Introdução
2
Esses
textinhos curtos, impressionistas, posso chamar de lixinhos. São restos, do que
vai vir pela frente. Surgiram de um
monte de coisa. Surgiram da pesquisa, de contatos com gente de muitos locais
diferentes, das minhas leituras, de coisas mal lidas, que tenho que ver e
rever, de pedaços de memória, minhas, de outras pessoas. Aqui atiro pra todos
os lados, com a chance certa de erro. Penso coisas que são do discurso
dominante e busco linhas de fuga. Não só discurso, mas o que é dominante na
vida. Busco isso no que está ao meu redor, sem rigorosidade. Ou o que estava ao
meu redor. Escrevi, principalmente, como linha de fuga da dureza disciplinar,
da caretice acadêmica, que é a vida que sigo e quero continuar seguindo. Mas
experimento a linguagem, as ideias, num barato porra loca da pesquisa
acadêmica, da minha pesquisa. Barato louco, drogado, puto, marginal, etc. Claro
que o texto não se torna puto; como um livrinho se tornaria puto? Como injetar
pó num livro, se ele não tem veias? Como fazer dele um ladrão? Provavelmente,
se passar pra qualquer acadêmico que se diz sério demais pra falar algo
simples, e muitas vezes carinhoso, como “foda-se” em sala de aula, em seus
artigos, nos congressos... se eu passar esses textos pra esse cara, ele vai
dizer que eu tô fora da casinha. Vai me mandar pra longe. Parte por medo, da disciplina, da burocracia,
parte por pudor, ou mesmo porque se acha acima disso. Só que mano, eu posso
defender minha bundinha acadêmica, dizendo que eu uso essa linguagem, tom,
porque os autores em que eu me apoio não medem palavras; posso dizer que tenho
influências da geração romântica, então posso falar dessa forma: saca? Tô usando a arte como potência. Posso dizer
que tô fazendo literatura, o que já fiz e, aliás, foi sempre bem aceita, mesmo
no ambiente acadêmico, porque na arte é permitido. Mas o que interessa é usar,
experimentar pra depois cravar os dentes na pesquisa em sua forma tão branca,
chata e careta; cravar os dentes nela... delícia, um pouco de pele, de sangue,
de dor, prazer, uma curra por traz no pescoço; contagiar ela, com o vírus, numa
transa vampiresca; deixar o vírus agir aos poucos, mesmo deixá-lo adormecido,
sem que ela saiba... até que! até que!! Atéé-hummm!!!... ver o que
acontece.
Sid
e Nancy
Puta filme. Os dois viciados em heroína.
Nancy garota de programa. Sid roqueiro que come todas. Os dois se amam de uma
forma punk. Se batem, se xingam, fazem um monte de merda. Sid chega ao final da
carreira como músico. Só heroína. Perde show. Nancy se acaba também, daí Sid a
mata. Música anarquista, heroína, amor livre, um amor punk.
Detonação
em Porto Alegre
Moro então em Porto Alegre. Merda de
cidade do Sul do Brasil. Cidade de merda. Nada pra fazer. Tinha o que fazer
quando eu topava todas. Hoje, merda, tô noutras. Só que bem... olha só. Saí com
uma amiga na segunda de noite. A gente foi nuns picos. A gente queria
conversar. A gente não tinha trampo na terça. Daí a gente queria ficar na
nossa, mas na rua. Daí, o que fazer? Não tinha quase nada aberto. A gente foi
nuns postos. Eu tava dirigindo. Daí a gente tava numas de café. Muito café,
cigarro. Rango a gente tava pensando pra mais tarde. Uma hora a gente sacou que
já tinha encarado todos os postos legais. Daí a gente foi pro aeroporto. Mais
café e conversa. Daí a gente saiu de lá às 2 horas da madruga. Só que queria
ainda dar mais banda. Daí, não tinha realmente mais nada pra fazer. E a gente
foi pro ap dela. Beleza. Só que depois das 11 da noite notei que, em alguns
lugares, bem poucos, tinha gente. Lugares em que eu não queria estar. Daí tinha
gente nesses lugares. E essa gente tava bebendo. Era segunda-feira. Era quase
madruga. E os manos bebendo ali na Cidade Baixa. Daí, me lembrei de uns anos
antes na segunda, quando eu quebrava todas; quando curtia todas. E segunda era
só mais um dia. Mais importante quando era continuação de domingo. Não mano,
era continuação de sábado. Mano, podia ser continuação de sexta. Ou de sete
dias atrás. E bem... então, segunda, noite. Nada pra fazer. Pior dia da semana.
