Saiu uma matéria no jornal mais famoso do RS, Zero Hora, sobre uma rua da cidade de Porto Alegre, a Lima e Silva. No texto é dito que a rua estaria sendo invadida, principalmente aos domingos, por uma horda de jovens que a tornam um “antro” de sexo, drogas, e outras coisas: sexo em banheiros de estabelecimentos comerciais, uso de drogas nas calçadas, agressão aos moradores.
Primeiro não se sabe o quanto verdadeiro é o relato do jornal. Expõe apenas o ponto de vista daqueles que são afetados pelo sucesso da rua (se tornou, nos últimos anos, “o local” da noite da cidade): os moradores (os poucos que não usufruem da rua para diversão, pois pela proximidade com a UFRGS boa parte dos moradores é jovem) e os comerciantes que veem seus estabelecimentos serem invadidos por uma turma que consome pouco e faz muito barulho.
Os donos de bares não serviram como fonte na matéria, mas sim o representante do Guion, o dono de uma livraria, o gerente de supermercado. Estes mais os moradores são aqueles que lucravam com a Lima e Silva quando ela era mais tradicional, uma rua familiar.
A Zero Hora é um jornal família, para as famílias de classe média, estas gostam de uma vida calma, sem barulhos, o jornal assim as representa. Por isso o jornal é conservador, defende algo como “a moral e os bons costumes”. O mais interessante é que os jovens que se drogam e transam em banheiros são os filhos dessa classe média.
O jornal postou fotos com legendas do tipo: “sem limites”. A maior parte era de garotos e garotas se beijando. As fotos estavam desfocadas. Uma foto era de um guri deitado no chão, provavelmente bêbado. Nada de mais, o que choca no texto é o tom alarmista, careta.
E se rola lá sexo em qualquer lugar e se todo mundo se droga? Talvez seja verdade. Minha hipótese é que os jovens fazem isso como resistência exatamente a esse discurso e essa vida criados pelos meios conservadores, a classe média, papai e mamãe. Volta e meia alguém fala da “adultificação precoce das crianças”; mas a questão é exatamente o contrário, da infantilização prolongada.
Tentam punir e vigiar os jovens, impedindo o mínimo de autonomia. Eles não podem beber, não podem entrar em festas, não podem se divertir. Tentam tornar o mundo da juventude algo sufocante: eles deveriam estar em casa com papai e mamãe, como a criança está.
O emprego que oferecem para eles é precário, impossível ter autonomia financeira para sair de casa e fazer a vida. Autonomia intelectual também é difícil, considerando que impõem uma educação idiotizante, não lhes dão alternativas. A saída é se agarrar no que é mais fácil para criar um mundinho: ser punk, emo, metal, hip hop, ou fazer parte de guetos relacionados a sexualidade. Quanto à droga que atravessa todos esses segmentos, é a possibilidade de liberdade, pelo menos até o barato acabar ou até bater a ressaca.
Pelo discurso da Zero Hora parece que a Oswaldo Aranha foi transferida para a Lima e Silva. Creio que parte dela, a outra parte é tão nova que provavelmente nunca ouviu falar sobre o antigo ponto underground da cidade. Na monografia fiz uma etnografia da rua. Os fatos que narrei são muito, mas muito mais radicais que os narrados pelo jornal. A Oswaldo era um ponto em que a vida pequeno burguesa era implodida: sexo, drogas, violência corriam soltos.
E não importa se era bom ou ruim, e se hoje na Lima e Silva isso é bom ou ruim, mas o que motiva os jovens: a fuga das disciplinas, a busca de autonomia, construir um mundo, resistir, essa é a única forma que encontraram para lutar contra aqueles que lutam contra eles, seus pais e a Zero Hora, os seus verdadeiros inimigos.
As drogas e o sexo são os seus aliados. Estão sempre ali, prontos para os acolher. Eles não têm limites, dizem as legendas. Essa é a real, eles estão cheios dos limites, dessa vida de todo mundo que constroem para eles.
Passaram mais de uma década trancados em casa. Vivendo como refugiados. E ainda dizem que ser criança é ser feliz, mas não há nada mais triste que ser um refugiado, um prisioneiro político, o que as crianças são, como disse Godard.
Quando o corpo fica mais forte e a cabeça começa a funcionar, o jovem diz: quero minha vida, uma vida singular, e faz ela, uma vida não muito rica: um visual, uma relação com a sexualidade mais livre, sem complicações, novas percepções permitidas pela droga, uma semiótica gestual andrógina, um discurso não legitimado. Deleuze que repetia: fugir, mas na fuga procurar uma arma. Os jovens traçam sua linha de fuga, e essas são suas armas.
Mas por qual razão isso é tão diferente da semiótica, do regime de signos, dos adultos? O mundinho dos jovens marca o limite: nós não queremos ser como vocês. E a vidinha tradicional da família e o discurso da Zero Hora não aceitam isso. Eles dizem: sejam como nós, ou melhor, sejam quem nós queremos que vocês sejam. Sejam nossos prisioneiros. Não cresçam, fiquem em casa, pulem a adolescência. O cidadão perfeito, o bom filho, seria aquele que sai da infância direto para o casamento, para a vida dos pais.
Parece que estou falando de conflito entre gerações, mas a questão é geográfica, de território: um careta, o território legitimado, de papai e mamãe; o dos jovens parte de desterritorialização do território careta que é re-territorializada num mundinho mais próximo do devir: devir-drogado (demora muito tempo para se tornar um drogado como estado), devir-homossexual (eles experimentam a sexualidade que vai ganhar forma bem depois), devir-marginal (são marginais relativos).
Aí sim a juventude se torna um entre dois de um discurso não redundante, sem clichês, um entre dois estados duros que se complementam: a infância e a vida adulta. Esse entre dois é preenchido por devires especiais, mas também por microfascismos: o ódio entre grupos, punks contra emos, metals contra punks, skatistas contra surfistas, black metals contra todos, bandinhos territorializados em palavras de ordem e violência.
E as drogas e o sexo como símbolos de libertação podem virar linhas de fuga mortíferas, vício, overdose, prisão, AIDS, gravidez. Mas isso faz parte da experimentação. Com toda sua dor e alegria. Mundinho que parece ser pequeninho, com alguns momentos de brilho, mas mais que isso não é possível, e essa impossibilidade não é culpa deles.
Um comentário:
Bah muito afude a tua leitura, pontual.
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