domingo, 16 de outubro de 2016

crônicas fora de controle

Introdução 2

Esses textinhos curtos, impressionistas, posso chamar de lixinhos. São restos, do que vai vir pela frente.  Surgiram de um monte de coisa. Surgiram da pesquisa, de contatos com gente de muitos locais diferentes, das minhas leituras, de coisas mal lidas, que tenho que ver e rever, de pedaços de memória, minhas, de outras pessoas. Aqui atiro pra todos os lados, com a chance certa de erro. Penso coisas que são do discurso dominante e busco linhas de fuga. Não só discurso, mas o que é dominante na vida. Busco isso no que está ao meu redor, sem rigorosidade. Ou o que estava ao meu redor. Escrevi, principalmente, como linha de fuga da dureza disciplinar, da caretice acadêmica, que é a vida que sigo e quero continuar seguindo. Mas experimento a linguagem, as ideias, num barato porra loca da pesquisa acadêmica, da minha pesquisa. Barato louco, drogado, puto, marginal, etc. Claro que o texto não se torna puto; como um livrinho se tornaria puto? Como injetar pó num livro, se ele não tem veias? Como fazer dele um ladrão? Provavelmente, se passar pra qualquer acadêmico que se diz sério demais pra falar algo simples, e muitas vezes carinhoso, como “foda-se” em sala de aula, em seus artigos, nos congressos... se eu passar esses textos pra esse cara, ele vai dizer que eu tô fora da casinha. Vai me mandar pra longe.  Parte por medo, da disciplina, da burocracia, parte por pudor, ou mesmo porque se acha acima disso. Só que mano, eu posso defender minha bundinha acadêmica, dizendo que eu uso essa linguagem, tom, porque os autores em que eu me apoio não medem palavras; posso dizer que tenho influências da geração romântica, então posso falar dessa forma: saca?  Tô usando a arte como potência. Posso dizer que tô fazendo literatura, o que já fiz e, aliás, foi sempre bem aceita, mesmo no ambiente acadêmico, porque na arte é permitido. Mas o que interessa é usar, experimentar pra depois cravar os dentes na pesquisa em sua forma tão branca, chata e careta; cravar os dentes nela... delícia, um pouco de pele, de sangue, de dor, prazer, uma curra por traz no pescoço; contagiar ela, com o vírus, numa transa vampiresca; deixar o vírus agir aos poucos, mesmo deixá-lo adormecido, sem que ela saiba... até que! até que!! Atéé-hummm!!!... ver o que acontece.    

Sid e Nancy

Puta filme. Os dois viciados em heroína. Nancy garota de programa. Sid roqueiro que come todas. Os dois se amam de uma forma punk. Se batem, se xingam, fazem um monte de merda. Sid chega ao final da carreira como músico. Só heroína. Perde show. Nancy se acaba também, daí Sid a mata. Música anarquista, heroína, amor livre, um amor punk.  

Detonação em Porto Alegre

Moro então em Porto Alegre. Merda de cidade do Sul do Brasil. Cidade de merda. Nada pra fazer. Tinha o que fazer quando eu topava todas. Hoje, merda, tô noutras. Só que bem... olha só. Saí com uma amiga na segunda de noite. A gente foi nuns picos. A gente queria conversar. A gente não tinha trampo na terça. Daí a gente queria ficar na nossa, mas na rua. Daí, o que fazer? Não tinha quase nada aberto. A gente foi nuns postos. Eu tava dirigindo. Daí a gente tava numas de café. Muito café, cigarro. Rango a gente tava pensando pra mais tarde. Uma hora a gente sacou que já tinha encarado todos os postos legais. Daí a gente foi pro aeroporto. Mais café e conversa. Daí a gente saiu de lá às 2 horas da madruga. Só que queria ainda dar mais banda. Daí, não tinha realmente mais nada pra fazer. E a gente foi pro ap dela. Beleza. Só que depois das 11 da noite notei que, em alguns lugares, bem poucos, tinha gente. Lugares em que eu não queria estar. Daí tinha gente nesses lugares. E essa gente tava bebendo. Era segunda-feira. Era quase madruga. E os manos bebendo ali na Cidade Baixa. Daí, me lembrei de uns anos antes na segunda, quando eu quebrava todas; quando curtia todas. E segunda era só mais um dia. Mais importante quando era continuação de domingo. Não mano, era continuação de sábado. Mano, podia ser continuação de sexta. Ou de sete dias atrás. E bem... então, segunda, noite. Nada pra fazer. Pior dia da semana. Tudo fechado.  Só que é noite e o cara tá a fim de festa. E depois da meia noite, o cara tá bêbado e cheirado. Daí vai pra cima e pra baixo. Procura lugar com gente. Sempre encontra, mesmo os lugares sendo boca braba. Só que uma hora não tem mais ninguém. Daí o cara tá num carro com mais três caras. Um amigo e dois caras que não sabe como tão ali no carro. Todos tão ligados. Têm ceva. Pó na mão. E querem ver outras pessoas. Melhor, querem ver mulher. Daí o que faz? Acho que por isso que vários puteiros ficam abertos a noite toda todos os dias. As putas são gente legal, topam todas. Tão ali pra fazer o serviço. E assim mano, na real elas são legais. São gente como a gente. Só tão na ruim. Só tão a fim de fazer a mão delas. Então... bem mano, daí nasceu o sol. O carro é metade puta, metade uns caras que comem puta sem preservativo. Eles vão num posto. Eles baixam ceva. Eles se revezam no estacionamento. Fodem feito louco. Todos eles têm namoradas. Todos têm emprego. Eles tão na faculdade. E que se foda tudo. Que se foda os dias da semana e os professores. A futura esposa. O patrão. O superego. Que se foda o sol. Que se fodam os neurônios. Que se foda.  

