..........................................
Eu me desprezo, não me suporto, tenho
vergonha de mim mesmo. Minha empregada doméstica recebe por hora mais do que um
professor, e eu acho que isso é sintoma da decadência social. Como alguém
baixo, de segunda classe ganha mais do que um professor? Um professor tem que
ganhar mais do que um limpador de rua, mesmo que o trabalho do limpador seja
muito mais duro. Trabalho intelectual tem que ser valorizado, mais, sim, do que
qualquer outro. Eu sou classe média, minha família pode pagar meus estudos, mas
entrei na universidade pública. Sou rico e ganho financiamento de agências do
Estado, e o Estado é sustentado pelo trabalho duro dos pobres. Eu não preciso do
dinheiro, mas quanto mais, melhor. Que se foda o cara que tá na rua, eu quero
fazer minha vida, isso que importa. Sim, eu luto pelos pobres em meu discurso,
mas só nele. Tenho pena deles, sou paternalista, quero o bem deles desde que eu
continue tendo cada vez mais dinheiro. Sou um gourmet, gosto de comidas
especiais em restaurantes hipsters. O que eu pago por uma refeição poderia
alimentar muitos que estão nos semáforos pedindo esmolas – passei por eles
agora. Eles que se fodam. Troco de carro a cada três anos já que não gosto de
carros velhos. Admiro pessoas que têm carros que custam centenas de milhares, e
eu queria ter um carro assim; e esse dinheiro – o custo de um carrão de playboy
– poderia ajudar quantas pessoas? Tenho uma casa grande, bem equipada que
abriga minha família, enquanto muitas famílias, do mesmo tamanho, vivem em
tendas na rua. Se fosse estipulado que cada pessoa poderia ter apenas 30 metros
quadrados para si, que um casal poderia ter quarenta metros e dez a mais para
cada filho, se isso acontecesse, provavelmente, todos os brasileiros teriam
moradia digna. Mas eu não quero isso, quero mais e mais, e mesmo se eu nunca
tiver, quero que as coisas continuem assim, já que amo os ricos, a riqueza; gozo ao pensar na riqueza. [......] Como carne; que se fodam os
animais, mas ainda acho absurdo zoofilia. Sim, como carne já que é o alimento
mais caro; assim mostro para todos que tenho dinheiro. Tiro fotos em
restaurantes caros, por isso.
....................................
Preciso de mulheres, de gays, de negros,
de pobres, para que eu esteja sempre acima; sim, sou um macho, branco, classe
média. Eu fui castrado, então vou castrar; quero minha posição; que continue
existindo o poder de uns sobre muitos. Sou egocêntrico; e sou tão egocêntrico
que nem noto isso, já que meu discurso diz o tempo todo: sou um cristão
humilde. Para mim, só interessa a macro política, sou um cara sério. Faço
putaria apenas na vida privada; separo o privado do público. Quem fala o que eu
não entendo está louco; quem discorda de mim é fascista. Eu silencio quem me
contradiz. Sou um consumista, mas me auto qualifico como um lutador pelos
direitos dos que não têm renda para consumir. Digo que sou libertário, mas não
sei o que significa ser libertário. Eu valorizo intelectuais, já que sou um
intelectual. Eu valorizo a instituição familiar já que tenho filhos e esposa.
Tenho orgulho de mim, da minha vida, dos meus. Tenho orgulho, mesmo sendo tudo
isso que estou expondo aqui. Tenho orgulho dos meus amigos ricos, que se deram
bem na vida. Só gosto de gente como eu. Falo como poucos para marcar minha
posição; uso palavras difíceis, que poucos entendem, para mostrar que sou
alguém com um capital. Acredito no trabalho, trabalho remunerado. Odeio
vagabundos. É, digo que sou inteligente, mas não consigo entender que a “valorização
do trabalho” é uma palavra de ordem. A sociedade opressora é sustentada por isso.
Não entendo o significado de “renda de existência”, já que valorizo apenas o
trabalho assalariado. Não entendo que o cú, o cú dos gays, que ele colore o
mundo, o deixa mais alegre, mais interessante; os gays e seus cús produzem
mundos, o mundo. Cada prega que falta no cú de um gay, cada transa de um gay,
cada fist fucking que um cú recebe, tudo isso deveria ser
valorizado ao ponto de ser remunerado. [.........] Para mim, é normal duzentas
mil pessoas em um festival de música pop patrocinado por um monopólio, é algo comum jogos contínuos de futebol que reúnem pelos menos 50
mil pessoas e é também comum um povo, e eu junto, em casa, nas redes sociais,
enquanto pouquíssimas pessoas estão nas ruas contra o tal Estado fascista, que
eu sou contra – melhor: 300 pessoas, Porto Alegre, um ano de golpe, Cidade
Baixa, 8 horas e 30 da noite, sem polícia e bloqueios. [.....] Gosto de
abstrações e de pesquisa teórica. Sou um intelectual. Quando a rua, a vida são
meus objetos de pesquisa, abstraio de tal forma que a rua não aparece no meu
trabalho. Odeio a rua, amo a torre de marfim. Chamo de empiria, conhecimento
raso mostrar a vida de uma forma radicalmente direta, crua. Me escondo atrás de
conceitos e não sei como eles funcionam, suas materializações na vida, nas
ruas. [.........]
...............................
