CRÔNICAS
FORA DE CONTROLE
Introdução
pra ser lida por gente do mundo acadêmico
O texto todo é uma experimentação sem
fórmulas, não é como um artigo ou tese, nos quais os modelos estão prontos. Por
isso, a linguagem da crônica, que na verdade é ensaio, pois há algo que se
aproxima de um método que acompanha todo o texto: pensar o discurso dominante,
as significações clichês, e a partir daí fazer um pensamento da diferença.
Pensar de outra forma, e pensar de forma diferente é algo aberrante, é uma
monstruosidade em relação ao senso comum. Por isso, a linguagem suja, crua, que
tenta se aproximar da linguagem da rua. As piadas de humor negro. A falta total
de seriedade. O fazer errado o tempo todo, considerando como certo aquilo que “as
grandes mentes escrevem”. Também quase todos os artigos – o livro é composto de
quase uma centena de crônicas – têm um mesmo tema, mas são autônomos. Eles
podem ser lidos de qualquer forma, a partir de qualquer ponto; apenas esta
introdução e a introdução seguinte que recomendo que sejam lidas inicialmente. Nesta
parte explico a consistência do livro, mas ela pode ser pulada, já que se
aproxima da linguagem acadêmica. Ou seja, faça o que achar melhor.
Muitas crônicas são faladas
na primeira pessoa. A partir daí, pode-se pensar que é um livro autobiográfico.
Mas não, não são historinhas pessoais que estão em jogo. Trago experiências
próprias pra pensar a vida. Um pouco da minha vida, do que vi, do que ouvi, um
pouco do que fiz, não importa, aliás, o livro é pra ser lido como se fosse
ficção. Aqui não há pudores. Então tanto faz. Atiro para todos os lados, sem me
importar com o alvo.
O texto é esse irmão mais
novo da minha vida acadêmica, melhor, um filho pródigo, rebelde, marginal. Gilles
Deleuze dizia que o livro mais marginal que havia escrito, o Mil Platôs, era o
mais querido. Um livro quase impossível de ser lido, digerido por poucos. Esse
é o livro que mais me atrai, principalmente, pela parceria de Deleuze com o
pensador vagabundo, Félix Guattari. Aliás, este que permitiu a Deleuze produzir
um pensamento realmente à margem. Assim parto deles, principalmente de seu
ponto de vista ético de pensar o minoritário como fuga do dominante. Este trabalho
é uma experimentação, trabalho em progresso, feito com uma liberdade que a
academia não dá.
Produzi o livro caindo
fora da produção dominante acadêmica. Aqui faço o que não se faz. Não que faça
errado, acho que vou além; além do enquadramento disciplinar. Não só além do
enquadramento, um texto de apologia ao fora do controle, mais, um texto fora de
controle. O que move o texto é uma
questão de paixão, não de protocolo, anti-institucional. Escrevi o que segue em pouco tempo, por isso
o estilo. Tentei ao máximo não expor diretamente conceitos complicados, pra
deixar o texto leve, aberto.
Penso um conceito, o
experimento, pra traçar essa fuga, o conceito de devir-adolescente. O conceito
de devir de Deleuze e Guattari demorei quase uma década pra entender; não quero
aqui resenhar a obra deles pra explicar o conceito; mas tentarei elucidar, aos
poucos, o que eles chamam de devir. Faço um gesto de apropriação do conceito, proposta
sugerida por Deleuze: roubo não imitação. E do meu roubo... Bem, utilizo o
conceito da forma que preciso. E ele permite isso. Seja pela sua complexidade,
na questão da leitura, seja pela necessidade de sua adaptação pra pensar a
contemporaneidade, o que certos autores fazem, como também tento.
Chamo,
então, o trabalho de Crônicas Fora de Controle. Fora das classificações, fuga
em vários âmbitos. Tenho como um dos temas principais a adolescência, e pra não
pensá-la como algo duro, utilizo esse pensamento Deleuziano da multiplicidade,
do rizoma, da cartografia. Penso a adolescência como território de
experimentações. Não como um território fechado e pequeno, como querem os psis,
pais, professores, pedagogos, policiais, Estado, políticos, mídia, e mesmo
certos cientistas, antropólogos, sociólogos. Mas como disse, não é apenas o
tema; é uma experimentação da adolescência, de elementos de seu território,
pensados como devir. Uma atitude, um estilo, uma ética que diz respeito à
adolescência. Ao fora de controle adolescente.
Um
devir-adolescente da escrita. Devir que arrasta outros que se referem à pobreza
e à marginalidade. Marginalidade como multiplicidade, que permite devires
drogado, esquizo, puta, ladrão, etc. Também marginal em relação ao minha tese
de doutorado, pois produzo o livro pra não ser apropriado pela academia. Já a
pobreza, esta é pensada como potência, possibilidade de fuga do padrão
dominante da classe média. E essas crônicas têm algo de pobreza, é uma escrita
pobre, diferente da riqueza das grandes obras e da abundância dos textos
acadêmicos.
Adolescência
então, pra mim, o que mais importa, é sua produção de espaço de experimentação,
principalmente, da marginalidade e também da pobreza; essa experimentação se
refere ao devir: devir-pobreza, devir-marginalidade, experimentação da pobreza,
experimentação da marginalidade. Tenho como foco, em parte, os jovens de classe
média. Isso, pois são aqueles que têm mais chances de terem uma vida com
regalias. Pergunto-me: porque alguns destes, talvez uma minoria, têm uma
relação especial (devir) com a pobreza e a marginalidade?
A
questão da marginalidade, eu considero mais importante do que a tipificação de
marginais. Nessa experimentação adolescente há algo de prostituta, drogado,
louco, ladrão. Até mesmo como estado tudo isso se embaralha. O estado diz
respeito às formas fixas, o devir faz conjugação entre elementos diferenciados.
Estado se diferencia de natureza do devir. O drogado experimenta a loucura pelo
uso das drogas, se prostitui e rouba para manter o vício. Um drogado como
estado e passagens por outros tipos de marginalidades em devir. A prostituta
como estado se droga em devir; as drogas podem permitir a ela um campo de
experimentações perceptivas. Ela pode, conjuntamente, roubar e não ser uma
ladra profissional. Quando preso o
marginal é enquadrado em todos os tipos de marginalidade. O poder não reconhece
o devir. Classifica sempre.
Já
o adolescente, o estado é a adolescência, o resto é devir. Então, penso a
marginalidade desses como algo em devir, ou seja, não penso nos profissionais
do roubo, da prostituição, etc. No caso, alguém que comete roubos por diversão,
ou pra manter o uso de drogas; que se droga, mas não é viciado; que faz michê
quando precisa; que trafica pra ter drogas em mãos. Não penso esse devir como
possibilidade, numa apologia, mas como algo concreto que acontece, e a partir
daí penso sua potencialidade. Junto está a pobreza, que faz parte da
marginalidade (roubar para ter dinheiro), mas é também um território
existencial: andar com pessoas de classe baixa, o traficante, ou certos amigos.
Acordar bêbado na rua; dormir na rua; frequentar o morro.
Claro
que isso talvez se refira a uma parcela pequena. Os adolescentes são mais que afetados pelo
poder sobre a vida. Afirmam identidades. Parecem uma lata de lixo, na qual são
postos todos os suvenires de mal gosto da indústria cultural, e eles aceitam
isso. Só que estão mais aptos que os adultos a experimentação.
Saiu uma matéria, no jornal gaúcho Zero Hora, sobre uma rua da
cidade de Porto Alegre, a Lima e Silva. No texto é dito que a rua estaria sendo
invadida, principalmente aos domingos, por uma horda de jovens que a tornam um
“antro” de sexo, drogas, e outras coisas: sexo em banheiros de estabelecimentos
comerciais, uso de drogas nas calçadas, agressão aos moradores.
O
jornal é conservador, representa a classe média e a família. Defende na matéria
o ambiente familiar do bairro. Aliás, o bairro cada vez mais se torna menos
boêmio a partir de políticas públicas encabeçadas por mídias do tipo. Há toda
uma luta por movimentos sociais de tentativa de manter o bairro como espaço
boêmio. A luta parece que está perdida. Interessante que os bares mais
populares são os focos principais – os bares que os jovens frequentam, pois
mesmo se forem da classe média, eles têm menos dinheiro que os adultos. Os
bares mais requintados pro público mais velho são os menos afetados.
Sei disso, frequento o bairro faz anos. Por
isso, que em muitas crônicas falo da Cidade Baixa e dos bairros vizinhos, como
o Bonfim. Como adolescente experimentei situações que são demonizadas pelo
jornal, por isso, posso falar de forma mais próxima do tema da
marginalidade. Aí entra outra questão de
método que é apagada no discurso acadêmico dominante, os traços da vida do
pesquisador.
Deleuze
diz: nada de métodos apenas uma longa preparação. Ele não explica o que seria a
preparação, mas para mim isso é viver, de preferência de forma singular, o que
fazem certos jovens. Penso a vida, mesmo a cotidiana, como espaço de conflito
entre poder e resistência. Portanto, essa vida pode ser matéria prima de
pesquisa. Mesmo trancado em casa ou em pensamentos, o conflito aparece, só
necessita-se do método pra mapeá-lo.
Então, trago experiência
pessoais, produzo um tipo de território, que diz respeito a certas pessoas, pra
pensar a adolescência como potência. O
poder desde baixo, não o poder acima e superior. Como potência não como
vergonha ou passagem que deve ficar no passado. Como experimentação que pode
ser utilizada pelo social.
Jovens
entre 12 e 17 anos, pode ser entre 10 e 25, não tem porque enquadrar a idade. Só
que até os 18 anos eles não têm deveres legais. Podem mais. Os da classe média
sempre têm os pais que podem subornar a polícia. Os brancos tem uma liberdade
maior em relação aos negros. Policias são mais condescendentes com os brancos.
Dois jovens classe média fumando maconha em pleno centro de noite. A polícia os
aborda. Apenas os manda saírem do local em que estavam. Um dos jovens, feliz
com a abordagem, e com sua petulância de criança da classe “superior” oferece
maconha para os PMs. Se fossem dois negros, o que aconteceria? Sabemos e bem, e
isso não é clichê, mas a realidade.
O
filho do médico acima de 18 que foi preso por porte de cocaína, só que muito
bem tratado pelos policiais. Acho que o prenderam como forma de dar um aviso:
“filho da classe média com todo um futuro pela frente, você está na faculdade
de medicina, está na hora de se endireitar”. O pai chega, paga uma grana para o
delegado e o filho está liberado. E eles, os jovens, usam essa permissão que o
Estado dá. Só que tudo isso que eles fazem sofre uma luta muito dura com as
figuras dos pais, psis, mídias. “Cresça, aprenda a crescer, mesmo que
lentamente”.
A
questão mais importante do trabalho no que se refere à juventude: fazê-los
entender que sua experimentação não deve se tornar culpa. O controle adulto faz
isso: “sinta-se culpado, seu pai faz tudo por você e você apenas faz merda”. Fazê-los
entender que experimentam algo especial. A ilegalidade como exterioridade da
legalidade; a droga como exterioridade da sanidade; o sexo livre como
exterioridade da heteronormatividade; a loucura como exterioridade até da
neurose da culpa. Primeiro então, entendimento de que essa vida tem valor.
Mesmo que o lado negativo, afirmado pelo controle adulto, não deixe de ser
verdadeiro: a linha de fuga que pode levar a morte.
Segunda
questão: produzir, criar valor a partir da experimentação. É o que se passa com
esse texto, que é uma experimentação da adolescência, como já disse. Como criar
valor? Uma relação diferente com a vida. Uma relação com a arte, já que por
essa experimentação passou a arte. Vemos isso nas biografias, ou mesmo na obra
de escritores que não eram adolescentes. Então, marginalidade, pobreza e agora
arte. Produzir arte a partir da experimentação. Ou mesmo filosofia, pois a
filosofia da diferença experimenta os mesmos devires. Seja marginal seja herói.
Não o que morre no fim, mas aquele que produz a partir da marginalidade.
Importante também, pois depois crescem e podem
ter uma relação diferente com a marginalidade, não paternalista, mas de
parceria. O filho diz que é gay e o pai diz: tudo bem. As minorias vão pra rua
e ele velho diz: meu coração está com vocês. Mas o inverso pode acontecer, pode
virar um reacionário de direita. Vimos isso nos antigos guerrilheiros aqui no
Brasil. Eles traçaram a linha de fuga. Foram para ilegalidade. Foram
torturados, quase mortos. Hoje trocaram de time. Linha de fuga mortífera, morte
da ética.
A
riqueza do território é a fuga dos códigos dominantes. O que podem os jovens?
Muito pouco, apenas viver, não ser. Importa o que motiva
os jovens: a fuga das disciplinas, a busca de autonomia, construir um mundo,
resistir; essa é a única forma que encontraram para lutar contra aqueles que
lutam contra eles, seus pais e a mídia, os seus verdadeiros inimigos, pelo
menos no que concerne a experimentação.
As drogas e o sexo são os seus aliados. Estão sempre ali, prontos para
os acolher. Eles não têm limites, essa é a real, eles estão cheios dos limites,
dessa vida de todo mundo que constroem para eles. Passaram mais de uma década trancados em casa,
vivendo como refugiados. E ainda dizem que ser criança é ser feliz; mas não há
nada mais triste que ser um refugiado, um prisioneiro político, o que as
crianças são, como disse o cineasta Jean-Luc Godard.
Quando o corpo fica mais forte e a cabeça começa a funcionar, o jovem
diz: quero minha vida, uma vida singular, e faz ela, uma vida não muito rica:
um visual, uma relação com a sexualidade mais livre, sem complicações, novas
percepções permitidas pela droga, uma semiótica gestual andrógina, um discurso
não legitimado. Deleuze que repetia: fugir, mas na fuga procurar uma arma. Os
jovens traçam sua linha de fuga, e essas são suas armas. Mas por qual razão
isso é tão diferente da semiótica, do regime de signos, dos adultos? O mundinho
dos jovens marca o limite: nós não queremos ser como vocês. E a vidinha
tradicional da família e o discurso da mídia não aceitam isso. Eles dizem:
sejam como nós, ou melhor, sejam quem nós queremos que vocês sejam. Sejam
nossos prisioneiros. Não cresçam, fiquem em casa, pulem a adolescência.
O cidadão perfeito, o bom filho, seria aquele que sai da infância direto
pro casamento, pra vida dos pais. Parece que estou falando do conflito clichê
entre gerações, mas a questão é geográfica, de território: um careta, o
território legitimado, de papai e mamãe; o dos jovens, parte de
desterritorialização do território careta que é re-territorializada num mundinho
mais próximo do devir.
Mais importante, quando perguntam que tipo de vida querem os filhos
europeus – os que estão indignados com a crise do continente e criam movimentos
antissistema – se o Estado pode proporcionar o que querem. Primeiro, muitos
querem derrubar o Estado; segundo, eles são jovens, experimentam a pobreza e a
marginalidade que trato, só que trazem outros elementos. Estes tornam a
experimentação em projeto político. Um outro tipo de experimentação, no entanto,
que faz parte do mesmo plano dos jovens que são politicamente apáticos. Falo
destes movimentos em algumas crônicas, pois são movimentos de juventude, e
também, pois é o tema de minha tese de doutorado. Nestes a pobreza como potência
é sua marca vista nas formas de expressão dos movimentos, principalmente, na ocupação
de praças, nas quais tudo funciona por parceria, a parceria dos pobres.
Quanto ao jovem apático também há um pouco de experimentação antissistema,
em certas subculturas: deixar o cabelo crescer, usar roupas rasgadas, não tomar
banho. O pai odeia o visual. São como mendigos visualmente. Não consomem roupas
de marca. Consomem muita coisa, mas dentro do possível, são antissistema.
Importante meu mapeamento, pois não há movimentos sociais pró-adolescência.
O que existe é de representação, sempre do poder adulto. Também os jovens são
peças-chave nos movimentos sociais, mas as demandas não se referem à pobreza da
vida impostas eles, pobreza agora como impotência. Não há demandas próprias dos
jovens do tipo: “nos deixem em paz pra curtir a vida”. “Por
uma sociedade sem pais”, “pelo fim do colégio”.
Caso mais extremo é o das crianças, estes não podem nem
ir às ruas, como vão lutar contra qualquer coisa? Não trato da infância, a
coisa é tão extrema que parece não haver resistência.
Pensar o poder, também é algo diferente, o que as significações
dominantes não fazem. Os jovens como foco de consumo. Um dos mais importantes.
Os jovens como produto. A maioria consome e bem, e mesmo certos tipos de
subculturas. As mesmas que permitem o devir são também produtos, que vão desde
moda, mídias até questões subjetivas e existenciais: o que se vende como estilo
de vida.
Outra coisa é a própria hierarquização entre os jovens e a recuperação
de certos estilos de vida. Exemplo: a maconha vai deixando de ser algo
marginal. O Brasil é um dos poucos países de porte que mantém uma política
conservadora. O fluxo das lutas pela maconha é recuperado pelo poder. Deixa de
ser diferença. Entre os jovens é mais que tolerada, o que pode criar um tipo de
hierarquia entre eles: o cara legal que fuma maconha, o cara sujeira que usa
outras drogas mais pesadas. O locão e o cara cool. Entre os gays, mesma coisa:
o homossexual hetero recuperado e o travesti, o monstro.