Tudo fechado. Só que é noite e o cara tá
a fim de festa. E depois da meia noite, o cara tá bêbado e cheirado. Daí vai
pra cima e pra baixo. Procura lugar com gente. Sempre encontra, mesmo os
lugares sendo boca braba. Só que uma hora não tem mais ninguém. Daí o cara tá
num carro com mais três caras. Um amigo e dois caras que não sabe como tão ali
no carro. Todos tão ligados. Têm ceva. Pó na mão. E querem ver outras pessoas.
Melhor, querem ver mulher. Daí o que faz? Acho que por isso que vários puteiros
ficam abertos a noite toda todos os dias. As putas são gente legal, topam
todas. Tão ali pra fazer o serviço. E assim mano, na real elas são legais. São
gente como a gente. Só tão na ruim. Só tão a fim de fazer a mão delas. Então...
bem mano, daí nasceu o sol. O carro é metade puta, metade uns caras que comem
puta sem preservativo. Eles vão num posto. Eles baixam ceva. Eles se revezam no
estacionamento. Fodem feito louco. Todos eles têm namoradas. Todos têm emprego.
Eles tão na faculdade. E que se foda tudo. Que se foda os dias da semana e os
professores. A futura esposa. O patrão. O superego. Que se foda o sol. Que se
fodam os neurônios. Que se foda.
As
vilas de Porto Alegre
Uns merdas de garotos. Hoje médicos,
economistas, comunicadores, e tal. Um ou outro fodido. Mas poucos. Os caras
tinham 15 anos. E nada na cabeça. Eram caras da classe média que tinham levado
bomba em colégio particular. Daí os velhos os colocaram em colégio público. No público, os colegas
todos pobres. Daí os classe média se
reuniram e formaram a gangue dos playboys. Diferente dos outros, eles tinham mesada.
E mesada gorda. Tinham cigarro caro que pegavam dos pais. E todo o resto,
roupas, bons presentes. Bem, só que caíram em outra real. Começaram a fazer amizade
com os caras mais pobres. Uns caras de vila, marginais. Interessante como as
vilas e bairros ricos se misturam em Porto Alegre, bem Brasil. Por isso, essa mistura nos colégios públicos.
É cara, um dos bairros mais chiques de Porto Alegre, tipo Assunção, só com
casas de milionários... Olha só, casa residencial e riqueza, um lance raro hoje
em dia. Cara, essas casas tão do lado de um monte de favelas. Favela da Guaíba.
Antes tinha uma mais abaixo que virou shopping pra rico. Mais acima, favela Conceição.
Mais pro lado, tem a Funil e, uns dez anos atrás, tinha uma vilinha, a Vagão. E
pertinho tem uma das maiores, a Cruzeiro do Sul. Da parte alta da Assunção (olha
que massa, o nome do bairro é Vila Assunção, vila de rico) dá pra ver a
Cruzeiro. E mais legal, no coração desse bairro de ricos tem um colégio público,
que mistura os ricos caídos com os pobres. Voltando, pra história. E cara... os
riquinhos entram no colégio levando soco; só que no ano seguinte tão dando soco
junto com os manos pobres. Entraram na turma. Daí os riquinhos meio que viram a
casaca. O cara tem grana no bolso, mas porra, não vai comprar comida no super.
O cara compra e vai ser roubado. Daí, o cara riquinho rouba também. Vai pagar
bus? Os manos vão sacar que tá com grana, melhor descer por trás. E por aí vai.
Daí os caras crescem juntos. Aos poucos, frequentam as casas. Aparecem amizades
que meio que se fortalecem. Daí vira merda. Vira merda já que muitos dos manos
pobres já tavam marcados pra fazer merda na vida adulta. E certos manos
riquinhos acham essa uma vida legal. Melhor, usam os manos pobres como trafi,
receptor, e tudo mais.
Iggy Pop
Iggy Pop foi num show dos Doors. Gostou
pacas da performance do Morrison. Dá pra notar isso em sua dança. Só que Pop
deixou as coisas mais cruas. Bem, o cara tornou urbana a dança do Morrison, que
era ritual. Um ritual de xamanismo, pagão, tudo isso misturado com ácido. E ácido,
bem, nos anos 60 permitia o contato com algo divino. Além da vida. O lance do Iggy
era punk. Acho que isso: um Morrison punk, do subúrbio, da heroína, do lixo da
vida real. Heroína torna o cara um rato. Ácido deixa o cara, ou deixava, numas
de “vejo deus”, ou até de “sou deus”. E Morrison dizia isso: sou Dionísio, sou
um xamã. Pop deixava bem claro: quero ser seu cachorro, nada mais que isso.