As vilas de Porto Alegre

Uns merdas de garotos. Hoje médicos, economistas, comunicadores, e tal. Um ou outro fodido. Mas poucos. Os caras tinham 15 anos. E nada na cabeça. Eram caras da classe média que tinham levado bomba em colégio particular. Daí os velhos os colocaram  em colégio público. No público, os colegas todos pobres.  Daí os classe média se reuniram e formaram a gangue dos playboys. Diferente dos outros, eles tinham mesada. E mesada gorda. Tinham cigarro caro que pegavam dos pais. E todo o resto, roupas, bons presentes. Bem, só que caíram em outra real. Começaram a fazer amizade com os caras mais pobres. Uns caras de vila, marginais. Interessante como as vilas e bairros ricos se misturam em Porto Alegre, bem Brasil.  Por isso, essa mistura nos colégios públicos. É cara, um dos bairros mais chiques de Porto Alegre, tipo Assunção, só com casas de milionários... Olha só, casa residencial e riqueza, um lance raro hoje em dia. Cara, essas casas tão do lado de um monte de favelas. Favela da Guaíba. Antes tinha uma mais abaixo que virou shopping pra rico. Mais acima, favela Conceição. Mais pro lado, tem a Funil e, uns dez anos atrás, tinha uma vilinha, a Vagão. E pertinho tem uma das maiores, a Cruzeiro do Sul. Da parte alta da Assunção (olha que massa, o nome do bairro é Vila Assunção, vila de rico) dá pra ver a Cruzeiro. E mais legal, no coração desse bairro de ricos tem um colégio público, que mistura os ricos caídos com os pobres. Voltando, pra história. E cara... os riquinhos entram no colégio levando soco; só que no ano seguinte tão dando soco junto com os manos pobres. Entraram na turma. Daí os riquinhos meio que viram a casaca. O cara tem grana no bolso, mas porra, não vai comprar comida no super. O cara compra e vai ser roubado. Daí, o cara riquinho rouba também. Vai pagar bus? Os manos vão sacar que tá com grana, melhor descer por trás. E por aí vai. Daí os caras crescem juntos. Aos poucos, frequentam as casas. Aparecem amizades que meio que se fortalecem. Daí vira merda. Vira merda já que muitos dos manos pobres já tavam marcados pra fazer merda na vida adulta. E certos manos riquinhos acham essa uma vida legal. Melhor, usam os manos pobres como trafi, receptor, e tudo mais. 

Iggy Pop  

Iggy Pop foi num show dos Doors. Gostou pacas da performance do Morrison. Dá pra notar isso em sua dança. Só que Pop deixou as coisas mais cruas. Bem, o cara tornou urbana a dança do Morrison, que era ritual. Um ritual de xamanismo, pagão, tudo isso misturado com ácido. E ácido, bem, nos anos 60 permitia o contato com algo divino. Além da vida. O lance do Iggy era punk. Acho que isso: um Morrison punk, do subúrbio, da heroína, do lixo da vida real. Heroína torna o cara um rato. Ácido deixa o cara, ou deixava, numas de “vejo deus”, ou até de “sou deus”. E Morrison dizia isso: sou Dionísio, sou um xamã. Pop deixava bem claro: quero ser seu cachorro, nada mais que isso.  