Importante é que não é qualquer diferença,
qualquer coisa. O mais importante é que o limite da vida cotidiana, da casa pequeno-burguesa
pode ser rompido. O poder disciplinar é afrontado pela juventude. Eles mostram
que há possibilidade de outra vida: novas subjetividades a partir da droga;
existências diferenciais que passam pela pobreza e parceria; sexualidades não
endurecidas, etc. Só que falo em devir e não em estado. Se drogar não é a
questão. O devir-drogado é permitido também pela filosofia. O devir-pobreza da
juventude se refere a uma vida sem excessos, luxo. Ou seja, a pobreza e a droga
não precisam ser ponto de partida pra se construir um devir-pobre ou drogado.
Questões da parceria: fala-se sempre da camaradagem dos brasileiros. O
músico brasileiro, Seu Jorge: “eu tava na Europa, e lá ninguém ajuda ninguém.
Aqui no Brasil se falta um gás, o vizinho empresta”. Pelo que recebo de
informações, a parceria a partir da pobreza está sendo experimentada na Europa.
As acampadas funcionam assim: empréstimo da barraca, tudo que se traz é
coletivo, não há donos; a comida, se ganha. As doações. Alguém pega sua grana
para fazer panfletos, depois quem tem dinheiro ajuda.
As mídias já passaram por isso. As mídias táticas baseadas no faça você
mesmo dos punks, a produção a partir de recursos mínimos e muita cooperação.
Apropriação das mídias, cada vez mais possível pra todo o social. No paradigma
atual da comunicação somos todos ladrões, pobres e parceiros, todos
experimentamos devires ladrão e pobre, todos cooperamos. Pra que comprar jornal, assistir TV, pra que
pagar por música e filmes, livros, softwares? Tudo está na rede disponível de
graça!
Exemplo das redes. Tenho muitos perfis que compartilham informações gratuitas,
sem receber nada em troca, sobre os movimentos antissistema. Fazem isso por
qual motivo? Querem mudar o mundo, e produção de saber é essencial, e gratuita.
Outra característica das ocupações, suas assembleias e mídias: produção de
saber aberta. Nas assembleias, marco dos movimentos, nas quais tudo que se
decide é descentralizado e aberto, há uma mistura de troca de conhecimento com
as questões organizacionais.
Alguns movimentos lutam por reforma. Movimentos das mulheres, dos
negros, da maconha, das vadias, dos gays. Querem ser incluídos. Outra linha é a
do fim do sistema pedido pelos movimentos europeus. Não mais inclusão, mas
excluir o próprio sistema. Não se excluir do sistema, nem se incluir: acabar
com o sistema. O que está mais próximo é a inclusão.
Finalizando a introdução, como dizia, as problemáticas da criança e da
adolescência, tem uma representação do poder. Importante gente falando para
eles: vejam bem, vocês experimentam isso facilmente. Isso é fácil para vocês.
Isso é legal. É bom. Podem experimentar de outra forma, só que isso já está nas
mãos de vocês. Quanto aos pobres: a única coisa que falta pra vocês é dinheiro.
Nada mais falta. A classe média não tem dinheiro, ela tem a possibilidade de
consumo. Os ricos têm concentração de riqueza, o que querem é poder.
A potência é a riqueza da vida, e é sempre alegre, sem baixo astral de
mortes, risco de vida. Só que mesmo quando a vida é arriscada pode se referir a
um território especial. O drogado que
prefere morrer a parar de se drogar, é algo triste. Só que nos apresenta novos
valores. A morte como algo temível deixa de ser; se mudam os valores, as
significações dominantes. O enterro poderia ser uma grande festa, mas é essa
coisa triste. As significações
dominantes são inimigas quando negam a vida. Quando são exercícios de poder; poder
sobre a vida.
Introdução
2
Esses textinhos curtos, impressionistas,
posso chamar de lixinhos. São restos, do que vai vir pela frente. Surgiram de um monte de coisa. Surgiram da
pesquisa, de contatos com gente de muitos locais diferentes, das minhas
leituras, de coisas mal lidas, que tenho que ver e rever, de pedaços de
memória, minhas, de outras pessoas. Aqui atiro pra todos os lados, com a chance
certa de erro. Penso coisas que são do discurso dominante e busco linhas de
fuga. Não só discurso, mas o que é dominante na vida. Busco isso no que está ao
meu redor, sem rigorosidade. Ou o que estava ao meu redor. Escrevi,
principalmente, como linha de fuga da dureza disciplinar, da caretice
acadêmica, que é a vida que sigo e quero continuar seguindo. Mas experimento a
linguagem, as ideias, num barato porra loca da pesquisa acadêmica, da minha
pesquisa. Barato louco, drogado, cigano, puto, marginal, etc. Claro que o texto
não se torna puto; como um livrinho se tornaria puto? Como injetar pó num
livro, se ele não tem veias? Como fazer dele um ladrão? Provavelmente, se
passar pra qualquer acadêmico que se diz sério demais pra falar algo simples, e
muitas vezes carinhoso, como foda-se em sala de aula, em seus artigos, nos
congressos... se eu passar esses textos pra esse cara, ele vai dizer que eu tô
fora da casinha. Vai me mandar pra longe. Parte por medo, da disciplina, da burocracia,
parte por pudor, ou mesmo porque se acha acima disso. Só que mano, eu posso
defender minha bundinha acadêmica dizendo que eu uso essa linguagem, tom,
porque os autores que eu me apoio não medem palavras; posso dizer que tenho
influências da geração romântica, então posso falar dessa forma: saca? Tô usando a arte como potência. Posso dizer
que tô fazendo literatura, o que já fiz e, aliás, foi sempre bem aceita, mesmo
no ambiente acadêmico, porque na arte é permitido. Mas o que interessa é usar,
experimentar pra depois cravar os dentes na pesquisa em sua forma tão branca,
chata e careta; cravar os dentes nela... delícia, um pouco de pele, de sangue,
de dor, prazer, uma curra por traz no pescoço; contagiar ela, com o vírus, numa
transa vampiresca; deixar o vírus agir aos poucos, mesmo deixar ele adormecido,
sem que ela saiba... até que! até que! Atéé-hummm!!!... ver o que
acontece.
Fuga
Sempre legal dar um tempo. Bom clichê da boa, dos manos, que sempre tão
mais ligados porque tão sempre ligados. Sempre achava um saco pensar. Quem tem
tempo pra pensar? Legal agir. De
repente, papo de velho: tempo pra pensar. Pensar no que passou enquanto tudo
passa, e o que fica é algo que a gente dá uma puta importância. Mas acho que
não só isso, legal juntar as forças; mais, experimentar a antropofagia: comer
um monte de coisa, principalmente o que interessa. De repente, a escrita passa
por aí, depois de comer de tudo um pouco, botar a bundinha na poltrona e
escrever. Daí fica o que interessa. O que dá pra usar. Não serviu? A gente parte pra outra. Escrever sempre é bom, melhor que pensar;
agir é legal, mesmo sabendo que depois isso vira lixo e só sobra menos de cinco
por cento. Legal dar um tempo pra cabeça. Daí a gente começa a fazer arte
porque, como diz o senso comum: “a saída tá na arte, ser artista na vida, em
tudo, ser uma pessoa especial”. Só que já passei por essa, e acho que esse
lance serve pra alguma coisa agora. A saída na arte como possibilidade de se fazer
o que quiser, já pensei assim. Putz, escrever notícia como ia ser obrigado se
seguisse a carreira de jornalista; me formei nisso... Não meu, quero escrever
de qualquer forma. Não estou retornando, não é a questão; uma pequena fuga
feita de pedaços, de um monte de coisa.
Prazer
e dor ou outra história
Sempre pensei que a história do cara que
cheira coca é de fugir da frita, do repé, da ruim, do fim do pó. O cara começa
a cheirar e daí faz o possível pra não parar; fica uma semana acordado até
acabar ou o corpo parar. Daí desmaia por três dias, mal na cama, fritando, suor
lá em cima, ressaca moral e um monte de merda. Daí tem o lado bom, o pico do pó;
o lado ruim é o pico da dor da falta do pó. Mas acho que seria legal sair das
oposições, das piores, bom e mal, prazer e dor, e pensar que isso faz parte do
território do pó. O território: o cara junta o máximo de grana de alguma forma,
como está só na fissura, só muito a fim, junta uma grana de forma legal, ou se
for ilegal, faz algo bem pensado. De repente, pega no morro um quarto de fumo e
combina com o patrão que paga depois. O cara pega o fumo, faz as parangas e
vende rápido pros amigos (em outro caso, se
o cara só fuma maconha, pega metade pra consumo próprio, com o resto faz
a grana do patrão e sobra mais uma boa grana), paga o patrão e fica com uma
grana boa pro brilho, tipo mais que dobra a mão. Mas trafiquinho é uma opção,
ele pode passar algum lance, sempre tem algo pra vender em casa; pode fazer um
roubo bem pensado, algum equipamento eletrônico dum vizinho. Pega o pó. Se dá
sorte pega com alguém que recém recebeu e que tá vendendo ainda com bom preço.
No caso, penso no cara que não passa o pó, ou se passar, vai ser pouco, penso
mais no cara que acha que tráfico de pó é meio roubada. Pega o pó e faz a mão.
O pó vai acabar uma hora. Ainda mais cheio de pó, vai acabar liberando pras
minas, pros manos, de repente, vai acabar liberando até pros malas. É esse pó
vai acabar e o lance é não deixar acabar. Como falava, pode ser a fuga da dor,
mas pode não ser só isso, porque quanto mais cheirar, mais dor vai ter depois.
O pó vai acabar. Antes das últimas carreiras já pensa: quero mais e não tenho
grana. Vai ter que fazer grana de forma ilícita, mas de forma alguma quer ser
preso, muito menos por coisa pesada. Possibilidades: vender fumo vai demorar
muito. Pedir arrego pro patrão, certamente já fez isso e tá fugindo dele.
Vender algo, trocar algo por mais pó, já foi tudo. Provavelmente, tá queimado
para pedir empréstimo pros pais e nenhum dos amigos vai emprestar, porque tão
juntando grana pra fazer a própria mão. Uma boa é saber o número dos cartões
dos velhos, o que já deve saber. Roubo: de repente um som de carro. Algo na
casa dos vizinhos. Atacar alguém na rua. Simular um michê com algum viado e
roubar o cara. Fazer um michê. Daí pega mais pó. E a história continua. Quando
acabar e sempre acaba, vai pra cama. Toma valium, fuma um e daí o resto é o
pesadelo. Só que o que parece que é oposto é muito próximo, falta e barato da
droga. Talvez sejam a mesma coisa. A cabeça que funciona sem parar nos dois
casos. A fala contínua no uso; na falta, a cabeça continua, mas sem o outro pra
exteriorizar. As ações que fogem daquilo
que se faria normalmente, no uso. Na falta, a impossibilidade da ação, os
pensamentos delirantes, fora do normal. O corpo que sua, treme, mesma coisa nos
dois casos. E como dizia um cheirador: uma semana cheirado só vale se a gente
sofre na cama depois uns três dias. Faz parte.
Relação
diferente com o corpo
Acho que nos últimos anos é cada vez mais
fácil parar de fumar do que continuar fumando. A mídia, a área da saúde mais os
psis, a indústria do corpo com as academias, as pessoas comuns, Estado com suas
leis, e etc; tudo isso serve como uma rede de terapia em massa. Pra quem quer
parar de fumar e entrar na onda, beleza. Pra quem quer resistir, esse se fode.
Mas tudo muito bonito, em nome da saúde, da gorda saúde dominante. O cara que fuma sabe que vai trocar alguns
anos de vida por décadas daquilo que o cigarro permite. Já que uma doença
grave, tipo câncer, avc, aparece só na velhice, ou se o cara tiver azar de já
ter tendência pra certos tipos de doenças. Mas e daí, vale a pena uma morte
talvez bem dolorosa, menos tempo de vida, pelo o que cigarro proporciona? Acho que o prazer é o mesmo pra todos,
talvez... Fumo principalmente como estimulante: café, cigarro e computador pra
mim criam uma combinação perfeita. Me sinto bem sempre em saber que vou poder
fumar o próximo cigarro. Isso que interessa, né? O próximo cigarro. Decidi
continuar fumando após anos de pressão de todos os lados e dentro de mim. Uma
época não conseguia nem ver certos programas de Tv, rádio ou ler certas
matérias que tratavam do tema. Sentia o câncer virtual dentro de mim. Em três momentos cheguei a agendar uma data pra
parar. Mas uma hora decidi dizer: foda-se! Fico com o crivo. Se isso me der um
final de vida mais doloroso, bem isso pode acontecer com todos. E provavelmente
morfina e heroína vão continuar existindo, ou drogas mais pesadas vão existir,
o que já dá uns anos de alívio. E no caso de avc, que deve ser um lance foda
pelas sequelas, eutanásia caseira sempre é uma saída. E na real, acho legal pôr a ideia de saúde em
jogo, tirar a doença do espaço marginal, ou mais, colocar em termos de desejo:
desejo da enfermidade, pôr a doença como possibilidade até de alegria, ou mesmo
a morte; tirar as associações negativas. De repente, uma relação diferente com
o corpo, uma relação existencial diferente, dessa existência que criam para
todos. Interessante que o padre sempre diz: “mas você fuma, você não tem amor
pela vida”. Só que viver uma vida construída por algo que vem de cima (poder),
que funciona para acabar com a vida (apropriá-la), é amor pela vida? Claro que
fumar, não é uma grande solução, mas a gente faz o que dá. Ouvi de um cara da saúde num programa de TV: “as pessoas não têm direito ao cigarro
somente a saúde”, ele disse isso em rede nacional. Mas daí comecei a dar mais
atenção nas pessoas ao meu redor quando estou fumando, e o que acontece é a
reprodução (só que mais chata) do mesmo tipo de discurso fascista.
Profundidade
e experimentação
Tava em um encontro de um grupo ligado aos
occupy em Porto Alegre. Era dia 11 do 11. Não sei exatamente porque esse dia
foi escolhido, já que tem toda uma carga espiritual religiosa. Só que após um
contato com pessoas ligadas às ocupações da cidade, percebi que muitos seguiam
algumas formas de religiões, mesmo que não cristãs. Esse encontro era centrado em
uma palestra sobre utopia. O mais importante, em um momento, um rapaz que se
autodenominou de “o artista”, disse: “hoje é o dia em que todas as pessoas
terão a chance de encontrar o verdadeiro amor”. Mais alguns dados: boa parte do
pessoal de ocupação em Porto Alegre era de novos hippies. Os hippies foram a
geração do paz e amor. Uma garota tinha tatuado “amor” em sua mão. Outra
garota, em sua página do facebook, está sentada em uma foto de seu perfil, com palavras
escritas: um amor. A foto esta há mais de um mês. Um senhor que tava passando
pela Praça 15 (lembrem-se desse número), praça central em Porto Alegre, numa demonstração
dos okupas no 15 de maio de 2012, olhou um cartaz da galera que dizia, “amor”, e
falou: “é isso que falta pra sociedade”. No natal, como sempre, minha tia me
enviou um cartão dizendo: “que você tenha uma vida cheia de amor”. Penso o amor
partindo do senso comum: um sentimento “profundo” por alguma coisa, de preferência
uma pessoa. Um sentimento “profundo”. No caso de jovens a gente sabe que dura
pouco, não vira um casamento, isso acontece raramente. Também, o amor não é um
lance só pra pessoas de gêneros diferentes; e não significa um lance
monogâmico. Isso endurece mais com uma idade avançada. Mesmo que não endureça,
em muitos casos. Só que continuam existindo casais de namorados jovens que
dizem sentir esse sentimento profundo. Então, o amor é isso, algo muito
profundo. Recebo uma mensagem de uma amiga que diz: “espero que você realize os
seus sentimentos mais profundos”. No caso, ela não falava de amor. Em uma
conversa com meu pai (note que tudo isso que estou relatando aconteceu comigo
nos últimos três meses): ele disse que a vida de casado, com filhos é mais
rica, já que tudo é muito mais profundo, as relações são mais íntimas. Pensar
profundamente sobre si mesmo cria o autoconhecimento. Pesquisa é um pensamento
profundo sobre determinada coisa: às vezes uma coisa neurótica em cima de um
pequeno recorte do real. Os poetas românticos e seus sentimentos profundos. “Muito
profundo isso que você disse”. “É uma pessoa profunda”. “Você foi profundo
nisso.” Ensaiando: o que são os desejos profundos? Aquilo que está escondido e
que deve ser conhecido? Ou aquilo que está escondido, e que não pode ser dito?
Tarinhas se encaixam aí, tipo sexuais, que são da ordem do desvio? Só que
profundo por isso, e deve ser escondido, ou realizado entre quatro paredes:
como aceitar que papais e mamães trocam de papéis quando estão trancados no
quarto. Então profundidade, aqui no caso, diz respeito a uma pessoa, suas
questões, seus desvios, uma pesquisa, ou duas pessoas, o amor, etc. Uma
pesquisa profunda sobre o mundo é impossível. O amor por inúmeras pessoas é
menos profundo que a fidelidade. Mas “seja profundo” é uma boa palavra de
ordem: na pesquisa, no amor, na terapia. No caso do amigo “artista”, todos
querem um verdadeiro amor. E idealmente, isso que se busca: uma pessoa pra
casar e amar por toda vida. A juventude é legal, em parte, pela experimentação.
Os jovens não se obrigam a ter relações profundas.
Mesmo que a adolescência seja uma fase profunda, um lance chato. Acho que suas
experiências legais são as de superfície.