Experimentação
da marginalidade
Acho que é melhor falar na marginalidade
como um todo. Não pensar só em coisas específicas. Tudo se liga. A prostituta
se droga e rouba. O drogado faz michê e rouba. E por aí vai. Daí tem essas
crianças. Eles têm entre 12 e 17 anos. São amparadas pela lei. Os de classe média
papai faz de tudo por eles. Daí, eles fazem o que querem. Não vão ser presos. Eles
não são drogados, michês, putas, ladrões profissionais. Só que eles fazem isso
tudo, e parte por curtição. Depois ficam adultos e a coisa muda. A maioria não
se torna viciado, muito menos ladrão e profissional do corpo. Pra mim, isso é
uma das riquezas da juventude: experimentar a marginalidade, de um jeito
espontâneo e sem paranoias. E mais importante: quando adultos, têm a possibilidade
de experimentar algo que tava presente na adolescência. Não sendo marginal, mas
algo ligado ao marginal, um marginal possível. Pode ser na escrita, na arte. Na
relação com a esposa ou marido. Na relação com o filho. Na relação com os
alunos. No trabalho, com o patrão ou empregado. Na vida, na relação com a vida.
Pode ser até nos pensamentos. Manter o coração com o jovem, o marginal, não como
um lance paternalista. Ser parceiro de sua própria adolescência.
Gírias
drogadas
Muitas gírias se referem a coisas ligadas
a drogas, ao uso, ao usuário. Segue uma lista. Massa: uma coisa legal. Massa é a maconha da boa. Palha, uma coisa ruim. Palha é maconha
fraca. Fraca como uma palha. Na loucura, doido, são palavras dúbias. Podem se referir a um cara do tipo sem
noção, um bobão, ou um cara legal que faz merdas que não sujam. Sujeira e limpeza: sujeira com os
canas, com os pais, com os amigos. O cara que tá com o filme queimado. Limpeza,
um cara tranquilo, um lance que pode ser feito sem problema. Noia é um cara meio sujeira. Que viaja.
Viagem: lance também bom e ruim. O
cara é uma viagem, é uma figura, é massa. Ou é um viajão, o cara tá fora da casinha.
Tipo o cara que pirou da bola. Na antiga, todo mundo falava de artane: uma bola,
remédio, que levava o cara à loucura, uma sujeira. Da boa: maconha forte. Fazer
a mão: comprar droga. Fazer algum lance, uma história. “Faz a mão então,
busca as biras. Dá um jeito”. Frito:
o cara que fritou do pó. A ressaca do pó. Que
coisa: redução de coisa boa. Droga boa. “Essa é da boa”. Tá ligado: o cara é ligado, antenado. O
cara que saca das coisas. Quem tá ligado curtiu uns estimulantes. Desligado, largado: o cara chapado de
maconha. O cara que não tá nem aí pra nada. Furar a mão: o cara que não cumpre o que prometeu. “O cara disse
que ia estar com o fumo tal hora e não apareceu”. Alto, alturas: o cara que tá podendo; tomou algo bom. Cai da boca: o cara que tá na boca de
droga, queimando o filme. Sai fora. Dá
um tempo: o cara que larga as drogas pra fazer a cabeça careta. Cabeça feita: um cara ligado, dos bons.
Careta: o que não se droga.
Careteou. O cara que deixou de fazer a mão. Roubada: ser passado pra trás. O cara compra droga malhada. Melado: alguma combinação não
realizada. Melou a história. Melado é o pó que fica no sol e vira uma pasta
grudada. O cara só pode pôr embaixo da língua, depois frita. Se queimar, queimou.
Queimar a cabeça: usar muita droga.
Parece que a cabeça, os neurônios, tão queimando. Ficar burro: usar maconha. Não é só uma coisa ruim. O cara fuma e
fica burro, mas numa legal. Legal: inversão
de ilegal. O cara faz um lance ilegal, se droga, mas pros drogados isso é
legal. Ilegal pro Estado, legal pros manos. Mete a história: tipo: “faz a mão. Dá um jeito”. “Mete a história
rápido, a droga rápido. A polícia pode chegar”. Ou os pais. Cortar: misturar droga. Coca com farinha.
Cair a casa: dar tudo errado. Polícia
atracando o barraco. Enquadrar: sacanear.
Tirar. Ser preso pela polícia. Onda: curtir uma onda, fazer onda. Onda
da maconha. O cara viaja em alguma coisa. Fica uma hora divagando sobre algo
mínimo. Dar um brilho: fazer algo
legal. O cara ligado de pó. Acabado:
cansado, falido. O cara que tomou todas, tá acabado. Se acabar: fazer as coisas ao extremo. Fez demais.
