizia Melamed. Vivemos com medo e quem tem medo deseja o Estado, ama o capitalista, ama qualquer um que lhe der um mínimo de segurança.
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O presidiário não tem mais nada a perder, pode morrer quando for e que se foda, ele não tem medo. A importância da prisão é permitir essa outra relação com a vida. Como dizia Bukowski: conheci mais homens na prisão com estilo do que fora dela.
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Incrivelmente, os pobres são fascistas, amam os ricos como os ricos se amam. Não desejam outra vida – sem pobreza – querem a mesma vida na qual há poucos ricos e muitos pobres, no máximo buscam ter um pouco mais de dinheiro do que eles próprios – os pobres – têm, mas, mesmo se não tiverem, não aceitam uma vida com igualdade econômica. Enriquecer é o objetivo de vida, objetivo de uma nação, de empresas, de pessoas. Ter um pouco a mais é o sentido da vida para a maioria. As pessoas ficam felizes quando conseguem comprar um carro melhor, elas têm esse afeto, paixão pelos objetos de consumo, sentem esse tesão ao fazer compras no shopping, no supermercado, famílias passam tardes em shopping centers, mesmo sem comprar, olhando vitrines. Os ecologistas vão em via contrária, exigem o decrescimento, já que é a única forma de salvar a vida (VIDA) do planeta. Senhoras de classe média se sentem ofendidas já que limpeza doméstica se tornou um artigo de luxo; com o enriquecimento da nação, trabalhos mais “degradantes” se tornaram mais bem remunerados. Essas senhoras desejam o empobrecimento da nação para que pessoas sejam obrigadas a trabalhar nessas funções “degradantes”, assim, elas, as senhoras, não têm que limpar a própria casa. A classe média se regozija quando tem um pouco a mais do que afirma ser status. Se a ditadura cubana tem algo de importante é a igualdade econômica, todos têm pouco, mas o suficiente; e o que é o suficiente? Como disse: o playboy sonha com carros caros desde criança e passa por cima de todos para ter. Ter dinheiro, sucesso, fama, seguidores... odiar os fracos e a fraqueza em si. Para todos, os sujeitos do capitalismo, alguém morrer, uma comunidade morrer não significa nada desde que gere lucro para si ou para o seu país. Amar carros, apples, nikes, mais do que a terra, animais e outros humanos. Um viciado mata a si apenas e com consciência, um consumista mata muitos, muitas formas de vida (VIDA) e finge não ter consciência.
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Um dia a gente entrou no Mac Donalds, a gente tava fazendo um tipo de performance. A gente entrou, comprou lanches e coca cola; a gente sentou, todos vestidos normalmente, e a gente, 10 pessoas, começou a falar em voz alta, que a gente não ia comer lixo, de jeito nenhum, que a gente se negava a comer o Mc Lixo Feliz e beber coca cola, a gente falou dos assassinatos, das mentiras das grandes corporações, dos monopólios. Daí uma mãe começou a berrar: “eu não quero saber disso, não quero saber disso, eu não quero saber”, e todos os outros clientes começaram a dizer pra gente cair fora. É, não querem saber se os seus filhos comem lixo, não querem ter a consciência de que sua família sustenta a morte e morre ao mesmo tempo; eles querem apenas viver da forma que lhes é imposta, ou seja, morrer.  
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Eu tinha doze anos. Cheguei em aula de manhã e tava todo mundo nos corredores, agitados. Eu chego e pergunto: qual é? Dizem: o cara tal levou um tiro na cabeça. O cara tal era da mesma série que eu, mas mais velho. Era um cara bonito, rockeiro, estiloso, tinha sua turma e as meninas gostavam dele. Eu sempre o via pela cidade – do interior – e o admirava. Um dia eu tava no fliper e tava lá ele com uma bermuda rasgada, camiseta de banda e sandálias de gladiador feitas com um tecido orgânico, sandálias de hippie. Fiquei anos desejando ter aquele estilo. A história da morte: de manhã, antes da aula, ele e seus amigos brincaram de roleta russa, era um costume deles. Tem gente que come sucrilhos de manhã, outro fumam um beque, ele fazia roleta russa.
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O escritório do intelectual, asséptico, com uma poltrona, mesa, quadros com imagens dos bons políticos; um espaço com um silêncio mortal no qual jaz uma coleção de milhares de livros, intocados. A criança encara o espaço, o escritório, assustada, como se estivesse em um templo sagrado, um local de pessoas sagradas. O apartamento do hippie, com cheiro de incenso, sem luz elétrica, só velas, uma carteira azul – de um amigo e dentro dela folhinhas de papel, pequenas, um papel delicado, com belo formato –, uma calça rasgada e suja no chão; no apartamento do hippie qualquer um entra e sai, o som é alto sempre, e ali tem uns livros, mas o mais importante, tem aquilo que chamavam de bolachas (os vinis), todas elas, a coleção mais completa. A criança entra ali – no apartamento do hippie – e se sente bem, sabe que está em seu lugar, mesmo que seja pouco seguro, já que vírus estranhos dançam junto da música e do incenso, mas mesmo com todos os perigos, a criança passa a viver no apartamento do hippie e se nega a voltar ao escritório do intelectual. 


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