A questão da festa, ambiente interessante. Um espaço de experimentação,
não um lugar escuro onde se realizam coisas proibidas. Droga é permitida de
certa forma, desde que não dê problema aos donos. Os banheiros que enchem de
gente pra cheirar pó, três pessoas em um banheiro que só cabe uma. Também é
proibido sexo em público, e pessoas de sexos diferentes podem ficar um bom
tempo no banheiro, sem problemas. Casais do mesmo sexo se beijando. Ninguém se
importa – claro que depende do lugar. Tudo isso dura pouco, deve durar apenas
uma noite.
Desejo
de outra vida
Na madruga, perdi o sono, tava um tempo
legal, decidi descer e fumar um crivo com o tio da portaria. Bah, e aí tio, e
tal. O tio sempre legal e receptivo, meio passivo e tal. Daí a gente começou a
falar sobre o tempo, minas, futebol. O tio com uns cinquenta anos, fumante dos
bons, bom bebedor, veio do interior, da roça. Contou sobre as histórias de
menino, que na época dele se ia na escola embaixo de chuva na lama, quando
tinha escola. Veio pra cá, casou e entrou na firma de segurança. 12 horas de
trampo dia, quatro de horas extra, só que obrigatórias, folga de um dia por
semana. Eu de bunda branca e gorda de comida de mamãe: mas como assim tio, caralho,
12 horas direto!?. E o tio: sindicato é uma merda num faz nada. Outro tio,
parceiro meu de crivo, foi despedido do prédio da quebrada, já que era muito
extrovertido. Daí o tio dessa madruga, depois que o mano dele foi ferrado pela
minha gente (os de bunda branca, meus vizinhos), depois disso ficou mais
fechado com medo de perder o emprego. E nessa madruga, falou mal do cara que
saiu, mas como forma de defender o emprego, mais, defender os caras que
colocaram ele pra rua: os moradores, gente da classe média, uns vovôs com sua
vovós, uns caras mais velhos descasados,
alguns casais jovens, umas gatinhas pós faculdade, e eu junto. Daí fiquei puto, pensei, na real, nem pensei,
tava puto, mas é, dei uma pensada, uma parada, uma tragada, uma respirada, e
disse pro tio: pô, sempre tem essa de uns caras mandar na gente, pai manda em
filho, professor em aluno, patrão em empregado. Os mais ricos nos mais pobres.
E o tio abriu um sorriso, bem verdadeiro, de quem tava entendendo. Daí
continuei, e o lance dos ricos e dos pobres, dos que mandam. O cara que manda
no guardador de carro, no office boy, que trata os funcionários de serviço como
alguém que deve “o respeitar”, esse cara também é mandado. Pelo chefe, pelos
mais ricos; sempre tem uns mais ricos que os outros, sempre tem alguém acima.
Daí falei pro tio, é uma merda, e os caras não fazem nada contra isso. E mais,
não fazem porque se a coisa fica nessa, daí o cara pode continuar mandando; tá
ligado? Daí o cara vende a alma pra ser mandado pra poder continuar mandando.
Daí o tio falou: é uma merda mesmo; começou falar mal dos políticos, tentando
achar a chave do problema, e talvez tentando desfocar do lance de patrão e
empregado, pra não ficar ruim pra ele. Talvez pra poder dizer pro cara da
mercearia lá do fim da zona sul: eu pago as minhas contas, olha só o Zé, o cara
só bebe e bate na esposa, vagabundo de merda. Só que o tio entendeu um lance
que demorei muito tempo pra entender. Gostou do que eu falei. E acho que ele
sacou, ele tá puto com tudo isso. Mesmo que não esteja claro pra ele. E como esse desejo de mudança que parece que
tio tem e que todos que tão fodidos também têm; como isso pode ser motor de
luta?
Satanismo materialista
1. Tava
na internet, no dia primeiro de maio – 1 do 5. Tava fazendo pesquisa na rede
porque é o dia que marca as lutas contra o sistema sempre. Daí me liguei que a
parte boa da minha pesquisa de mestrado era sobre um acontecimento no dia 15 de
2009. Acontecimento importante, um dos últimos mais expressivos do Movimento
por Outra Globalização: a COP-15. Daí, me liguei em outro 15, do 15M, movimento
espanhol mais importante de luta no ocidente que tô pesquisando no doutorado. Daí
tava saindo de casa e junto da porta na prateleira tava o único livro que tenho
sobre o maio de 68. Numa nóia meio neurótica contei os números: maio, 5, de
1968: 5 e 15. Apareceu de novo o número 15. Coloquei é claro no Google, número
15, depois numerologia. E achei um lance
legal. A carta do Tarot de Marselha de número15 é a carta do demônio, a única
do tipo, o resto tudo meio new age. Uma carta muito interessante, a
representação dele é bem legal. Uma figura com órgãos sexuais misturados, num
altar, abaixo um homem e uma mulher acorrentados e as correntes levam às mãos
do demo. Já havia notado nos dois livros mais importantes da minha pesquisa, passagens
sobre o demoníaco: os Mil Platôs do Deleuze e o Multidão do Antonio Negri. Nos
dois livros, eles falam em demônios que são legiões de demônios. Negri diz
mais, que os movimentos que lutam contra o sistema formam uma legião demoníaca.
Por isso, os anonymous, um dos grupos mais importante de ativismo na rede, sempre
terminam os seus comunicados dizendo: SOMOS LEGIÃO. Também Negri e Deleuze citam o vampiro, figura
demoníaca que tem poderes que afetam os códigos de reprodução dominantes; ele
se reproduz por contágio. E Negri diz que algo parecido acontece no mundo pós-moderno,
no qual a família vai perdendo espaço pra associações diferentes e mais
potentes. Claro que Negri e Deleuze não estão falando do deus do inferno, aquele
que tem poderes sobre os caídos. Alguém que como um ditador comanda outros. Eles falam num satanismo materialista. Nas palavras
dos indignados de todo o mundo é ouvido: viva o poder desde baixo. Isso é
legal, porque os movimentos lutam contra o que vem de cima, o poder. Deus era o
poder que vinha de cima contra o poder de baixo do demônio. Os movimentos são os
novos anticristos. Quanto aos números, bem isso não me interessa, porque
fatalismo de qualquer tipo é um saco. E mais, o lance de pacto com o demônio tá
sempre relacionado com um sujeito, que vende a alma por alguma coisa, poder,
putaria, drogas, e tudo mais. 2.
Interessante que a figura do demônio é marcante na cultura de massas. Na cultura
pop o demoníaco aparece de forma mais direta com a banda de heavy metal, Black
Sabbath. Banda que misturou o blues (o mais famoso blues man Bob Johnson era,
segundo a lenda, satanista) e o som do Led Zeppelin (dizem que os filhos do
vocalista da banda morreram pela ligação do pessoal da banda com o demoníaco).
Só que o Sabbath em suas letras falava abertamente de satanismo. Os negros (o blues
é negro) sempre foram vistos como ameaça biológica e depois cultural, os
demônios contra os valores brancos dos racistas da américa.Também o filme sobre
as manifestações do maio de 68 do Godard tem o nome duma música dos Stones:
Simpatia pelo demônio. E um filme que ele lançou em 1965 tem o nome de “o
demônio das onze horas”: vamos contar os números: 5 mais 1 – 6, mais 6, e o 9 invertido dá 6, ou seja: 666, o número do
demo. Tinha sobrado o 5 do mês de maio do maio de 68: é o número de Baphomet, o
diabo que aparece junto ao pentagrama, e o 5 está no 15. Não parei pra ficar
contando números, mas quando tiver tempo vou fazer isso. Segundo os filmes do Michael
Moore sobre a caretice americana, Marylin Manson era o monstro da América nos
90: um cara que mistura som pesado e eletrônico, mas que encarna uma figura
monstruosa, andrógina, suprassexual. Como a imagem do demônio na carta do
tarot. Na época que fazia muito sucesso,
o cara era acusado pela direita de corromper a juventude: um monstro.
A
tradição romântica da arte
As experimentações de Willian Burroughs –
o escritor mais radical da geração Beat – eram com as drogas. Droga como
possibilidade de fuga do pensamento tradicional, do corpo normalizado, dos
afetos dominantes. Não só droga, como os outros Beats, junto disso a estrada. Estrada e droga, só que isso não garante muita
coisa. Tipo viagens turísticas que só o corpo se desloca, a mente continua a
mesma. A droga como imbecilização, como dizia o velho punk: o que aprendemos
com Sid Vicious[1]
é que ninguém precisa de talento pra se drogar. Só que a droga e a estrada dos beats, com toda
a sua dor e alegria, com todas as merdas... Bem, sobre isso, a gente pode falar
em transcendência. Outro elemento que vem junto da droga e da estrada na
tradição marginal da arte, é a pobreza: Artaud, Rimbaud, Wilde, Baudelaire, De
Quincey. A crítica literária fala sempre do desregramento dos sentidos, mas
isso e a vagabundagem da estrada estão ligados a uma pobreza espontânea.
Pobreza que na real é autonomia e não a prisão da falta. O drogado que desiste
de tudo, até dos bens, pela droga. Largar tudo e cair na estrada. E a pobreza
produz riqueza, se sairmos do senso comum: privação, dor, fome, tudo isso fez
parte do caminho seguido por esses caras e outros. Tipo Bukowski, um beat
solitário. O cara era meio reacionário de direita; só que na real, ele tinha um
inconformismo com a geração do paz e amor. Importante que ele segue essa tradição:
pagar por algumas noites por um barraco de papelão em alguma cidade qualquer
dos EUA, bêbado e com fome, e buscar um pouco de luz pra escrever alguma coisa.
Ou seu mentor, Fante, que se alimentava apenas de frutas colhidas, não
trabalhar (vagabundear) pra ter tempo de escrever. Burroughs no Tanger, em seu
estado terminal da heroína, esperando que alguém morra em sua frente pra roubar
sua carteira e ter grana pra se drogar; e tempos depois descobrir rascunhos
dessa época que nem se lembrava de ter escrito. Só que tudo isso ainda preso no
sujeito, o gênio moderno, criador. Mas o próximo passo é quando os beats se
tornam referência de massa, com a contracultura. Daí, droga, estrada, pobreza
espontânea viram uma possibilidade pra mais gente, pela difusão do estilo de
vida. Hoje a gente vê algo parecido nos movimentos de okupação de praças. Algo
que deve ser pensado.
Prostituição
Sobre a prostituição, seria legal pensar nela
como potência, não como impotência, vergonha. Impotência é mais que real:
exclusão, marginalidade criadas pelas significações dominantes. Ou mesmo,
prostituição como fantasma: as minas que se sentem putas quando transam. E daí
elas misturam vergonha, desejo escondido, tudo negativo. Ou mesmo, o cara que
trata a mina como se fosse uma. Quanto à potência, ela não é a imitação da
prostituição: a mina que dá pro cara já que ele lhe deu um presente caro. Mesmo
o cara que se sente prostituído no trabalho. Seria um mundo melhor se a prostituição
fosse mais uma das cores da vida, e se faltasse essa cor no mundo, no caso,
esse mundo melhor, ele seria menos vivo. Se fosse assim.
Os
pais, os professores, os alunos e os filhos
Sempre ouço as pessoas falarem com
orgulho: sou o que sou pela educação que meus pais ou avós me deram. Lembro de
pais de amigos que impunham algo como fibra moral: não faça festa, estude. Anos
depois o filho que sofria e muito com a disciplina paterna, dizia: meu pai me
ensinou a ser o homem que eu sou. Se não fosse ele, eu teria continuado a usar
drogas, eu não teria ido na escola, etc. Na graduação, notei que os professores mais
chatos eram aqueles mais queridos. Os mais duros, os que forçavam a estudar.
Lembro de dois paraninfos, que obrigavam os alunos a estudar. O desejo da
dureza, da disciplina. Provavelmente, os alunos agora dizem: se não fosse o
professor tal eu não seria quem eu sou hoje. E esse mesmo cara, após o final de
semana chega no trabalho se sentindo um merda, já que tomou todas, se drogou.
Se sente envergonhado, quando lembram ele da sua adolescência. É meu, você
usava todas, e agora taí dando uma de pai, de trabalhador. O lado vergonhoso
que tentam deixar de lado. Acho que a disciplina só acaba quando acaba seu
território ou sua ressonância na vida. Garotas dizem depois que vocês as
chifra: vou ensinar a você; uma expressão que circula em tudo. Acho que
família, ser pai, ter filho, mesmo com toda a flexibilização, se é obrigado a
ser o disciplinador, o cara que vigia e pune. Acho que no máximo dá pra fazer uma revisão,
uma reforma, mas o que não é muito. É isso: na rua você se fode, em casa você
se tornará o bom cidadão. E todos querem ser bons, bons cidadãos, trabalhar,
pra ter dinheiro. Legal as imagens do The Wall, na parte dois da música. O
professor tendo pesadelos com as punições impostas aos alunos. Deve ser foda saber que você vai ter que
acabar com a raça de uma pessoa, ainda mais de alguém que ama, seu filho.
Palavra interessante: vagabundo. Aquele vagabundo que só bebe; aquela vagabunda
que dá para todo mundo. Papai não deixa o filho se drogar pra ele não virar um
vagabundo. O professor fecha o aluno na sala, não deixa sair pra não virar um
vagabundo. Pense e aja de tal forma. E
daí a gente pensa que tá criando uma fuga a partir do campo do saber, pensar
melhor o mundo, mas fecham a gente em mais regras. O ensaio é uma escrita
vagabunda. O jornalismo é interessante porque qualquer um entende. Notícia
ninguém tem prazer com a forma, mas qualquer um pode ler. Crônica algo que dá
prazer. Livro de jornalistas: eles sabem muito bem escrever pra todos. 99% de
lixo. Mas pro homem comum, o trabalho acadêmico é 100% de lixo. Quem tá certo?
Você deve trilhar esse caminho pra chegar no texto correto. No ensaio: você tem
muito caminhos para trilhar, mais fácil de errar. Faça o certo. Mas Cazuza
talvez estivesse certo: erra comigo. Os
manos tão sempre certos: não me enquadra mano, me erra. O corredor é uma
bagunça, mas ali também você não pode fumar um.
Mas sempre há os lugares especiais que você pode. Procurar um lugar
especial no ensaio. Não para ser mais um na massa. Massa de ensaios, qualquer
coisa, todos. Todo mundo enlouquece um pouco. Mas você não fuma um beque na mesa
ao lado da vovó. Você não escreve um título de artigo do tipo: pau no cú do
método. Aja como eu quero que você aja. Papai e professor. Todos conhecem a
fundo as disciplinas, dentro de si. A maioria aceita. Eu não quero ser pai, mas
quero ser professor. E a questão não é de
autoconhecimento, o poder em mim, mas de pensar o mundo. Estamos no mundo. Mas
então há esse mundo, duro, o bom mundo, de papai, dos professores, do trabalho;
e a fuga desse mundo, as drogas, as putas, etc, o que a gente vive como vergonha.
Se drogar não garante nada. Mamãe, a esposa, vovó, a irmã, a sogra, a cunhada,
todas tomam valium e são as mais caretas de todas. Os pais bebem. Um
adolescente com um beque na mão não tem nada na cabeça. Talvez venha a ter. Estava
na aula de artes marciais. Lugar bem
interessante, o professor é um PM, e todos os alunos são PMS. Daí aparece um
gordinho, 13 anos. Cheguei nele: porque você tá aqui? Ele: quero aprender a
lutar e emagrecer. Falei: meu, compra um skate, uma bike, ou um roller, e vai
todas as tardes numa pista. Rápido você vai fazer uma turma. Eles vão oferecer
cigarros pra você e drogas; vão levar você pras festas; você vai começar a
emagrecer, e as garotas vão começar a notar você; não só porque você vai
emagrecer, mas porque você vai virar um cara legal. Não ouça sua mãe nem seu pai. Aprenda a
mentir.Você deveria ter aprendido isso sozinho, mas como até agora não, eu
passo só umas dicas. Qual é? Você aceita ser aluno de um pai ou de um
professor? Aceita ser aluno? Faz a sua, mano. Faz a sua. Não encontrou até
agora o caminho, problema é seu. Se fecha na estrutura. Política só nas ruas,
ou a burocracia. Academia não é a rua. Aqui é o lugar. Torre de marfim, meu
bem. Mas como assim, sempre foi assim, é assim em tudo, você quer acabar com
nosso mundo? Eu só conheço esse mundo, amo meu pai e minha mãe, quero ser um
pai e uma mãe, quero trabalhar, ser um bom cidadão. Isso é coisa de revolucionário
de merda! Revolução é quando tudo vai abaixo, os de cima vão pra baixo,
carnaval e putaria. As vadias sacaram bem: putaria política, putaria como
potência, não como segredo ou sujeira. Diferente quando a esposa e mãe diz pro
marido, o qual ela chama de pai: me chama de puta. Só ele pode chamar ela de
puta e ninguém pode saber. Depois olha pro filho e se envergonha. Não é
qualquer coisa meu, quando a gente pensa que tá criando, a gente pode estar no
erro; mas vamos errar um pouco, uma hora a gente acerta. Me erra meu; qual é?
Adolescentes
riquinhos
Uns caras da classe média, filinhos da
mamãe, que vão ser os pais da classe média do futuro. Mas eles não são a versão
mais jovem de papi e mami. Eles tão na rua de madrugada num bus passando uma
vila, cheio de maloqueiro no bus. Eles tão bebendo vodka de garrafa de plástico
e tão fazendo amizade com os blacks. Eles tão de manhã cedo acordando no meio
da rua com um monte de gente ao redor na mesma. Vômito no chão e tudo mais.