Porto
Alegre nos anos 90
A gente tava na Oswaldo. Tava fazendo a
cabeça no Bar João. Tava rolando aquelas cachaças da boa. Alguém pegava um copo
grande e botava na roda. Aquela merda era muito forte. Um golinho por vez. E de
gole em gole o barato batia. A gente ia até outro bar, o Escaler, e pegava um
fumo. Uns trafis vendiam ali numa viela sem luz. A gente fumava. Voltava pro
João. Pedia mais uma canha. Sempre rolava algo mais. Umas minas vendiam
hipofagin e inibex. A gente comprava. É, a gente tava lá. A gente tava
curtindo. Chegaram uns boys. Eles tavam de carro. Era uma saveiro. Disseram pra
gente: sobe aí, vamos dar uma volta. A gente subiu na parte aberta da
caminhonete. Eu, um mano e duas minas. A gente tava doido de bola, fumo e
canha. Os manos da direção, os boys meteram o carro na rua. Alta velocidade. E
a gente ali atrás. A gente tava passando pelo Parcão, numa descida. Os caras
não tiravam o pé do acelerador. Era nos anos 90. Não tinha essa de lei seca.
Não tinha essa de que menor não pode entrar em casa noturna. Não tinha essa de
que menor não pode comprar cigarro. A gente fazia a festa. A gente tava
descendo a lomba ali do Parcão. Na traseira tava o mano, viajando. Junto tavam as
duas minas. Uma delas eu tava ficando fazia um tempo. Só que a outra era muito
gata. Dei uns beijos na mina que eu tava ficando. Vi que a outra ficou com a
cara fechada. Saquei que ela tava a fim. Beijei-a também. Ela gostou. Quando
vi, nós três, a gente tava se beijando. Eu com duas garotas. E elas também se
beijavam. Primeira vez que fiquei com duas garotas ao mesmo tempo. Primeira vez
que duas garotas se beijavam na minha frente. O carro voltou pra Oswaldo. Os
boys eram parceiros. Dei uma paranga de fumo pra eles. A mina que eu tava
ficando me chamou prum canto. A outra desapareceu. Parte dois. A gente saiu da Oswaldo, eu e um mano. Era no meio dos
anos 90. A gente tava doido de bira e bola. A gente passou pela universidade
federal. Tava tudo meio escuro. A gente tava quase no centro e passava por uma
rua estreita. Daí meu mano disse: cara, tem uma galera ali na frente. Era uma
gangue duns 50 caras, blacks, de
vila. Eles tinham saído das festas no alto do centro, ali do lado da Santa
Casa, e se concentram na rua. Tavam atrás de confusão. Eu e meu mano, a gente tava doido. A gente nem
deu bola e passou por eles. Os caras nos tiraram. Falaram dos nossos tênis de
marca. A gente nem olhou pra eles. E eles deixaram assim. Devem ter pensado:
esses caras são loucos de passar por nós. Daí, a gente parou numa outra ruinha.
Ficava entre o centro e a Cidade Baixa. A gente tava ali esperando o ônibus que
não passava. A gente ficou conversando. Putos já que não tinha mais crivo.
Putos porque não tinha mais fumo. Mas a gente tava na boa. A rua, a gente já
tinha sacado, era lugar que uns michês faziam ponto. Eles pegavam putos ali.
Mas isso só rolava de vez em quando. Mas daí a gente não ficou surpreso quando
um veado passou e nos ofereceu carona. A gente entrou no carro. Pediu crivo pra ele. Ele deu. Perguntou se
tinha fumo. Ele disse que não tinha. Daí ele disse pra gente: vamos fazer
programa? Eu e meu mano a gente disse que topava. A gente disse que podia rolar
na Usina do Gasômetro. Lá tinha um estacionamento e ninguém passava. Era junto
do rio Guaíba. O veado parou o carro e disse pro meu mano: “quero fazer
primeiro com você. Quero chupar você.” Saí do carro. Meu mano tava na carona. O
veado tentou baixar as calças dele. Meu mano deu uma joelhada na cara dele. Eu
abri a porta na parte que o veado tava. Empurrei ele pra fora. Meu mano veio
junto. A gente encheu ele de chute na cara. A gente chutou ele até apagar. A
gente pegou a carteira do cara. Ele tava cheio de grana. A gente empurrou ele
até a areia. Deu mais chutes na cabeça pra apagar ele de vez. A gente pegou o
carro, e se foi. Eu era o único que sabia dirigir, a gente tinha só 16 anos. Meu
mano do meu lado, tava tremendo todo. Começou a falar: “será que e gente matou
o cara, será que a gente matou?” Eu também tava nervoso, tinha ficado careta
com toda a história. Daí disse: “cara, vamos até a Cruzeiro, a gente deixa o
carro ali perto. A gente pega essa grana e compra pó. Não se preocupe.” A gente
deixou o carro numa rua. Subiu o morro. A gente pegou toda a grana em pó. Deu umas
10 gramas. Tava de boa. A gente cheirou, e daí esqueceu do cara. Nos dias
seguintes a gente ainda tava com medo. Podia dar merda, a gente podia ter
matado o cara. Mas não rolou nada. Três semanas depois a gente tava no mesmo
ponto que tinha pegado o cara. A gente queria pegar mais um veado e roubar o
cara e fazer a festa.
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