Experimentação da marginalidade

Acho que é melhor falar na marginalidade como um todo. Não pensar só em coisas específicas. Tudo se liga. A prostituta se droga e rouba. O drogado faz michê e rouba. E por aí vai. Daí tem essas crianças. Eles têm entre 12 e 17 anos. São amparadas pela lei. Os de classe média papai faz de tudo por eles. Daí, eles fazem o que querem. Não vão ser presos. Eles não são drogados, michês, putas, ladrões profissionais. Só que eles fazem isso tudo, e parte por curtição. Depois ficam adultos e a coisa muda. A maioria não se torna viciado, muito menos ladrão e profissional do corpo. Pra mim, isso é uma das riquezas da juventude: experimentar a marginalidade, de um jeito espontâneo e sem paranoias. E mais importante: quando adultos, têm a possibilidade de experimentar algo que tava presente na adolescência. Não sendo marginal, mas algo ligado ao marginal, um marginal possível. Pode ser na escrita, na arte. Na relação com a esposa ou marido. Na relação com o filho. Na relação com os alunos. No trabalho, com o patrão ou empregado. Na vida, na relação com a vida. Pode ser até nos pensamentos. Manter o coração com o jovem, o marginal, não como um lance paternalista. Ser parceiro de sua própria adolescência.

Gírias drogadas

Muitas gírias se referem a coisas ligadas a drogas, ao uso, ao usuário. Segue uma lista. Massa: uma coisa legal. Massa é a maconha da boa. Palha, uma coisa ruim. Palha é maconha fraca. Fraca como uma palha.  Na loucura, doido, são palavras dúbias. Podem se referir a um cara do tipo sem noção, um bobão, ou um cara legal que faz merdas que não sujam. Sujeira e limpeza: sujeira com os canas, com os pais, com os amigos. O cara que tá com o filme queimado. Limpeza, um cara tranquilo, um lance que pode ser feito sem problema. Noia é um cara meio sujeira. Que viaja. Viagem: lance também bom e ruim. O cara é uma viagem, é uma figura, é massa. Ou é um viajão, o cara tá fora da casinha. Tipo o cara que pirou da bola. Na antiga, todo mundo falava de artane: uma bola, remédio, que levava o cara à loucura, uma sujeira. Da boa: maconha forte. Fazer a mão: comprar droga. Fazer algum lance, uma história. “Faz a mão então, busca as biras. Dá um jeito”. Frito: o cara que fritou do pó. A ressaca do pó. Que coisa: redução de coisa boa. Droga boa. “Essa é da boa”. Tá ligado: o cara é ligado, antenado. O cara que saca das coisas. Quem tá ligado curtiu uns estimulantes. Desligado, largado: o cara chapado de maconha. O cara que não tá nem aí pra nada. Furar a mão: o cara que não cumpre o que prometeu. “O cara disse que ia estar com o fumo tal hora e não apareceu”. Alto, alturas: o cara que tá podendo; tomou algo bom. Cai da boca: o cara que tá na boca de droga, queimando o filme. Sai fora. Dá um tempo: o cara que larga as drogas pra fazer a cabeça careta. Cabeça feita: um cara ligado, dos bons. Careta: o que não se droga. Careteou. O cara que deixou de fazer a mão. Roubada: ser passado pra trás. O cara compra droga malhada. Melado: alguma combinação não realizada. Melou a história. Melado é o pó que fica no sol e vira uma pasta grudada. O cara só pode pôr embaixo da língua, depois frita. Se queimar, queimou. Queimar a cabeça: usar muita droga. Parece que a cabeça, os neurônios, tão queimando. Ficar burro: usar maconha. Não é só uma coisa ruim. O cara fuma e fica burro, mas numa legal. Legal: inversão de ilegal. O cara faz um lance ilegal, se droga, mas pros drogados isso é legal. Ilegal pro Estado, legal pros manos. Mete a história: tipo: “faz a mão. Dá um jeito”. “Mete a história rápido, a droga rápido. A polícia pode chegar”. Ou os pais. Cortar: misturar droga. Coca com farinha. Cair a casa: dar tudo errado. Polícia atracando o barraco. Enquadrar: sacanear. Tirar. Ser preso pela polícia.  Onda: curtir uma onda, fazer onda. Onda da maconha. O cara viaja em alguma coisa. Fica uma hora divagando sobre algo mínimo. Dar um brilho: fazer algo legal. O cara ligado de pó. Acabado: cansado, falido. O cara que tomou todas, tá acabado. Se acabar: fazer as coisas ao extremo. Fez demais.  