Eles tão subindo o morro de madrugada, e são amigos dos trafi. Eles frequentam
a casa do traficante, um cara fodido, com aids, a mulher também, e os filhos do
trafi tudo magros e fodidos. Se bate fome e tão sem grana comem até do lixo.
Eles transam no mato. Eles fodem em banheiros sujos. Mas meu, eles não tão
imitando o bebê que faz caquinha nas calças ou vomita a papinha no peito,
meu... eles tão fugindo exatamente disso, ou de repente, tão tornando a
impotência da criança na potência. Claro que eles sempre voltam pra casa, com a
caminha com edredom. Podem pegar o carro de papai quando fazem 18. Vão pra
praia nas férias. Vão pra Disney. Mas entre 13 e 17 anos meu, na noite são como
mendigos. Mesadinha acaba na hora com umas pedras de fumo, e o resto do
mês... fazer o que? Os garotos sempre pensam, de repente fazer um
michê pra conseguir grana. Se for com uma mulher nem precisa pensar. Fazem uns
lances de pobre, drogado, viado, puto, maloqueiro, e tudo mais. Experimentação,
de tudo que papai e mamãe odeiam. E daí classificam, e dizem: isso passa. E é pra
passar, não pode continuar, e os jovens vão envelhecendo: aparece carro,
viajem, o trabalho, dinheiro. O cara
comia comida do lixo, em meia hora chega o sushi. Ontem tava bebendo vinho de
três real, hoje é whisky escocês e red bull. A cola de sapateiro virou 50
gramas de coca, comprada por um amigo já que não sobe mais o morro e nem mais
trafica. Transa de pé, mas no banheiro com água quente do ap, não no banheiro de um bar com um mina pra
lá de louca. Catava bituca no chão, juntava e com uma seda fazia um crivo; hoje
tá lá o estoque de crivo pro mês todo guardado. A gente pode e é foda, a
pobreza que se foda. Não quero nem me lembrar, diz mamãe quando pensa no filho
que fumava crack. E o filho diz o mesmo. E mamãe fica braba porque filinho tá
corneando a nora, e lembra ele: você era um viciado. E ele se sente mal. Ela
transava com todos os caras e depois chorava de culpa. Tava aprendendo a
crescer. E daí o esposo joga com ela:
você era uma puta. E come ela por trás com dor. A mina filhinha da mamãe, o
bibelô da casa: transou com o namorado viciado em todos os lugares, o cara
comia ela em qualquer lugar, banheiros públicos, praças, e ela gostava. A mina
era quente demais na cama. Mas sem sujeiras. Era uma puta mulher. Era assim
quando tava com o namorado doidão. Mas em casa vestia pijaminha rosa. Comprava
artesanatos, brinquedinhos e talz...
Mamãe dava suquinho de maça antes de dormir. A princesinha da casa. Hoje
ela tá velha, nem se lembra da juventude. Nem se lembra, mas a juventude tá
presente, toda a noite quando toma remédio pra dormir. E ela fecha os olhos e
tem pesadelos. Oh, o que foi que eu fiz, eu era uma vadia. Vadia a mãe que
fechava a mina em casa; batia nela quando ficava um mês fora de casa na rua
sendo um outro tipo de vadia. A das nossas, mano. Daquelas minas do rock que a
gente admira. Mina que só os manés falam mal. E ela fecha os olhos quando o
marido a come, e experimenta algo relacionado ao passado, mas depois se olha no
espelho e diz com culpa: eu sou uma vadia. Deixam de lado a experimentação,
põem no lixo. Isso já passou. Era adolescência. Hoje você é homem e tem que
impedir a experimentação, principalmente pro seu filho. Odeie a pobreza, a
vagabundagem, e tudo mais. Você parece um negro, tá agindo feito bixa. Acabe
com o minoritário em você. Não experimente. E a questão não é de fuga
momentânea da caretice, mas uma questão existencial. Ele velho, com seus
quarenta anos, um tio bem sucedido, pai de família; ele experimenta um lance
meio homossexual quando caminha, e gosta disso; não é muito, mas é um pouco;
depois o filho vai dizer “eu sou bicha” e ele vai dizer: curta a vida meu
filho. As minorias vão pra rua, dizendo: não nos incomodem; e ele vai dizer:
meu coração está com vocês. Não sou pai de vocês, sou uma bichona, mesmo sem
dar o cú. A mulher vai chorar enquanto ele a penetra, e ele vai dizer: não
chore, você não precisa ter vergonha de ser mulher, quando eu penetro a sua, na
verdade é você que está me penetrando; aí o território dos dois aumenta, podem
mais. Eu sou sua mulher, enquanto eu penetro a sua, seja meu homem, não aquele
que tem poder sobre mim, mas aquele que está do meu lado. Seja puta com
alegria. Somos todos veados. Somos brasileiros e favelados. Viva a pobreza. A
gente se fode, mas é divertido. Uma grande putaria. Carnaval. Isso que se
impede, a alegria contra uma suposta seriedade. Sou um homem sério, sou uma
mulher séria. Mas aqui ninguém tá brincando, não é qualquer coisa, já havia
dito: experimentação do texto acadêmico. Torcer o pensamento, cavar até lá
embaixo, no lugar que tá o demo. Traçar caminhos. Uma hora a gente acerta. Me
erra!
Texto
indignado contra os caras do consenso [2]
Eu tô falando exatamente com você e você
sabe muito bem disso. E quando você lê isso, dói as suas... costas, já que eu
meto bem onde você quer levar, essa é a real. E eu gosto disso, sou às vezes
como você, um filho da puta... mas o lance é você, quem está em jogo... você
foi filho da puta por muito tempo. Você deve. Você sustenta essa merda e diz
que não. Você diz que é cool, que luta contra a merda. Só que na real, isso é a
sua forma de manter as coisas como elas estão. Só que a gente tá de olho em
você e você sabe disso. Sua política mantém essa merda mesmo que você diga que
lute contra ela. Sua saída é se tornar puta ou puta. A puta que nos fode ou a
puta que é puta como a gente. Nós as putas com alegria. E você sabe o que isso significa quando você é
inteligente, quando é dos nossos. E aí, mané, vai encarar? Já sabe com que tá
lidando. SOMOS LEGIÃO. E a gente vai lutar até acabar com você; a gente quer
derrubar tudo que você construiu. E você está em tudo, ou tudo está em você. E
como é que é? Você acha que eu vou deixar tudo de lado e que vou escrever uma
tese exatamente sobre você, toda branca e limpinha, cheia de palavras retinhas,
tudo muito viado? Acha que vou dar a real sobre você sem ao menos dizer: eu vou
pegar você e vou quebrar você e acabar com você? Acha que vou quebrar sua cara
apenas com um texto insípido, como se fosse uma carta branca de paz? Cuspir na
sua cara é pouco, e uma tese não faria mais que isso. E todos sabem que você é
o problema, que você reforça o problema. E arma branca é pouco. Um tiro é
pouco. Eu quero acabar com você e isso vai doer e muito, da forma que você tem
mais medo. Vamos acabar com seu mundo. E não com palavras apenas. Eu não deixo
minha paixão de lado. Eu quero vida e sangue. Se eu gosto do gozo quando eu
trepo, eu quero trepar loucamente e estou fazendo isso agora, trepando com sua
vida, fodendo com sua vida. Não basta falar sobre a loucura, estou fazendo a
loucura, experimentando... com você agora. Você está faz tempo sentando e calmo
na sua vidinha, e a calmaria acabou: CHEGOU A HORA. “Controle-se”, você diz o
tempo todo, e isso está dentro de nós, mas agora... é o reverso. Vamos acabar com o controle,
vamos enlouquecer; aprendemos isso na juventude e agora é guerra. “Controle o
que você fala e o que você faz. Sente-se como se fosse um âncora de TV. Não
fale merda. Escreva de forma insípida. Faça o certo. Enlouqueça longe. Faça o
que você quiser longe; não chegue bêbado, ou se chegar: imite alguém sóbrio. Faça
as coisas certas. Ou finja que está fazendo arte.” Que você é um cara legal,
que curte arte, já que arte é coisa de gente legal, livre. Você entende o
significado de indignado. Não é?
Prazer
e dor novamente
Li o relato de um cara que estava se
desintoxicando. Tinha passado seis anos usando todo tipo de drogas. Gostava
muito de qualquer coisa. Tinha uma queda especial por cocaína, mas usava de
tudo: bebidas, maconha, remédios. Gostava muito de remédios que derrubassem.
Qualquer porcaria. Fazia um uso excessivo das medicações que receitaram pra ele
superar o vício. Chegou uma hora, a vida se tornou uma merda. Não produzia nada,
só se drogava. Falou com um amigo uma vez de forma bem sincera: prefiro morrer
a parar com os baratos. Só que uma hora, parou com as drogas, usava os
medicamentos direito, fez tratamento em clínica. Outra coisa: exigiram, família
e médicos, pra que ele cortasse os elos com os amigos; que parasse até com
álcool. Daí ficou um ano trancado em casa. Conheci caras que passaram por isso
ainda bem jovens, com 15 anos. Exigência de corte dos amigos drogados e de todo
tipo de droga. Álcool era situação de risco. O cara podia beber e daí perder as
rédeas e acabar se detonando. Meio foda fazer uma exigência de corte radical na
adolescência. Dos amigos nem tanto, pois sempre pintam novos; o problema é achar
quem não se droga. E o cara também já meio que formou um estilo de vida, que é
a única coisa que tem na adolescência, e perder isso é difícil. Radical também
o corte total de drogas. O cara tem quinze, vai ficar na universidade até os
25, entre isso, tem os 18 os 21 os 23. Fases propícias ao uso. Não sei se funciona,
mas pras pessoas que conheci não funcionou. Outra coisa que é ilusão é cortar
dinheiro. Muitos que conheci inventaram forma de conseguir grana, mesmo lícitas,
o que não envolvia trabalho, mas mentira. Mentira pros pais, parentes, amigos
dos pais. Interessante como são inventivos, em suas mentiras. Mas fazer o que? Permitir? Conheço pessoas que
sempre tiveram liberdade, sem repressão, de uso, mas que não abusaram. Bem, mas
o relato. O cara tava trancado em casa há tempos, e sem droga. Começou a ler
bula dos remédios que tinha em mãos. Achou um remédio que lembrava algo que
podia chapar. Tomou dez comprimidos. Ele conta que foi a pior experiência da
vida dele, pior que bad trip. Nada de barato na cabeça, só dor em todo corpo.
Formigamento, febre, câimbras horríveis. Isso foi o mais foda: câimbras em todo
o corpo, que quase o levaram a loucura. Mas em horas passou; ele não contou pra
ninguém. Dias depois, ele não pensou muito e tomou de novo, e mesma coisa. Fez
o mesmo uso durante um tempo, tipo duas vezes semana, e sempre a mesma coisa
horrível. Ele não pensava em coisas do tipo: o que estou fazendo? Só usava. Ele
relacionou diretamente a sensação com o corte de heroína. Tinha lido relatos
sobre a falta de heroína, e pra ele, na imaginação, era a pior coisa que um
cara poderia passar. E pra ele, isso era próximo do que passava quando tomava
as bolas. Bem, o que pensar sobre isso:
tava se punindo? Queria sofrer? Ou de repente era o mais próximo que podia
chegar da droga, uma droga pesada? Não tava experimentando um lance que dizia respeito
à droga? Ou de repente, queria sentir algo forte, muito forte, como uma droga,
e foi o que achou? Lembro de uma imagem de um filme. O cara tá tendo abstinência,
tá enlouquecido. Os amigos cortam o braço dele bem onde se pica, e ele fica um
pouco aliviado. De repente, ativar pela dor, pela enfermidade o barato da droga,
como possibilidade de alívio.
Casca
dura
O cara acima criou uma casca dura quanto a
esse tipo de coisa de dor. O que um drogado pode suportar? Se parou, não pode e
não quer enfrentar o uso, muito menos a falta, muito menos entrar de novo num
território que ele tem um apego forte. Coisas ficam. De repente, uma relação
legal com minorias, com a arte. De repente o rock, por sua relação com a droga.
Pedaços da vida que podem se manter e que não dizem respeito à falta. Alegria a
partir do trajeto de vida. Coisas devem ficar. Os médicos dizem: não assista
nem filmes com personagens que se drogam, se você está em tratamento. Sai
dessa, vai fazer outras coisas. Mas em alguns, bem algumas coisas ficam, e tudo
bem. Mas sobre a casca. O cara pode ficar extremante neurótico com certas
coisas que lembrem o uso. De repente, um sentimento bate, forte e ele pensa:
será que vou recair? Mas ele aguenta, e de repente aguenta muita coisa, porque
já passou pela ruim. Aguenta até as neuroses. Os caras em campos de concentração
não se mataram. A vida pode ser horrível, mas se aguenta. Um cara teve um flash
back ou uma bad trip. Foi horrível, a vida dele era fantasia de terror. E ele
disse: mas só isso, vamos pra festa.
Bad
trip
Um amigo teve experiências com drogas
psicodélicas e sempre bad trip, das piores. Era sempre horrível, mas ele
continuava usando, mesmo assim. Valia o barato. Ele também disse que nunca
tinha sonhos legais: não são pesadelos, não são bons, mas são ruins tipo uma
bad trip. Mas eu gosto. Também em um curto período de tempo, ele começou a ter
ataques de pânico de noite. Acordava sobressaltado, com o coração parecendo que
ia estourar. Mas disse: “até que é bom. Parece um tipo de orgasmo no peito.”
Sempre teve medo de morrer asfixiado. Mas começou a gostar da asfixia. Preferia
não ter mais, tratou em terapia, mas pensava: bem, morrer asfixiado não deve
ser tão ruim. De repente, ficou viciado em sentimentos fortes. Ou só encarava
na boa. Ou mais, prazer e dor não faziam muito sentido. Ainda mais pra alguém
com uma percepção já alterada pelo uso e acostumado com sensações bem
diferentes do normal. O lance da
psicodelia. Nunca tomei heroína, pelo que leio é um lance forte pra
caralho. Mas parece que o cara consegue tomar heroína e, pelos menos, entrar na
fila de um banco. Mas o cara louco de ácido, dificilmente vai segurar a onda.
Um bom ácido é claro. O cara pode cheirar pó e vai pra aula, pro trabalho, fala
com papai e mamãe. Poucos notam. E por isso pó é um lance que sempre tá ligado
com vida profissional. Os yuppies dos anos 80; gente jovem, cheiradores que se
tornaram grandes empresários, movidos ao pó. Mas e o cara da psicodelia? Nem
todos viram Syd Barret[3]; o cara que se fodeu. Mas
poucos se tornam Hunter Thompsom[4]. Um cara que usava todas e
tinha uma bela vida profissional. Emoções
fortes todos têm. Paixão já foi
motor de belos livros. Tudo lindo, maravilhoso. Só que o sentimento forte traz
outros. Paranoia: “ela tá me traindo”. Medo: “vou perder ela”. “Será que estou
louco”. “Eu não era assim”. Uma percepção fina: se sentir bem com pequenas
coisas. Uma frase dele; um toque dela. Um amigo disse: pô eu e a gata, a gente
transa direto de qualquer forma; mas ontem a gente ficou na cama os dois
pelados, e nem transou. A gente ficou se beijando, e cara, num era nem beijo.
Eu lambia os lábios dela e ela os meus. A gente ficou nessa a tarde toda. Meu
pau nem subiu, se subiu não notei. Estranho, né? Entra também um lance de
solidão. Eu e o sentimento, eu e ela. Só nós dois. Um cara me disse: “olha que
lance mais doido, ultimamente antes de gozar gosto de dizer pra ela que quero casar
e ter filho com ela. Sei lá, parece a coisa mais forte que posso pensar. É tipo
acabar com minha vida por ela”. E as pessoas ainda fazem isso. Volta e meia,
doidões estão se casando e tendo filhos. Um certo decreto de morte da
juventude. Não da juventude, mas de algo que se percebe nela: a experimentação.
Escrita
maluquete
Só que mano, tô meio maluquete. Acordei
assim semana passada, e depois não dormi mais. Tô meio maluquete, cabeça
queimando. Parece que os neurônios tão se indo. Parece não, os neurônios tão na
neura. E putz, véio, num tomei nada. Tipo Roger Waters 20 anos depois da fase
do doce: “um flash back me pegou, pensei que ia ficar que nem o Syd”. Tô mais
pra Waters, mas estar em Waters é ter medo do Syd, nosso Syd. Syd em mim. Mora
um Syd no coração de todo cidadão. Véio, figura, mano. Loucura veio pra ficar,
e se ficar meu... Já tô numas, eu pirado, saindo pra rua e mandando: mano,
trafi, tem uma nóia pra me passar? Trafi, tem um deliriosinho só pra mim, do
bom pra vender? Mano, trafi, tô a fim de qualquer coisa, pode ser uns tocs, ou
até um déficit de atenção. Pode ser até deprê da boa. Me vende aí uma bipolaridade.
Porque se passo o meu lance pros cara da
saúde, os cara me trancam, daí vou pro xilindró. E daí o lance é fugir, meu.
Sair correndo. E não só nóia, meu, qualquer coisa viagem. Me vende aí uma viragem de 180 graus do
cabeção. Pode ser uma viadagem. Tipo umas horas de lésbica. Me vende aí uma cor
pretinha, pra eu ficar neguinho. Pode ser uma dose de cigano. Qualquer
barato. Me vende umas horas de sapo.