Eu amo o mundo, minha vida, agradeço pela
vida que me foi dada. O suicida, quem quer se matar, para mim, é um fraco, um
coitado, alguém doente já que ele não é como eu, "eu, o bom cidadão, saudável,
com bom senso". Quem quer se matar tem que ser impedido, precisa de ajuda
médica, tem que ser hospitalizado. Quando alguém corta os pulsos, ou toma uma
overdose, ou o que for, a primeira coisa que é feita é chamar os caras da área
de saúde para salvá-lo. Ele pode ser internado contra a própria vontade e quase
sempre é obrigado a ouvir o discurso moralista dos familiares; ele é obrigado a
viver em um mundo que odeia, com pessoas que odeia, aceitar as coisas como elas
são. E isso é assim, a vida, e eu afirmo essa vida. Se um drogado quer se matar
– já que não pode mais se drogar, e a droga é a única coisa que permite que ele
continue vivendo – eu digo: você tem que continuar vivendo como eu, como o bom
cidadão, tem que viver a vida e sofrer como eu sofro. Uma dupla imposição: não
pode se drogar, não pode se matar; o controle na forma de leis e moralismo. E mais.....
aos filhos é perguntado: você quer nascer, ser meu filho, você quer fazer parte
de tal povo, quer ser de tal classe social, ser de tal raça, você quer ser
humano, viver em determinada época? Se perguntar antes é impossível... então,
tudo isso é imposto, sem que haja escolha. Te fode, você vai ser humano e você
não tem escolha.
...................................................
Eu minto, manipulo, faço chantagens feito
uma histérica para manter minha posição. Falo mal do senso comum, mas meu saber
é baseado no senso comum. Penso como todos, a diferença é que sei falar e
escrever. Como a maioria não sabe fazer isso, eu afirmo o senso comum dizendo:
eles não pensam. Eu acho que conheço o mundo e tento mostrar para as pessoas o
mundo, já que elas não pensam o mundo. Que todos se coloquem em seus lugares;
meu lugar é o trono. Eu rio de todos, todos são risíveis. Digo para todos o
tempo todo: esse ano eu li 50 livros, vi 30 filmes, viajei para a Europa... eu
tenho que dizer, afirmar, mostrar. E todos os meus amigos fazem o mesmo, eles
são iguais a mim; então, como há tantos iguais, nem me vejo como um elitista. [.......]
Eu tenho que comer, como todos, uso as redes, como todos, tenho um corpo
humano, como todos, mas, sim, sempre afirmo: eu sou alguém “diferenciado”. Sou
tão controlado como todos, sou passivo como todos, aceito as coisas como todos,
mas é isso: me acho importante. Não consigo nem imaginar uma vida não fascista,
mas digo que eu luto por uma vida não fascista. Não reconheço que sou fascista,
que eu quero manter as coisas como estão. Para mim, utopia é a sociedade
perfeitamente controlada, na qual todas as pessoas sejam classe média e
inteligentes como eu. [...........] Quando alguém diz: o corpo tem que ser
conceituado; eu digo: não, o corpo humano é o corpo do homem moderno, formado
por órgãos, é isso. Ou seja, afirmo o que todo mundo pensa; e sempre digo: essa
é a forma que eu penso. Quando alguém diz: não tem muita diferença entre o
capitalismo e o comunismo de Estado; eu digo: mas são regimes completamente
diferentes, isso é o que eu penso. Quando alguém diz: só se pensa “com outros,
ou seja, a partir do comum”; eu não entendo e digo: mas eu penso, isso é algo
que diz respeito a uma pessoa, uma mente pensante. Ou seja, penso como todo
mundo. Confundo sempre complexidade com extensão, quantidade. Para mim,
complexidade é uma questão numérica. Ou seja, penso como todo mundo. [.....] Só
falo palavras de ordem e repetições e repetições do senso comum. Falo o tempo
todo em acabar com a opressão, mas para mim opressão é a de um Estado fascista.
Só vejo o Estado. [..........] Como bem disseram Deleuze e Guattari e Negri e
Hardt: a contracultura não foi uma revolução apenas de costumes, foi política,
econômica, subjetiva. Mas eu gosto de cada coisa em seu lugar, penso assim,
como todos, já que é a única forma de eu conseguir entender o mundo. Ser
homossexual é uma questão cultural sim, mas também política, econômica,
subjetiva, e diz respeito a todos. A inclusão das minorias cria uma vida
diferente. Os gays, trans, travas, lésbicas, eles estão por aí, pelas ruas e não
são mais agredidos; é outro mundo: a família mudou, a escola mudou, a empresa,
as ruas, as cidades... tudo mudou a partir da inclusão: afetou a subjetividade
das massas, alterou a política, o posicionamento dos políticos, as leis,
alterou a economia, criou novos consumidores e produtores.
.........................
Para mim, tudo é uma questão pessoal já
que só vejo a mim mesmo e secundariamente as pessoas que estão na minha roda e
as outras pessoas que estão ao redor; ou seja, como todos, só vejo o visível. Sim,
tudo é uma questão pessoal, quando falam mal dos brancos, da classe média, dos
intelectuais, sempre digo: mas eu não sou assim, você está errado. Acho que
estão falando de mim e não do mundo. Sim, eu sou o centro do mundo, e tenho sempre que me afirmar. [...................] Sim, eu fecho os olhos para não compreender que sou um fraco, submisso. Eu me acho especial, eu ensino
os fracos e submissos, os defendo; mas eu não aceito ser visto como eles. Então, quando dizem: direita e esquerda estão compactuando para se manterem,
já que eu dependo, voto, acredito ou na direita ou na esquerda, eu digo: é
mentira. Eu vou lutar eternamente para não aceitar que sou um fraco e submisso,
que sou enganado e fodido desde sempre. Eu fecho os olhos para não enxergar isso.