Porto Alegre nos anos 90


A gente tava na Oswaldo. Tava fazendo a cabeça no Bar João. Tava rolando aquelas cachaças da boa. Alguém pegava um copo grande e botava na roda. Aquela merda era muito forte. Um golinho por vez. E de gole em gole o barato batia. A gente ia até outro bar, o Escaler, e pegava um fumo. Uns trafis vendiam ali numa viela sem luz. A gente fumava. Voltava pro João. Pedia mais uma canha. Sempre rolava algo mais. Umas minas vendiam hipofagin e inibex. A gente comprava. É, a gente tava lá. A gente tava curtindo. Chegaram uns boys. Eles tavam de carro. Era uma saveiro. Disseram pra gente: sobe aí, vamos dar uma volta. A gente subiu na parte aberta da caminhonete. Eu, um mano e duas minas. A gente tava doido de bola, fumo e canha. Os manos da direção, os boys meteram o carro na rua. Alta velocidade. E a gente ali atrás. A gente tava passando pelo Parcão, numa descida. Os caras não tiravam o pé do acelerador. Era nos anos 90. Não tinha essa de lei seca. Não tinha essa de que menor não pode entrar em casa noturna. Não tinha essa de que menor não pode comprar cigarro. A gente fazia a festa. A gente tava descendo a lomba ali do Parcão. Na traseira tava o mano, viajando. Junto tavam as duas minas. Uma delas eu tava ficando fazia um tempo. Só que a outra era muito gata. Dei uns beijos na mina que eu tava ficando. Vi que a outra ficou com a cara fechada. Saquei que ela tava a fim. Beijei-a também. Ela gostou. Quando vi, nós três, a gente tava se beijando. Eu com duas garotas. E elas também se beijavam. Primeira vez que fiquei com duas garotas ao mesmo tempo. Primeira vez que duas garotas se beijavam na minha frente. O carro voltou pra Oswaldo. Os boys eram parceiros. Dei uma paranga de fumo pra eles. A mina que eu tava ficando me chamou prum canto. A outra desapareceu. Parte dois. A gente saiu da Oswaldo, eu e um mano. Era no meio dos anos 90. A gente tava doido de bira e bola. A gente passou pela universidade federal. Tava tudo meio escuro. A gente tava quase no centro e passava por uma rua estreita. Daí meu mano disse: cara, tem uma galera ali na frente. Era uma gangue duns 50 caras, blacks, de vila. Eles tinham saído das festas no alto do centro, ali do lado da Santa Casa, e se concentram na rua. Tavam atrás de confusão.  Eu e meu mano, a gente tava doido. A gente nem deu bola e passou por eles. Os caras nos tiraram. Falaram dos nossos tênis de marca. A gente nem olhou pra eles. E eles deixaram assim. Devem ter pensado: esses caras são loucos de passar por nós. Daí, a gente parou numa outra ruinha. Ficava entre o centro e a Cidade Baixa. A gente tava ali esperando o ônibus que não passava. A gente ficou conversando. Putos já que não tinha mais crivo. Putos porque não tinha mais fumo. Mas a gente tava na boa. A rua, a gente já tinha sacado, era lugar que uns michês faziam ponto. Eles pegavam putos ali. Mas isso só rolava de vez em quando. Mas daí a gente não ficou surpreso quando um veado passou e nos ofereceu carona. A gente entrou no carro.  Pediu crivo pra ele. Ele deu. Perguntou se tinha fumo. Ele disse que não tinha. Daí ele disse pra gente: vamos fazer programa? Eu e meu mano a gente disse que topava. A gente disse que podia rolar na Usina do Gasômetro. Lá tinha um estacionamento e ninguém passava. Era junto do rio Guaíba. O veado parou o carro e disse pro meu mano: “quero fazer primeiro com você. Quero chupar você.” Saí do carro. Meu mano tava na carona. O veado tentou baixar as calças dele. Meu mano deu uma joelhada na cara dele. Eu abri a porta na parte que o veado tava. Empurrei ele pra fora. Meu mano veio junto. A gente encheu ele de chute na cara. A gente chutou ele até apagar. A gente pegou a carteira do cara. Ele tava cheio de grana. A gente empurrou ele até a areia. Deu mais chutes na cabeça pra apagar ele de vez. A gente pegou o carro, e se foi. Eu era o único que sabia dirigir, a gente tinha só 16 anos. Meu mano do meu lado, tava tremendo todo. Começou a falar: “será que e gente matou o cara, será que a gente matou?” Eu também tava nervoso, tinha ficado careta com toda a história. Daí disse: “cara, vamos até a Cruzeiro, a gente deixa o carro ali perto. A gente pega essa grana e compra pó. Não se preocupe.” A gente deixou o carro numa rua. Subiu o morro. A gente pegou toda a grana em pó. Deu umas 10 gramas. Tava de boa. A gente cheirou, e daí esqueceu do cara. Nos dias seguintes a gente ainda tava com medo. Podia dar merda, a gente podia ter matado o cara. Mas não rolou nada. Três semanas depois a gente tava no mesmo ponto que tinha pegado o cara. A gente queria pegar mais um veado e roubar o cara e fazer a festa. 

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