Virar um sapinho e curtir um lance úmido. Meu, tem um lance pra vender tipo
norte africano na Europa? Tipo, cubano nos anos 80 na Flórida? Meu, preciso de
qualquer coisa. Cansei de correr. Tô dando volta e tô tonto. O mundo tá muito
circular, sei lá. Me passa ai um câncer, me passa um avc, qualquer barato meu.
Pode ser um hiv. Pode ser uma dose de qualquer coisa de duas horas, meu. Qual é.
Vai deixar o mano na seca? Só não me passa barato ruim: tipo ladrão na cadeia;
tipo viciado em clínica; tipo doente em hospital; tipo louco no manicômio. Meu,
não quero ar livre, me vende uma poluição. Meu, me trafica um ataque nuclear.
Meu, me dá uma radiação, qualquer merda. Meu, me passa aí uma febre religiosa,
tipo: amo deus. Meu, me passa um lance meio vadia, transando em banheiro em fim
de festa. Me passa aí um barato tipo briga de faca na rua. Meu, me dá uma noite
inteira por duas horas, cara. Pode ser também comida transgênica. Rango de super,
sucrilhos, doritos. Uma ceva brasileira. Um vinho da colônia. Um mcdonalds. Meu,
qualquer coisa. Pode ser até notícia ruim. Meu, me manda uma notícia horrível,
tipo: depois de dez anos de revolução nada mudou. Meu, tá vendo que tô sendo
flexível. Topo todas; qual é? E aí? Só não me coloca numa fila. E se for engarrafamento,
só devido a acidente com mortes. Me dá uma morte aí, meu. Uma morte eterna, no
fogo do inferno por duas horas, meu. Muito a fim. Mina feia. Puta com dst. Qualquer
coisa. Me dá umas veias cheia de coágulo, abscesso. Conhaque francês falsificado
do paragua. Me dá uma traição. Me dá uma chifrada da boa. Mas tem que ser junto
ao mar. Meu, me dá uma frase: seu cachorro. Pode ser criança chorando; o choro
de um monte de crianças. Depois eu pago. Passa agora. Senão, vou cair numas. E
pra prisão num volto.
Pedofilia
moral
Eu tava dirigindo em Porto Alegre, domingo
de tarde. Lance legal. Nos dias de semana é um saco, mas no fim de semana, é
tipo... 80 por hora na boa. Daí, legal dar uma banda e ouvir um som. Eu tava
ouvindo um Joy Division. Meio que dançando com os olhos e tal. Tentando não
chamar a atenção do tipo: “oh mãe, tem um loki dançando sozinho no carro”. Daí
tava numa avenida, na zona sul, descendo ela. De repente, o trânsito fica mais
lento, a rua fica flat, um semáforo fechado. Daí vi de longe, ela: uma gatinha.
Ela tava entregando panfleto. Ruiva de pele branca. E eu: uau; é o que eu gosto.
O cabelo não era natural, mas branca e ruiva, um ruivo quase natural. E ela
começou a ir na minha direção, entregando panfleto. Chegou perto o suficiente
pra eu ver que tinha olhos claros, verdes. Depois chegou perto o suficiente pra
eu sacar que eram de verdade, não era lente. Pensei: tudo de bom, branca, ruiva,
de olhos verdes. Tava maravilhado com isso. Já tinha dado uma idade, mais de
18. Só que daí comecei a reparar no resto. Peitinhos pequenos: ok, ela tem 18.
Putz, ela não tem coxas: deve ter 17. Vi bem o rosto dela: putz, 16? Ela lançou
um sorriso do nada, não para mim, nem pra nenhum motorista, sorriso de quem
tinha 15. Eu: merda, tava ligado numa gatinha de 15. Fiquei numas: será que vou
ser preso, por isso? Já tava pensando
algo do tipo: gatinha entra aqui no carro. Vem meu bem. Vou levar você pra casa,
vou cuidar de você até terça-feira. Merda. Parte
2. Lembrei dum mano meu. O cara tinha 15 anos e gostava de garotos de 12 e
13, normal. Daí ele fez 18 e continuou na mesma, normal. Só que daí ele fez 25,
na mesma, meio normal. Agora tá com 30 e tá na mesma. Falei prum amigo mais
velho e ele disse: manda o cara pegar uns de 18, ele pode se dar mal. Essa
merda não é ilegal; só que moralmente, como fica? Eu tinha 25 e tava descendo
uma rua aqui de Porto Alegre, a Independência. Vi uma mina com uma criança pequena.
A mina era muito bonita: baixinha, mas morena, pele bem branca, magra e com
belos peitos. Comecei falar com ela. Ela bem legal e receptiva. A gente começou
a descer a rua juntos. Andamos bastante, até perto do colégio do Rosário. Daí
perguntei: bem, você tá indo pra qual lugar? Ela disse: só tava acompanhando
você. Pensei: uau. Peguei o telefone dela. A gente começou a se falar, e tal.
Ela começou a me encher o saco, mandando poesia. Mas tudo bem. Um dia a gente combinou
de se encontrar. A gente foi numa lancheria próxima dum parque, o Redenção, um
lugar meio de hippies. Dei uns beijos nela. E perguntei a idade. Ela disse: 15.
E eu: mas como assim? Pensei que você tivesse mais de 18. Porra mano, ela tinha
um corpão. Só que nem me liguei, não fiquei pensando. Como morava perto, na
Cidade Baixa, levei pra casa. Agarrei
ela. Tirei a roupa. Comecei a ficar meio que muito a fim. E ela disse: vou
embora. Assustei a gatinha. Ela tinha 15 mesmo. Depois disso a gente se falou,
mas eu não dei valor. Tava ficando com outras garotas e tal, e pensei: ela é
muito complicada. Só que hoje, bem, mano, eu não entraria no meu edifício com
uma gatinha de 15. Nem em motel; não daria uns beijos na rua, etc, mas o lance
é que... bem, falo aqui sobre os adolescentes, e sua experimentação. Acho que a
maioria toparia um lance com um cara mais velho. Mesmo que papai e mamãe, uma
certa moral, travem um lance desse tipo.
Emos
Não lembro exatamente quando virou moda
aqui em Porto Alegre. Mas comecei a conhecer cada vez mais garotos e garotas
que trocavam carícias em pessoas do mesmo sexo. Eles ficavam junto a um arco
que tem no Parque da Redenção, em Porto Alegre. Como eu morava perto, na Rua
Santana, sempre passava por ali e conversava com eles. Sou de uma geração
anterior. Todos meus amigos dos meus 12 aos 18, os caras eram grandes
fascistas. Odiavam gays. E eu também. Os caras usavam todas, mas sobre
homossexualidade, eram reaças. Eu sentia em alguns momentos, um lance meio gay
entre eles. Só que nunca fiquei sabendo de casos entre os caras. Quando me
desliguei deles, comecei a andar num ambiente de música eletrônica. E a coisa
mudou. Me vi falando e fazendo uma amizade efêmera com viados. Como boa vítima
da moda, ia direto no cabeleireiro. E o cara hoje é transexual, prostituta na
Europa. Me liguei um dia que tava caminhando com ele no centro, e pensei:
dane-se. Acho que o que ajudou foi minha bagagem literária. Sempre li muito
sobre rock desde muito novo. Voltando pra história dos Emos, via eles mais no
fim de tarde. Acho que eram os primeiros da cidade, nem havia virado moda.
Ainda era subcultura. A coisa rolava entre eles na boa. Se beijavam; mas não
sei se faziam sexo. Gostava deles, as garotas não eram frescas e eu me dava bem
sempre. Eles não se detonavam, não faziam muito. Mas se aparecesse alguém com
alguma ideia louca, eles topavam. Ainda era época que menores de idade podiam
frequentar casas noturnas e acho que podiam beber. Lembro de mim com 14 anos
num desses bares, tomando todas. Hoje a garotada no máximo falsifica a
identidade.
Morte
Tenho uns traços de hipocondria. Já foi
pior, mas ir no medico é horrível. Mesmo dentista. Fumo muito, daí medo de
câncer de boca. Tava com lances na visão. Medo de ficar cego. Etc. Mas tudo
muito efêmero. Só que o suficiente pra me deixar mal, por alguns momentos
durante um tempo. Num desses momentos, falei pro meu pai: cara, vamos comprar
uma arma? A gente deixa contigo; daí se alguém ficar doente, bem a gente tem a
arma. Falei também: não quero me atirar de um edifício, tenho medo de altura. Uma
boa piada de humor negro. Mas no fundo falei sério. Pular de um edifício é
foda. Um tiro me parece mais limpo. Deleuze fumou bastante, teve uma doença de
pulmão; quando não podia mais escrever, pulou da janela. Mas como eu fumo, é
algo que penso: um tiro limpo. E mais, se eu pudesse apertar um botão, e morrer
sem dor... não sei, eu pensaria agora se
deveria ou não, paralisar tudo. E interessante quando penso nisso, não penso em
fazer sofrer os outros, a minha família. Como também não estou me importando
com o sentimento deles. Teria que pensar qual território é mais rico, o da
morte ou o da vida. Pai diz: cara, com essa idade pensando nisso. Só que o papo
não é do tipo: “tudo é tão horrível, não quero viver”. Se matar no auge, ou
tendo um belo horizonte... Morrer com alegria. Uma experiência. O lance não é fugir
da morte pela morte. Não é por aí. Acho e espero. Mas uma pequena aventura.
Festa
Gosto de festa. Primeiro a música. Se
quisesse gatinhas mais velhas, iria pra outras bandas, não lugares do rock. Só que não ouço pagode. Até gosto de música
eletrônica, mas não me sinto bem em lugares gls, já que não tem mulher. Meio
chato entrar em banheiro com gays. Os caras são fortes. E não sei o que eles
fazem nos banheiros. Então, tem uns lugares que tocam certa música que me
agradam um pouco. Gosto de dançar, me sinto criativo. Legal experimentar a
dança de gente como Ian Curtis, Iggy Pop, e etc. Às vezes consigo me mexer
legal. Sentir a música. Mas não o lance de dar show. Então, som, dança, as
garotas. Se pinta uma garota, ok. Se
rola, sempre é bom. Mas só se a coisa for efêmera, não estou procurando o amor
de minha vida, ou algo um pouco mais sério. Já fiz muito isso. Ficar uma noite dando em
cima. Um bom método. Rendia um namoro de semanas pelo menos. Hoje sem
paciência, pelo menos na noite. Legal dançar, fazer umas merdas, enlouquecer um
pouco. Importante festa como ponto em
que nada se constrói. Passagem. Uma noite apenas. Lado bom da noite. Sempre me
pego conversando com pessoas diferentes. Parece que elas nunca são as mesmas.
Lugares escuros pra conversar, o do cigarro. Pista de dança também. Quanto mais
escuro melhor. Claro que o que faço de tarde é mais claro. Só que na noite,
vale a escuridão. Pelo menos gostaria de chegar anônimo e sair anônimo.
Impossível, só que dá pra chegar perto disso. Usei muito como metáfora pra algumas
namoradas: vamos construir uma casa. Construir uma vida. O inverso do que a
noite permite... se bem que em certos momentos, vale a pena construir pelo
menos uma barraquinha. Okupa as relações amorosas!
Carta
a um professor [5]
Bom dia, professor
Sempre bom falar com o senhor, pois
falamos a mesma língua. Assim sabe que de forma alguma critico seu método em
sala de aula, além do mais, sabemos que você é o professor mais qualificado da
pós. A crítica passa muito mais para o ambiente de sala de aula. Mesmo o
revisando, creio que não é muito. Podemos fazer uma relação com a política:
revisar a democracia, não é muito. Interessante o senhor usar a expressão solipiscismo,
pois minha crítica passa exatamente por aí: certo discurso acadêmico, que se
fecha em si mesmo. Aliás, as pesquisas
muitas vezes, em alguns casos, todas, trabalham com conceitos que impedem o
diálogo com outras. Ou o corte entre
discurso acadêmico e sociedade. Mundo acadêmico isolado. Se nós não nos
entendemos, a sociedade vai nos entender? Certo tipo de produção ensaística
também, concordando com você, não me parece a solução... Tento cada vez mais
pensar minha pesquisa como pertencente a certo pensamento coletivo; e creio que
não basta deixar de lado o subjetivismo em nome de uma certa frieza científica. Gosto muito de apresentar seminários, dar
aula, palestras, me sinto bem, pois desejo ser professor, ou seja, como profissional
não posso fugir disso. Também concordo que teoria serve como caixa de
ferramentas, se não serve, não interessa, bem parte-se para outra. Aí se
encaixa muito bem meu caso; trabalho com certos autores que fazem uma crítica
radical ao estabelecido. Creio que são autores que poucos usariam, ou
conciliariam com suas pesquisas sem criar uma contradição. Esse é minha linha
de fuga desde o mestrado da proposta acadêmica; dura escolha, mas é o caminho
que decidi manter. Se minha pesquisa de mestrado foi falha em muitos aspectos,
esse talvez tenha sido o principal: pela falta de tempo pra fazer uma pesquisa
bibliográfica consistente, o que pode ter resultado em ficha de leitura em
parte do texto final. Só que se eu não tivesse passado por isso, eu não teria a
consistência teórica que tenho agora. Ou mesmo chegar a conclusão, saindo do
solipsismo, de que o que importa é a relação, o bom encontro entre campos,
disciplinas, centrando em certo significado de política. Aliás, acho que todas
as pesquisas em todos os campos deveriam ter o mesmo tema: poder e resistência.
E creio que de Foucault até Negri, as significações de poder e resistência são
mais do que razoáveis. E se fico em silêncio em sala de aula, deve-se ao fato
de não gostar de discussões, embates de ideias, pelo menos presenciais. A
coisa, às vezes, parece que vira pessoal. Mesmo eu deixando sempre claro que
não é pessoal, apenas uma apresentação de certo tipo de pensamento, e dizer: eu
penso isso; pra mim diz muito pouco. Na real, nem faz sentido.
Torcer
o território
Dá pra fazer coisas em certos lugares que
a gente nem sabe. E isso é importante: tentar. Na sala de aula, nas festas, em
casa, na rua. O território é mais aberto do que parece. O fim do território é a
cadeia, o manicômio. De resto, é festa. Só que a gente não faz. Não usa o
território. Se bem que pode rolar brigas e tiroteios. Ser precavido. Mas tem
que se foder pra saber até onde dá pra ir. Tem caras que fumam maconha na rua. Cheiram
pó nos banheiros. Fumam outras merdas na casa da família. Chegam bêbados em
sala de aula. Até os policiais permitem, de certa forma.
Filmes
sobre monstros do David Cronenberg
Gêmeos
Mórbida Semelhança: dois irmãos gêmeos que se complementam;
mais, se misturam, criando uma mesma coisa. São médicos bem sucedidos. Um gênio,
o outro um bom marketeiro. Se apaixonam por uma mesma mulher. Começam a se
drogar. A mulher tem um útero mutante. Paixão, drogas, a relação anormal dos
irmãos, a mulher mutante. Mais pro fim, um dos irmãos experimenta algo entre
arte e ciência. Ele fabrica aparelhos que ele chama de cirúrgicos pra mulheres
mutantes. Um artista descobre e rouba as peças. Uma cena chocante do filme, um
sonho de um dos irmãos: os dois grudados como siameses e a mina que eles tão a fim,
ela morde o lugar no corpo que os liga. No
fim, os dois estão viciados em heroína; um deles pede ao outro que ele o mate.
O que fica vivo enlouquece. A Mosca:
um cara que se transforma, aos poucos, em uma mosca após uma experiência científica.
Quando vira totalmente mosca pede pra ser assassinado. Fugir da sua própria humanidade. Só que a fuga
não dá certo, leva a morte. Crash:
sexo e máquinas. Sexo e automóveis. Viciados em sexo e automóveis. Melhor,
viciados em acidentes de carro. Fetichistas de acidentes. Rossana Arquette faz
um papel meio humano e meio máquina. De tanto acidentes, virou um pós-humano.
Próteses de metal por todo o corpo, mas ainda gostosa. Ela e o personagem
principal vão numa revendedora de automóveis. O vendedor lhes mostra um carro, eles
entram nele e começam a se acariciar ao lado do vendedor. Ele – o vendedor –
não resiste e acaricia ela. Ele fica com tesão dessa mulher-máquina. Uma mulher
de muletas, com próteses, louca o suficiente pra transar num carro em uma loja.
O vendedor podendo perder o emprego. Ele é o único que parece ser mais normal; de
terninho e gravata, acho que calvo e de óculos. E ele quer fazer parte da
festa. Só fica nessa, mas um bom começo. Queria saber o que virou a vida dele
depois disso. Daria um outro filme. Naked Lunch. Adaptação da obra do
Burroughs, com muitos elementos da biografia dele. A mulher do personagem
principal, Burroughs, é viciada em veneno pra barata. Na vida real, era viciada
em benzedrina. Burroughs se vicia em pó de lacraia brasileira, era em heroína. Uma
barata-agente secreto manda que ele mate a mulher. Sem querer, faz isso. Na
vida real, isso aconteceu, Burroughs matou sua esposa. Depois de aparecer a barata tudo vira pesadelo,
com muitos monstros. Agentes monstros, máquinas de escrever monstros, gays monstros.
Laranja
Mecânica
Cena inicial: a gangue de Alex (personagem
principal) e ele, eles tomam “leite com facas”, um tipo de droga pesadíssima.
Estão sentados, olhando pra câmera. Olhar fixo de chapados. O som de fundo, um
órgão com alguma música de Beethoven. A câmera vai abrindo aos poucos. A
primeira metade do filme o torna o que é: uma grande obra; só que da libertação
de Alex da prisão, no meio do filme, até um poucos antes do final é moralista. Nesse
tempo, Alex paga pelos pecados. Já o final é um final feliz, mas diferente
desses de filmes ruins: a felicidade de um psicopata. Depois de se dar mal, pode voltar a agir como
um monstro. A história do filme: Alex tem
menos de 18. Toma drogas pra ficar violento. Em uma noite, espanca uma gangue
rival; quase mata um velho mendigo com seus amigos; estupra uma jovem esposa de
30 anos. No fim, bebe mais leite, vai pra casa e meio que adormece ouvindo
Beethoven. Tem sonhos com assassinatos. Em seu quarto toda uma riqueza de
signos: escultura de cristo dançando; uma cobra de verdade; quadros de mulheres
nuas de pop arte. No meio do filme, mata uma mulher, é traído pelos
companheiros, pega 14 anos de prisão. Na prisão, entra em um programa de
condicionamento. Vê filmes de violência e impõem a ele doses de uma droga
terrível, ao fundo a música de Beethoven que mais gostava, a Nona Sinfonia.
Fica condicionado. Sempre que pensa em agir violentamente ou ouve a música,
sente que vai morrer, uma dor terrível. Até aí ok, mas depois, como disse, o
filme fica chato, Alex paga o preço. Encontra todos que abusou com violência, e
quase morre. No fim do filme, o Estado o acolhe, e ele se liberta do condicionamento.
Eu não havia falado da violência sádica, no caso de Alex, por prazer. Violência
pela violência. Legal que o Estado permite a violência de Alex. Isso tá mais
evidente no livro do Anthony Burgess, que deu origem ao filme. No livro, uma
hora ele acaba se cansando, como se a violência estivesse mais relacionada à juventude.
Duas coisas importantes que estão relacionadas: violência e juventude. Isso aparece nos movimentos de luta contra o
sistema. Vemos a violência contra o Estado feita pelos jovens, só que violência
legítima, a violência da revolução. Aparece como possibilidade aqui neste
livro, algo como tentar uma escrita violenta; a partir da violência existente. Violentar
o leitor, ou seus ideais, o que dá no mesmo. Um pouco de psicopatia talvez,
frieza, meter o dos outros na reta e também o meu. O dos outros que está em
mim, o que compartilho, ou seja, me violento. Uma coisa que não gosto em aula:
falta paixão nas falas, reflexo da mesma falta nos textos. Nas assembleias dos
movimentos de ocupação, já senti o ambiente aguado. Só que em Barcelona o
pessoal tá realmente indignado. Ouvi algumas vezes nos encontros do movimento,
o pessoal falando de ação direta violenta, de forma apaixonada. E bem, os caras
tão encarando a polícia de frente, diferente daqui do Brasil.
Mulheres
Um amigo meu jovem, duns vinte poucos
anos. Tava numa fase bem aberta: drogas, loucuras, mulheres. Tava meio que
namorando uma mina. Daí começou meio que namorar a melhor amiga dela. Ficava
com as duas. É, tava ficando com as duas, e um dia, do nada, apareceu uma mina
que ele meio que tinha namorado. Era verão, elas não tinham o que fazer nem ele
e... bem, um dia ele diz que olhou pra sala e estavam as três conversando: duas
de 18 e uma mais velha que ele. Sentiu que tava num transe, e de repente acordou
com elas ali. Daí olhou pro outro lado da sala e estava uma mina que morava com
ele. Dormia na cama com ele, os dois abraçados. Ele transava com todas elas,
uma de cada vez, enquanto as outras faziam sei lá o que. O cara não era bonito,
também não era feio. Não era burro, mas também meio pateta pra ser inteligente.
Podia só fingir que tinha lido. E o cara não era nenhum grande amante. Na real,
o cara era filha da puta. E as garotas eram bonitinhas, a mais nova, a mais
bonita virou namorada fixa. Ele não se preocupou com preservativos com elas.
Quando a festa acabou, ele pensou: me fodi, vou ser pai de quatro crianças
direto, tô fodido; mais, AIDS na certa. Só que elas se cuidavam, ele que não.
Eram todas meio caretinhas, deixaram de ser com ele. Mesmo assim, ele tava meio
noiado com tudo, e conta que o fantasma da AIDS meio que pegou ele por um
tempo. Meio foda, delírios e tudo mais. No fim, tava tudo bem. Só que ele pensou na loucura, talvez seja bom,
de repente, nós cinco com AIDS, uma família decadente feliz. Dessas dos adesivos
dos carros: tipo cinco lacinhos vermelhos.
Sid
e Nancy
Puta filme. Os dois viciados em heroína.
Nancy garota de programa. Sid roqueiro que come todas. Os dois se amam de uma
forma punk. Se batem, se xingam, fazem um monte de merda. Sid chega ao final da
carreira como músico. Só heroína. Perde show. Nancy se acaba também, daí Sid a
mata. Música anarquista, heroína, amor livre, um amor punk.
Massas
Dois jovens no décimo andar de um edifício
de frente pra rua central da cidade. Ali embaixo, milhares de pessoas
caminhando. Os dois cospem lá embaixo. Um deles atira uma pedra. Interessante
que nenhum deles fez ou fazia algo do tipo em pessoas cara a cara. Medo? Talvez.
Mas ali de cima, podiam demonstrar seu desrespeito pela massa. Um monte de
gente caminhando como bovinos. Mais, vistos de cima, um monte de formigas. Aqueles
que sustentam essa merda. Aqueles que querem que as coisas fiquem assim. Só que
a massa pode mudar de forma. Passeatas visualmente têm a mesma forma dos bandos
bovinos se vistas de cima. Só que ali em baixo as coisas mudam. Um certo
vitalismo. Como na Marcha das Vadias. As meninas nuas. Todos sorrindo. Os
cartazes dizendo coisas maravilhosas. Diferente de uma procissão. Aquela coisa
triste. Desespero. Todos chorando por deus. Um cortejo fúnebre?
Sono
Final de semestre, eu bem cansado e
insatisfeito com o ambiente institucional. Muito puto já que vai demorar mais
uns três semestres pra ir pra Barcelona. Puto porque em algumas noites peguei
umas gatinhas caídas. Daí durmo muito no fim de semana, e travo na terça. Fico
dois dias sem dormir. Daí uma amiga me liga dizendo que tá com uma doença de
merda. Isso me deixou fodido pacas. Primeira crise existencial do semestre. Um
saco; muita nóia. E por aí vai. Daí decidi ficar mais em casa, o que acentuou
tudo, meti solidão no meio. Como não dormi até agora, fiz um café bem forte. Nove
da manhã. A vizinha do andar de baixo vai tomar banho. E eu aqui escrevendo.
Como dizia: aproveitar o que tá rolando. Mesmo que me leve bem pra baixo.
Rotina
Nunca gostei de supermercado. Muita gente.
Carrinhos trancando a passagem. Crianças sendo levadas pelas mães. Vovós em
grupos. Os vovôs que arrumam as compras em ordem. Poucas gatinhas sós, muitas
acompanhadas. Gente que me lembra que há uma vida que quero distancia. Não sei
se são pessoas legais, ou não. Se são inteligentes ou não, mas... bem a gente
sabe porque esse tipo de gente tá lá. Mãe com filhos pequenos, possíveis donas
de casa. Vovós e vovôs, nada pra fazer. Casal, manter a rotina; se jovens,
fingir, brincar de casinha. E vou direto no super, porque as coisas acabam
rápido aqui em casa. Eu assalto geladeira de madrugada. Deixa uma pizza fria na
geladeira, eu acordo no sofá comendo a pizza sem saber como fui parar ali. Daí tem
o pessoal que coloca compras nas sacolas. Serviço idiota. Será que os caras que
vão no super não conseguem fazer isso: ensacolar as compras? Daí olho as
compras das pessoas, e elas se alimentam mal: sacos de salgadinhos, barras
enormes de chocolate, doces... Imagino daí as donas de casa, sem nada pra fazer,
fazendo comida. Frequentava a casa de um amigo, o cara viajado, inteligente,
gay. A mãe não fazia nada, um terço do dia em casa limpando. O resto, via
televisão, bebia vinho e tomava bola. O pai, que trabalhava, quando em casa,
ficava fazendo comida. Parecia que os caras só comiam. Fim de semana, nada pra
fazer, o pai brincava de artesanato. O sonho dele era morar no mato. Perto
desse mundo do super, da classe média, da família, me sinto sufocado. Tenho
medo de que isso venha acontecer comigo algum dia. Diminuir meu território.
Morrer gordo e cheio de filhos em Porto Alegre. Já morrer enforcado em algum
albergue barato na Europa, me parece interessante. Fazer uma festa de seis
meses. Daí quando acabar a grana abreviar a vida. Tenho muito a viver; mas se a
escolha for entre essa vida de todos ou o suicídio, está bem claro o que eu
escolho.
Relacionamentos
Viver uma vida clichê não é difícil.
Melhor, difícil é não viver uma vida clichê. Imite um filho, imite um pai,
imite alguém incluído; ou mesmo: imite uma bicha. Tudo muito fácil. A gente
sabe como agir, tá tudo pronto. Imite um namorado. É só comprar um fone de
ouvido, a mina vai falar a tarde toda. Mais sutil: finja que você está
interessado. Se o cara não finge, se está interessado, é porque tá fodido... encontrou
o amor de sua vida. Vive num conto de fadas, naqueles que se diz de coração:
você chupa bem, meu bem. Mesmo que ela não saiba o que tá fazendo. Difícil
fingir ter paciência. Impossível. E tem uns caras que querem isso pra sempre. O
cara do filme o Homem do Ano (do José
Fonseca),
diz: quero casar, ter filho, arrumar um emprego. No fim, mata a esposa, vende o
filho, larga tudo, cai na estrada. Deve ter prestado atenção no Pereio que diz
no filme: são todas umas vingativas, umas chatas, tem que dar porrada. Sobre
filhos, Pereio lança outra: no casamento o que é mais complexo são os tipos de
merda, tem de todo tipo, nada muda de casamento pra casamento, só a merda. E eu
falei acima do cara que tem tesão de gozar e falar: quero casar com você. Uma
boa tática pra brochar, isso sim. Outra tática é olhar pra esposa ou namorada
de longa data. Mesmo se for bonita, deixa de ser de tanto o cara olhar pra ela.
Por isso, o cara tem que ficar na espreita, olhar as minas que tão namorando há
mais tempo. Forma mais fácil de pegar mulher bonita. E já faz um bem pra
sociedade. Faz elas se sentirem amadas por alguém.
Retorno
Reviver uma história, só se foi suave, sem
compromissos. Sem que se saiba muito um do outro. Senão, quando a coisa esquenta,
se acrescenta o passado, coisas do tipo; ele: você era uma puta que eu sei. Ela
rebate: e você era um filho da puta, que comia todas putas sem preservativo. Ele, terminando a conversa: Como você? Andar
pra trás é um saco; legal ficar cego, sem direção num giro de 350 graus.
Fazendo
teatro
Não tenho mais 25. Não estou na graduação.
Não me formei recentemente. Mas ainda gosto de rock, e acho que Porto Alegre
morreu, pro rock pra dançar. Bom rock, claro. E gosto de eletrônico, só que as noites do
tipo é pra turma gay. Daí tem esses
picos com rock manjado, apenas. E nos picos, uma galerinha bem nova. Não tenho
nada contra garotas de vinte, pra cima. Se bem que umas de 18 me pegaram, de
jeito; gracinhas demais. Tá, daí vou nesses picos. E assim, sou meio
extrovertido. Às vezes, muito. Acho que sou um cara meio pavão. Não gosto de ficar
em silêncio. Isso varia, tem gente que diz que sou fechado. Mas cara, depende
do momento. No doutorado, falo quando dever ser falado... mesmo que às vezes saia
um: foda-se; dependendo do meu humor. Nas festas tô a fim de enlouquecer. Daí
visto uma máscara. Danço. Falo com todo mundo. Fumo um monte de crivo. Como não
tô muito a fim de nada mais sério, chego em todas as garotas. Queimo o filme.
Não tenho nada a perder. Nos lugares que frequento na noite, não tenho raízes.
Alguém pra levar pra casa... claro que levo. Só que não quero fingir que sou
legal, tipo fazer café da manhã. Mas não quero também dizer: agora tá na hora
de você cair fora. E isso acontece, às vezes.
Gosto de um tipo de garotas. Elas não são beldades. Não virariam minhas
namoradas fixas. Sim, eu sei muito bem ser um filho da puta machista. Li muito
Bukowski. E aqui não é um espaço de purificação. São umas minas que posso pegar
na boa. Sem muita frescura. Só que gosto delas, pra algumas coisas. Cheiram
bem. Têm um gostinho bom. Me dão um barato, claro que com a visão embotada da
loucura. Legal que posso fazer teatro com elas, são minas legais, sem frescura.
Chego na gatinha. Lanço um sorriso cafajeste.
Dou umas apertadas. Chamo de gatinha. Tudo com uma voz meio jovem cantor de
funk carioca. E a mina sabe que tô atuando, e isso que é legal. Tipo: pô
gatinha, e aí gatinha, tá a fim gatinha, qual é o lance, chega no titio. Pô
gatinha, lança um beijo, e talz. E dou umas apertadinhas na barriga, cocha e
talz. Tudo muito engraçado na minha cabeça. Ridículo. Uma peça. Um dia pedi uns
tapas na cara de leve. Ela disse: não! Então eu dei nela. Ela ficou braba e
disse: não faz isso aqui. E eu continuei fazendo. Ela naquelas: você tá
queimando o filme. E eu: mas gatinha, que filme, meu bem, você tem quantos aninhos?
Entra na onda! Rápido perde a graça. Coisas legais, que duram, o espaço não é na
noite. Teatro na noite é uma das minhas experimentações dos territórios. Treino
uma gestualidade, uma fala. Interessante, que os caras não imitam um débil
mental na noite. Têm que manter a pose, senão as gatinhas já eram. Daí eles
deixam a barba crescer. Falam devagar. São muito sérios. Se acham sérios. É,
não tão mais na graduação, agora são homens e tal. Já comigo é o inverso. Não
quero provar nada. Só se for algo mais... problema que não sou um bom piadista,
sou um pouco agressivo. Gosto disso, uma rudeza meio da fronteira aqui do sul. Tipo: ah é mina, então vai te fuder! Meu lance
é fazer coisas que não se espera de um acadêmico. Tô treinando isso. Nem sempre
dá certo. Aqui acho que sim.
Fora
do Brasil
A gente saiu num ônibus de Madrid. A gente
ia pra Bordeaux. Madrid foi massa. Era época de festa. Só que a gente tava
passando as montanhas. A gente não tem isso no Brasil. A gente tava nessa
estrada. A estrada era estreita. Ao lado, as montanhas. Tava todo mundo
dormindo no bus. Me deu um barato. Comecei a olhar pra direita e pra esquerda.
Num conseguia focar o campo de visão. Saquei que tava meio louco. Tava com os
olhos arregalados. Como todos dormiam, me permiti ficar nessa. Foi uma experiência
foda. Longe do Brasil. Longe da família. Tinha ainda duas semanas de viajem. Ia
pra França. Ia finalizar em Londres. Tava longe. As montanhas. Tudo isso me fez
ficar num belo barato... como se eu tivesse tomado alguma droga. Uma droga
forte. Um ácido. Um cogumelo. Pensei: pra que me controlar. Ninguém tá olhando.
Surfei essa onda por mais de uma hora. E não era só um barato psicodélico. Era
um barato meio anfeta. Meio coca. Coca psicodélica. Acho que aí me liguei: tô
em outra banda, meu. Tô longe pra caralho. E tá tudo bom. Não lembro direito no
que pensava. Só da loucura. Parte 2. Anos depois, tava em Barcelona, morando perto duma praça famosa. Era só caminhar 10 minutos até a praça. Depois,
mais cinco, tava na parte nobre da cidade. Um morro com museus. Legal a vista
da cidade lá de cima, junto dum museu de história. Não sou um cara museu. Não
gosto tanto. Só que não tem como não gostar. A rua, bem a rua, é muito mais
interessante. Só que um dia entrei nesse museu de história. Passei a tarde ali.
Os caras tavam fechando e eu tava ainda lá dentro. Tava deitado num sofá.
Outras poucas pessoas ao redor. Olhei pra cima, uma hora. Um teto muito alto. A
construção era um desses patrimônios da humanidade... e me deu um barato tipo o
do bus indo pra Bordeaux. Melhor, antes, caminhando no museu, bateu um barato,
e melhor. Tava numa sessão de arte
românica. Não quero ficar descrevendo arte, mas sim, o barato... só que tenho que falar do ambiente. Salas
enormes. Escuras. Pouca gente. Partes de construções românicas, como portais,
entradas de igrejas. Tudo ainda com pinturas originais. Fiquei horas ali
dentro. E o barato. Assim, não choro. Não gosto de chorar. Acho um sentimento
muito reconfortante. Sei lá. É pouco. Só que uma hora senti que ia chorar. Não
chorei. Mas quase. Não foi uma sensação tão forte do tipo a das montanhas. Mas
quase chorar, pra mim, é algo forte, especial. Poderia ter chorado, mas não
quis fazer uma cena melosa. Não sei. Tenho medo de ficar com pena de mim mesmo.
Aquelas coisas: “Olha ele está chorando. Tadinho.” Tipo olhar pra mim e pensar
isso. Ter pena de mim mesmo. Prefiro me olhar no espelho e dizer: “seu filho da
puta!”. Prefiro me encarar: “Qual é meu?”. Parte
3. Não tem como viajar e não ir em
museu. Não tem como fugir disso. Faz parte. O museu de arte contemporânea de
Barcelona foi uma experiência legal. Na segunda-feira, a galera anda de skate
ali. Dia que tá fechado. Tudo muito correto, europeu. Aqui em Porto Alegre se
anda em qualquer lugar em qualquer dia. Um dia tava na frente dum teatro, em
Porto Alegre, e a galera do skate fazia manobras em uma escultura. Isso não acontece lá. Daí entrei nesse museu
em Barcelona. Prédio legal,
contemporâneo e tal. Tava rolando um mostra de arte pop da antiga União
Soviética. Pintura acho um saco. Escultura também. Olho, gosto. Só que se for
pra gostar mesmo, prefiro performance e vídeo. Só que tinha uns vídeos lá. Uma
banda dos 80 de som pesado, industrial. Os vídeos em VHS. Umas telas velhas no
chão. Umas almofadas pra sentar. Você sentava na frente da tela, via os vídeos
sem legendas. Muito massa o tipo de som, o visual. Os caras fardados. O som
quase inaudível, muito barulho. Melhor, o vocal cantando como um ditador
cantaria na frente de uma massa. O resto do som um barulho cortante. Depois
apareciam imagens dos caras falando. Caras que eu teria medo de ter na minha
frente. Pareciam prontos pra qualquer coisa. E não pra briga na rua... prontos
pra uma revolução, ataques nucleares, prontos pra mortes em massa.
Cinema
Strange
Viajo todo dia pra Novo Hamburgo de carro.
Cidade que fica a cinquenta quilômetros de Porto Alegre. Gosto de dirigir, é quando ouço um som. Não
ouço em casa, só no carro e em festa. Notei um dia que já fazia um tempo que
tava ouvindo só um disco duma banda. Uma banda bem estranha, Cinema Strange. Tão
estranha que demorou um tempo pra eu conseguir ouvir ela de verdade. Eu sabia
que a banda era boa. Faz parte dum segmento que me interessa: death rock. Um
tipo de som gótico, meio puxado pro punk ou pro metal. Então, gostava do
segmento, tinha lido sobre a banda, mas não conseguia ouvir. Já em vídeo descia
melhor. A banda era muito estranha no visual: moicanos, roupas rasgadas e
coloridas. Especial o vocal: alto, magro, feio. Vestido com roupas de mulher. A
cara com pasta d’água e batom. Uma cara de palhaço assassino. Na real, queria
ver um show deles. Ou talvez, dançar numa festa. Só que ouvir no carro, era
muito pra mim. O som era difícil de ouvir. Barulhento, sem melodia, nervoso. Mais,
a voz do vocal não tem referência com outros vocalistas. Aguda, não humana. De
mulher, de criança? Isso é o que mais me chamou a atenção. Daí, uma hora, notei
que tava ouvindo direto no carro. Ouvi muito. Um momento, comecei a ouvir só
duas músicas. Fiquei dias ouvindo as duas músicas, melhor, semanas. Não
conseguia parar de ouvir. Ouvi esse som enquanto escrevia esse texto. Uma dose
de loucura sonora pra compor a loucura textual. Som sem controle (do Cinema
Strange, esquisitão), fazendo a trilha duma literatura que tenta ser
descontrolada.
Carta
de suicídio
A carta do Kurt Cobain. Parece que não
tem muitas cartas do tipo publicadas na internet. Sei também que no jornalismo não se fala
sobre suicídio. Acreditam que suicídio é um lance da classe média. Mostrar pra
classe média, os leitores, que os seus se suicidam, não vende. Na real,
assusta. Queria ver o que era dito na carta do Kurt, fiquei curioso. Falam muito
sobre essas cartas; que as pessoas escrevem cartas antes de morrer. Não sei se
funciona. Me parece que servem pro cara se desculpar pelo ato; pra criar responsáveis;
se fazer de vítima. Acho o suicídio algo interessante. Só se for feito em um momento
legal. Um daqueles momentos que a gente tá bem. Daí tomar a decisão, sem dor,
mas com alegria. Acho que o grande fora do Kurt foi ter se
matado na idade da morte de Morrison, Hendrix e tantos outros. Gente que se
imortalizou por ter morrido com 27. Queria virar mito. E mito da cultura pop. O
filme sobre Kurt do Gus Van Sant é ótimo. Mostra um Kurt acabado, fechado em um
mundo próprio. Ele nem fala. Não se comunica. Só que também não sofre. Ele toca
som. Faz um som ótimo de bateria. Só que nunca demonstra desespero. Só uma
cabeça que parece que tá em outra. Do tipo: que se foda o mundo. E de repente a
solução do foda-se foi a morte. Cair fora. Um lance hippie. Meio careta. Cair
fora do mundo. Abaixo trechos da carta.
[...] Há muitos anos eu não venho sentindo
excitação ao ouvir ou fazer música, bem como ler e escrever. Minha culpa por
isso é indescritível em palavras. [...]
[...] O pior crime que posso imaginar seria enganar as pessoas sendo
falso e fingindo que estou me divertindo 100 por cento. [...]
[...] Existe o bom em todos nós e acho que eu simplesmente amo as
pessoas demais, tanto que chego a me sentir mal. [...] Tenho uma esposa que é
uma deusa, que transpira ambição e empatia, e uma filha que me lembra demais
como eu costumava ser, cheia de amor e alegria, beijando todo mundo que
encontra porque todo mundo é bom e não vai fazer mal a ela. Isto me aterroriza
a ponto de eu mal conseguir funcionar. Não posso suportar a idéia de Frances se
tornando o triste, autodestrutivo e mórbido roqueiro que eu virei.
Acho que até aqui a carta tá legal,
pensa o mundo de forma bem lúcida. Se ele escreveu logo antes de se dar um
tiro, ele tava com a cabeça boa. Talvez porque sabia que a carta seria lida por
muita gente.
Eu tive muito, muito mesmo, e sou grato por isso, mas desde os sete anos
de idade passei a ter ódio de todos os humanos em geral. Apenas porque parece
muito fácil se relacionar e ter empatia. Apenas porque eu amo e sinto demais
por todas as pessoas, eu acho. Obrigado do fundo de meu nauseado estômago
queimando por suas cartas e sua preocupação ao longo dos anos. Eu sou mesmo um
bebê errático e triste! Não tenho mais paixão, então lembrem, é melhor queimar
do que se apagar aos poucos. Paz, Amor, Empatia.
Já nessa
parte, a final, o texto fica mais choroso. Lendo isso fiquei com um pouco de
pena dele. E acho pena um sentimento muito feio. Também, fica claro que ele não
tinha saída. Não tinha escolha. E não ter escolha é foda. Escolher morrer, acho
um lance potente. Claro que a vida taí, deve ser enfrentada. Os caras na prisão
não se matam, ou poucos se matam. Fumadores de crack continuam buscando
alegrias. Os negros lutaram pelos seus direitos enquanto se fodiam. Os judeus
enfrentaram os nazis. Todo mundo tá fodido, e bem fodido, mas a gente luta
contra essa merda. Vamos lutar, não se matar. A revolução tá próxima. Kurt caiu
fora da luta. Pra ele a luta tava perdida. Se os indignados do mundo todo, se
eles caíssem nessa... bem, a gente ia estar engolindo a crise de graça. Os
caras vão pra rua e são presos. Uns morrem. Só que fazem isso não pra se
destruir, mas pela luta, pela vida.
Sadomosaquismo
Um filme sobre o Torquemada, inquisidor
espanhol do século 14. O cara usava uma armadura com pregos apontados pra
dentro, pro corpo. Queria ser cristo. Dormia com uma espada pendurada no teto,
acima da cama. Podia cair e furar ele. Deus manda, mesmo que o Torquemada desse
uma ajuda. O lance da dor cristã, um lance triste. Na terra você se fode, no
céu é legal. No inferno você se fode, no céu... E por ai vai. Só que dá pra
pensar em uma experimentação sadomasoquista e suicida dos religiosos. No senso
comum, tudo gira em torno do pecado, danação de cristo, etc. Daí, deixam de
lado a parte boa: curtir o corpo, a vida, em contato com a dor e a morte. Tirar
a tristeza disso, a parte do pecado, da culpa, aí vira festa. Os góticos têm
uma relação legal com o corpo, não extrema, mas têm. Fazem cortes no corpo,
bebem sangue. Os playboys fazem algo parecido, o mesmo, só muda o conteúdo. Bem
comum entre os mini machos apagar um cigarro no braço, cortar-se com uma lâmina.
Eu já fiz isso, os adolescentes fazem, isso não é nada. Se o cara pratica
esportes de contato ou radicais, o que é um corte? Uma queimadura de cigarro? A
maior parte dos garotos, os que fazem esporte... bem, já quebraram ossos, se
meteram em briga, etc. Então, um corte no braço? Fiz pontos nos dois joelhos
várias vezes, quando andava de bike. Então, um corte que não dá pontos, não é
nada. Até meio engraçado, tipo emos se cortando. Claro que eu não quebrei,
digamos, meu tornozelo dez vezes de skate porque queria. E na real, a dor é bem
suportável, até gostosa. Só que isso é diferente dum cara que se corta de
propósito. Uma diferença muito pequena, mas diferente. Sangue, quem nunca
cortou a língua? Ou de repente, cortou a pele em algum esporte e lambeu pra
limpar. Sentiu gosto de sangue, só que isso é comum, é um esportista. O cara
que se mutila ou bebe sangue de propósito, é algo próximo de um monstro: o sadomasoquista
ou o vampiro. Um amigo cortou sem querer o peito: dez pontos. Só que um sem
querer diferente. Queria cortar com uma faca só pra ver qual é. Só que foi
afoito. O médico olhou pra ele com cara estranha: “putz, um corte reto bem no
peito?”. Se cortou, ficou com medo ao ver a gordura. Daí parou e pensou. Abriu
uma cerveja. Pegou uma camiseta. Fez um torniquete. Ficou na dele ouvindo um
som. Uma hora depois, sentiu um desconforto; muito sangue. Foi pro hospital. Arrebentei
a cara andando de skate. Não chorei, não era mais criança. Mas foi meio foda.
Só que de noite tava tomando ceva com a cara arrebentada. Tinha que fazer
pontos. Deixei assim. Rituais de iniciação entre machos. Roleta russa, algo
parecido ao cigarro no braço. Daí é outra história. A pior sensação é ter uma
arma apontada em sua direção. Foda. Mesmo se estiver sem balas, o cara pensa:
porra, se tem uma bala ali... Um cara,
uma vez, fez a roleta na frente de uma turma. Pegou e apertou o gatilho. Quando
apertou meio que tentou tirar a cabeça da mira. Se tivesse bala, teria
atravessado o topo da cabeça. No fim, o dono da arma tinha só feito que tinha
posto a bala.
Rock
Tenho um conhecimento de rock. Não sou
novo, então passei por vários estilos. Alguns mais marcantes: metaleiro hippie
com 11; trash metal, funk-metal, grunge, tudo isso dos 14 até os 18; daí uma
fase meio techno, mais pra dançar. Depois um lance meio gótico, quase Black Metal.
Só que sempre ouvi de tudo, não tinha como não ouvir. Lia muito sobre. Gostava,
acho, mais de ler. Lia coisas maravilhosas sobre o Velvet Underground. Só que
era difícil de ouvir. O som bom começou a descer faz pouco. O que é bom ouço e
gosto. E tem uns caras que dizem o que é bom, confio. Alguns críticos. Nunca li
coisas mais acadêmicas sobre rock. Fico mais dentro da indústria cultural. Não
só isso, se determinado tipo de gente ouve certo tipo de som, isso já indica
algo. Se toca em certos lugares na noite; se toca em certas rádios... bem, um problema. O som bom tá em outro lugar,
ou em lugar nenhum. Melhor, pouquíssimos lugares. Claro que ninguém vai discutir
a história. Pink Floyd, Doors, Zeppelin são historicamente importantes. Só que
daí aparece uma gente meio medíocre que gosta; e cai bem a pergunta: sou também
um? Todos somos. Ninguém é perfeito. Só que o som que poucos ouvem é algo
importante. Som não recuperado. Som não interiorizado. Mas o que não foi
interiorizado? Claro que Kurt Cobain nos picos da heroína. O cara se matando. O
cara com o pau pra fora na TV. O cara errando no palco. E milhões de jovens viam
e ouviam. Bem, isso é bom. Tem umas bandas que não ouço em nenhum lugar. Tô ouvindo
elas agora. Só que não tô lendo coisas sobre música. Então não sei se são
realmente coisas pra poucos, singulares. Dictators: uma das primeiras punks de
Nova York. Um dos vocais se chama: “Manitoba (nome de uma região da américa do
norte) do pau bonito”. Outra banda, New
York Dolls: punk glam, teve seu sucesso nos 70, mas não ouço em lugar nenhum. O
empresário dos Pistols trampou com eles. As duas bandas apareceram num livro
sobre punk lançado no Brasil: Please Kill Me. E a banda que mais ouço nos
últimos anos, e mais, tô ouvindo direto um disco só: New Model Army. O som
mistura pós-punk, metal, hard rock, punk. Uma daquelas bandas que não fazem
parte duma cena. Som singular pacas. O vocal tem uma voz linda. O cara me chama
muito a atenção. Tem essa voz meio rouca, meio suave, meio pesada, um tom
massa. Só que o cara tem a cara toda arrebentada. Não é um desses bonitinhos.
Por isso, o cara é foda.
Me
dá 15 anos, saio correndo pros 30
Vivo em Porto Alegre. Estudo em outra
cidade, faz uns anos. Em Porto Alegre não tenho saco pra usar bus. Entre Porto
Alegre e outras cidades, pior. Claro que já andei muito de bus. Peguei metrô
direto entre Porto Alegre e as cidades vizinhas. Qualquer hora do dia e da
noite. Só que adolescente, não tinha muito a perder. Não que tenha muito agora,
mas tenho mais. Entre 13 e 18 anos, a gente pegava bus e não pagava. Descia
pela parte de trás. O cara da passagem liberava. Não tinha como não. Tipo um
bus vazio na parte paga e cheio na parte do pessoal que tinha que pagar. Era a
gente que ficava ali. Abria a porta e descia. Às vezes, dava problema. Pra mim
nunca deu. Eu branco, só que tinha amigos negros que se davam mal. Uma época
tinha uma turma que a gente atravessava a cidade a pé. Meninos e meninas. Tudo
na boa. A gente não tinha nada pra fazer, não tinha grana, daí caminhava a tarde
toda. Auge do corpo. Hoje caminho bastante, mas na esteira da academia. Ficava
semanas comendo só cachorro quente e xis. Hoje, tenho que fazer todas as
refeições. Melhor se feita por mim. Não choro a adolescência que se foi. Quero
distancia dela. Me dá 15 anos que eu saio correndo... pros trinta. Só que
penso, e se der merda. Se aparecer uma crise como na Europa. Essa adolescência
aparece como possibilidade. A possibilidade de viver uma vida mais simples. Não
mais simples, menos superficial. O carro é necessário realmente? Roupas caras?
Coisas caras pra casa? Um ap bem equipado? Acho que dá pra viver bem com alguns
panos, um rango barato, uma barraca... só que com um bom notebook, um bom smartphone
e um bom tablet. Tudo com banda larga máxima. Tecnologia não dá pra por fora. O
resto da vida é afeto que não se compra. Televisão e jornal não servem pra
nada. Livro e papel servem pra fazer
fogueira. Claro que junto a isso, festa. Teatro e cinema também. O lance da
barraca, dos caras das ocupações. Uma boa cama é importante pra quem é mais
velho, será? Vi gente velha dormindo nas barracas nas acampadas. Na real, a
gente já passou por merda. Todos fomos adolescentes. Retornar é pouco. A gente
faz isso quando se sente mal. “Meu pai era um sacana. Eu era um sacana, etc.”. Um saco. Legal, retornar o que vale a pena. E
sempre retorna de forma diferente. E esses caras que acampam, os velhos. Velhice
é cansaço? Velhice é impotência? Velhice é aceitação? A história nos diz isso. O
senso comum. Só que um velho pode experimentar a juventude, é só querer. E na
real, essas classificações de jovem e velho... isso é o pensamento do idiota.
Mesmo o corpo a gente constrói.
Filmes sobre a vida de viciado
Gosto do Drugstore Cowboy, do Gus Van
Sant. Burroughs aparece nele. Um padre viciado em heroína. O filme muito
inspirado na obra do Burroughs. Heroína, viagens de carro, assaltos, curas de
dependência. Van Sant em alguns filmes é meio Burroughs. Tipo o My own Private
Idaho. Alucinações, viagens pela américa de carona,tráfico,viadagem. Não muita
droga. O centro do filme é a vida de michê. Nos dois filmes aparecem delírios
parecidos. Um pouco de surrealismo. Também nos dois, os atores são os queridinhos
dos states... bem, Van Sant coloca eles literalmente de quatro. Sid e Nancy é bom
também por isso. O Gary Oldman, o astro do Drácula, faz o papel dum Sid
esquelético da heroína. Bird, filme sobre o saxofonista Charlie Parker. Acho
que comecei a ouvir jazz pelo filme. Filme triste, mas bom registro. Parker era
novo, teve sua overdose fatal, daí o legista vê o corpo e pergunta: o cara tem
70 anos? Uma outra parte legal, o pupilo do Parker diz: “entrei na heroína
porque queria ser você. Quero oferecer um pico.” Parker diz: “ cara isso não
ajuda em nada na música”. O pupilo: “eu sei”.
Coisinhas
Daí tinha essa mina. Legal. Perfeita no
momento. Até certo momento. Depois desapareceu. Como devia. Fez bem. Pra mim.
Pra ela. Só que ela levou algo. Bom que continua com ela. Saco quando retorna.
Acho que eram uns lances pessoais. Roupas da minha infância. Ou brinquedos.
Coisinhas. Dei pra ela. Disse: “tudo que é meu agora é seu”. Era novo. Tinha 15,
ela um pouco mais. Queria dar tudo pra ela. Um pouco de nada, na real. Só que às
vezes, penso nessas coisas. Vou precisar na velhice? Quando não sobrar nem
memória. Eram coisinhas legais. Tipo um pedaço do meu edredom. Um pedaço de
mim. Dormi muito tempo com ele. E agora tá em qual lugar? Sempre tanto faz. Só
que em certos momentos aparece como falta. Um pedaço de mim. Pedaços de mim.
Pensar nisso já é pequeno. Escrever mais ainda. E quando motiva a escrita, pior.
Melhor fazer outra coisa. Só que sonhei com isso. E isso ficou em algum lugar.
Até o som do meu pensamento parece piegas agora. Melhor parar
Manos
da antiga
Tava na baia. Com a mina. Tava curtindo
ela. Como sempre. Mina quente demais. E tudo mais. Daí toca o telefone. Atendo.
E um cara diz: e aí mano, sou teu mano da antiga, voltei de viagem, tô na
banda. Daí fico todo assim: e aí mano, na boa, bom ter ligado e tal. A mina ficou
meio puta. Fiquei uma hora no telefone com o mano. Ela queria atenção. Daí eu e
o mano, a gente se encontra. Muito massa e tal. Não via o cara uns 10 anos. O
cara tinha caído pra Europa. Ele chega e diz: cara você tá igual e tal. Sem
essa de que nada mudou. O cara falava que eu tava igual, na nossa amizade.
Manos e tal. Na época que a gente se curtia... bem, a gente era adolescente.
Caretas. Mas rockeiros. Só que bem caretas. Daí o mano pinta malucão. Só quer
saber de pó e putaria. E eu já tinha passado por essa. Tava com minha mina. Só
que num ia deixar o mano pra trás. O cara era meu mano e tal. Fiz a noite com
ele. Uma merda. O cara só queria pó e putaria. Só queria pirar a cabeça.
Encarei a noite. Tudo roubada. Uma merda. O cara só queimava o filme. Dentro do
possível. Só que ele queria uma história que não era mais a minha. Um lance que
a gente não passou juntos. Fui pra casa; puto pacas. Muita doideira. Eu queria
curtir minha mina e só. Daí meti o mano na lista negra. O cara ainda pintou outra
hora na baia; o cara tava doidaço. Tive que queimar ele e tal. Mas quando a gente
passou a noite juntos, ele me falou da vida dele. Umas coisas legais. O pai do
cara era um grande empresário. Rico pacas. Daí disse pro meu mano: faça
medicina. Ele fez. Daí quando acabou, o velho disse: faça direito. Ele entrou
na faculdade de direito. O cara não era um grande estudante, mas fez tudo
certinho. Daí acabou o curso. O pai disse: agora cuida dos negócios da família.
Mandou ele pra uma cidade grande e tal. Deu um ap legal. Um carro legal. Uma
grana. Nada demais pra quem era um grande empresário. Ele tava nessa quando a
gente se reencontrou. Só que um pouco antes, ele meio que surtou. Começou a
cheirar pra caralho. Beber direto. Tinha grana pra fazer a mão e pegar vadias. Pra
ele tava bom. Virava a noite sempre. Com pó e puta. Depois ia pro trampo. Daí
um dia tinha cheirado pra caralho. Tinha bebido. Não tinha mais puta na rua. Pegou
a caranga. Se foi pro interior. Doidaço. Uma caixa de ceva no banco do carona.
Umas parangas de pó. No interior não tinha controle de velocidade. Então tava
dando pau. Tava meio maluco. 100 por hora. Passava os carros. Tava trincado. Começou
ficar meio puto. Depois pensou: “se passar mané na minha frente atropelo. Ia
ser legal matar um cara hoje”. O cara tava com o demo no corpo. Queria acabar
com a vida de alguém. Uma hora foi pegar uma ceva; não olhou pra frente; bateu
num carro velho. Quase se fudeu. Desceu do carro. O carro tava legal. Só que o
carro velho tava meio que fodido. Desceu dele um cara duns cinquenta; chinelo
de dedo, calção. O sol já tinha nascido. O cara desce atucanado. Olhou meu
mano. Vê um garotão doidão e parte pra cima: “seu filho da puta. Você quase me
matou. Olha o carro, porra.” O meu mano todo mal. Tinha bira no carro. Tinha
paranga no bolso. Tava na ruim pacas. O cara chega e diz: “sou cana, você tá
fodido, vou falar com seu pai, você vai cair”. O mano fica branco. Não tava com
medo de cana. O pai ia encarar a mão. Tava com medo do pai. O velho ia ferrar
ele. O cara do carro que meu mano bateu diz: “me dá cinco mil pelo carro e pelos
danos morais, senão você vai se fuder. Vou falar com seu pai.” O mano pega o
cheque. Faz a mão. Dias depois a grana entra. Cinco mil não era nada. Era festa
de um mês. E tinha um monte de mês sobrando. O lance era não se queimar com o
pai. Daí, tempo depois, tava fazendo festa. Tinha cheirado e tudo de novo;
lembrou do cara da batida: “filho da
puta. Sacou que eu tava doido. Sacou que eu era filho de papai. Passou a perna em
mim. Merda de pó, tinha me deixou cagado. Vou cheirar mais, vou pro interior e
vou pegar aquele cara.”
Detonação
em Porto Alegre
Moro então em Porto Alegre. Merda de
cidade do sul do Brasil. Cidade de merda. Nada pra fazer. Tinha o que fazer
quando eu topava todas. Hoje, merda, tô noutras. Só que bem... olha só. Saí com
uma amiga na segunda de noite. A gente foi nuns picos. A gente queria
conversar. A gente não tinha trampo na terça. Daí a gente queria ficar na
nossa, mas na rua. Daí o que fazer? Não tinha quase nada aberto. A gente foi
nuns postos. Eu tava dirigindo. Daí a gente tava numas de café. Muito café,
cigarro. Rango a gente tava pensando pra mais tarde. Uma hora a gente sacou que
já tinha encarado todos os postos legais. Daí a gente foi pro aeroporto. Mais
café e conversa. Daí a gente saiu de lá às 2 horas da madruga. Só que queria
ainda dar mais banda. Daí não tinha realmente mais nada pra fazer. E a gente
foi pro ap dela. Beleza. Só que depois das 11 da noite notei que, em alguns
lugares, bem poucos, tinha gente. Lugares que eu não queria estar. Daí tinha
gente nesses lugares. E essa gente tava bebendo. Era segunda-feira. Era quase
madruga. E os manos bebendo ali na Cidade Baixa. Daí me lembrei de uns anos
antes na segunda, quando eu quebrava todas; quando curtia todas. E segunda era
só mais um dia. Mais importante quando era continuação de domingo. Não mano,
era continuação de sábado. Mano, podia ser continuação de sexta. Ou de sete
dias atrás. E bem... então, segunda, noite. Nada pra fazer. Pior dia da semana.
Tudo fechado. Só que é noite e o cara tá
a fim de festa. E depois da meia noite, o cara tá bêbado e cheirado. Daí vai
pra cima e pra baixo. Procura lugar com gente. Sempre encontra, mesmo os
lugares sendo boca braba. Só que uma hora não tem mais ninguém. Daí o cara tá
num carro com mais três caras. Um amigo e dois caras que você não sabe como tão
ali no carro. Todos tão ligados. Têm ceva. Pó na mão. E querem ver outras
pessoas. Melhor, querem ver mulher. Daí o que faz? Acho que por isso que vários
puteiros ficam abertos de noite toda todos os dias. As putas são gente legal,
topam todas. Tão ali pra fazer o serviço. E assim mano, na real elas são legal.
São gente como a gente. Só tão na ruim. Só tão a fim de fazer a mão delas. Então...
bem mano, daí nasceu o sol. O carro é metade puta, metade uns caras que comem
puta sem preservativo. Eles vão num posto. Eles baixam ceva. Eles se revezam no
estacionamento. Fodem feito louco. Todos eles têm namoradas. Todos têm emprego.
Eles tão na faculdade. E que se foda tudo. Que se foda os dias da semana e os
professores. A futura esposa. O patrão. O superego. Que se foda o sol. Que se
foda os neurônios. Que se foda.
Piñero,
o filme
Puta filme. Dos poucos que valem a pena
sobre artistas malditos. Piñero migrou de Porto Rico pros EUA. Migrante, então
o cara naturalmente já era marginal.
Também curtia, desde novo, rapazes e drogas. Cresceu na onda. Se meteu
com teatro e literatura. Foi pra prisão. Tudo de bom pra formar o personagem: latino
nos EUA, drogado e homossexual. Além de tudo o cara era bom. Bom pra caralho. Fazia
poesia marginal misturada com performance. E o cara tinha uma pegada legal. Se
meteu com heroína e morreu de cirrose. Rendeu uma boa biografia, e um filme
bom.
As
vilas de Porto Alegre
Uns merdas de garotos. Hoje médicos,
economistas, comunicadores, e tal. Um ou outro fodido. Mas poucos. Os caras
tinham quinze anos. E nada na cabeça. Eram caras da classe média que tinham
levado bomba em colégio particular. Daí os velhos colocaram eles em colégio
público. No público, os colegas todos pobres. Daí os classe média se reuniram e formaram a
gangue dos playboys. Diferente dos outros, eles tinham mesada. E mesada gorda.
Tinham cigarro caro que pegavam dos pais. E todo o resto, roupas, bons
presentes. Bem, só que caíram em outra real. Começaram a fazer amizade com os
caras mais pobres. Uns caras de vila, marginais. Interessante como as vilas e
bairros ricos se misturam em Porto Alegre, bem Brasil. Por isso, essa mistura nos colégios públicos.
É cara, um dos bairros mais chiques de Porto Alegre, tipo Assunção, só com
casas de milionários... Olha só, casa residencial e riqueza, um lance raro hoje
em dia. Cara, essas casas tão do lado de um monte de favelas. Favela da Guaíba.
Antes tinha uma mais abaixo que virou shopping pra rico. Mais acima, favela Conceição.
Mais pro lado, tem a Funil e, uns dez anos atrás, tinha uma vilinha, a Vagão. E
pertinho tem uma das maiores, a Cruzeiro do Sul. Da parte alta da Assunção (olha
que massa, o nome do bairro é Vila Assunção, vila de rico)... da parte alta dá
pra ver a Cruzeiro. E mais legal, no coração desse bairro de ricos tem um
colégio público, que mistura os ricos caídos com os pobres. Voltando, pra
história. E cara... os riquinhos entram no colégio levando soco; só que no ano
seguinte tão dando soco junto com os manos pobres. Entraram na turma. Daí os riquinhos
meio que viram a casaca. O cara tem grana no bolso, mas porra, não vai comprar
comida no super. O cara compra e vai ser roubado. Daí o cara riquinho rouba
também. Vai pagar bus? Os manos vão sacar que tá com grana, melhor descer por
trás. E por aí vai. Daí os caras crescem juntos. Aos poucos, frequentam as
casas. Aparecem amizades que meio que se fortalecem. Daí vira merda. Vira merda
já que muitos dos manos pobres já tavam marcados pra fazer merda na vida
adulta. E certos manos riquinhos acham essa uma vida legal. Melhor, usam os
manos pobres como trafi, receptor, e tudo mais.
As
porradas dos ricos e as dos pobres
As pessoas olham os adolescentes de alguma
subcultura e ficam com medo. Tipo, Punks, Góticos, Metaleiros; garotada com
suas tatuagens, piercings. Dói pra fazer tatuagem. Eu tenho tatoos e não faço
mais, dói. Mas eles não só rasgam a pele pra pintar ela. Também os caras tomam
bira barata. Tomam cachaça pura. Cheiram umas merdas de solvente. Ficam dias
sem dormir. Parecem caras corajosos. Fodas. Acho que o medo passa por aí: esses
loucos podem fazer alguma loucura. Só que não fazem. Ou fazem pouco. Pega esses
playboys. Os caras só fazem merda. São os filhos que visualmente toda mãe
queria ter. Escondem bem o jogo. Ninguém muda de calçada quando passa um
playboy. Só que eles sempre fizeram esporte. Têm grana pra pagar artes
marciais. Têm grana pra fazer uma alimentação pra ficarem fortes. E são jovens
com nada na cabeça também. Moro do lado de um estádio de futebol. Quando tem
jogo, passam esses playboys. Volta e meia dá merda. Outro dia os boys tavam
jogando garrafas de ceva na torcida adversária. Num outro dia, eu tava saindo
dum restaurante. Daí um guardador de carro fala com uns caras que tavam tomando
ceva junto do carro. Carro do ano. Uns playboys. Os caras não gostam. Então um
deles saca uma arma. Corre na direção do guardador. O cara assustado. O play dá
uma coronhada no cara. As gangues de nazi tem um monte de boy. Na polícia tem
os boyzinhos querendo ser Bruce Willis. Daí ter medo duns punks? Uns caras que
pedem grana na rua. Uns caras que comem qualquer coisa pra ficar de pé. Só que
tem outros jovens. Esses meio que superam os boys. Acho que os boys têm medo
deles. De certa forma, já que o guardador de carro faz parte desse tipo. São
aqueles que cresceram na ruim. Sem grana. No morro. Levando porrada direto, do
pai, dos vizinhos, da polícia. Esses são fodas. Em parte são do crime. Os que
não são... bem mano, mesmo assim, eu não quero encontrar na minha frente. Eu
como boyzinho que faz academia. Saca? Tava num festival de música em Poa. Acho
que era o Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Tocou uma banda punk. Eu e os
punks, a gente tava dançando na pista. Só homens. A dança se chama pogo. Forma
uma roda. E todo mundo fica se empurrando de um jeito violento. Às vezes, dá
merda. Nem sempre. Daí muda de banda. Entra uma banda meio rock só que pros black.
Eles formam a roda. Dançam como no pogo. Fiquei na roda por um minuto. A coisa
tinha mudado. Os caras tavam se batendo de verdade. E todos eles eram muito
mais duros que os punks. Corpo de madeira. Mesmo uns caras magros.
Pó
Dois jovens de merda. 15 anos. Playboys do
mal, mas do tipo aprendiz. Eles vão pro colégio de manhã. Papai leva eles no
colégio. Toda noite antes de irem pro colégio... bem, eles sobem o morro. Pegam
duas parangas de pó. O mais viciadinho diz pro outro: mano, você fica com o pó,
se você deixar comigo vou acabar cheirando. Daí de manhã, os dois são largados
no centro da cidade, no lugar que estudam. Eles entram em qualquer edifício. Vão
pras escadas de incêndio. Ninguém passa por lá. Tiram um prato da pasta. Prato,
gilete, canudo. Metem o pó no prato. Com a gilete quebram as pedras que viram
poeira. Com o canudo dão as cafungadas. Daí eles saem do prédio e vão pra aula.
Quando chegam, eles sentem o barato. Como são novos (tão começando na vida), o
barato dura até o intervalo. E tudo bem. Só que passa um tempo. Eles na mesma
rotina. Tipo dois meses. E a coisa muda. Eles começam a cheirar no banheiro no
colégio. Sacam que não tem problema. Até os caras que fazem segurança,
ajudam. Daí começam a dobrar a
quantidade. Saem da aula pra dar umas cafungadas. No fim, nem vão mais a aula,
só cheiram. Um outro mano meu, o cara tinha no banheiro do colégio: prato, gilette
e canudo. Ficava guardado na divisória dos box. Outros cheiravam dentro da sala
de aula mesmo.
Ladrões
Traficante sempre foi uma coisa mais
aceitável. Isso entre os caras da minha turma. Claro que traficantes pequenos.
Caras que vendem mais pros parceiros. E quando o cara se droga, conhece muita
gente. Fácil de vender. Dá pra fazer grana só com os chegados. E a grana que se
faz é pra poder manter o uso. Tô pensando mais na classe média. Caras que têm
grana dos pais. Só que a grana dos pais não dá pras drogas. Daí o cara tá
fazendo tráfico, e nem pensa se é tráfico. Só que uns caras faziam pequenos
furtos de equipamentos eletrônicos. Invadiam casas ou prédios; tipo uma escola.
Ou som de carro. Não lembro de assaltarem alguém na rua. Muito barulho. Tava
junto com uma turma, uns caras mais velhos. Eu tinha quinze. Pintou um cara com
uma mina. Daí começaram a aparecer. Isso durante uma semana. O cara tinha
grana. Baixava ceva direto. Depois me disseram que o cara era ladrão dos
grandes. Tinha fugido do presídio Central. Roubava bancos. Eu nem aí. Tava mais
preocupado se o cara ia baixar ceva. Bem, acho que a primeira coisa que
roubei... acho que foi um lance num armazém. Um lance com tinta pra pixar muro.
Outra vez tentei com um mano quebrar uns faroletes dum carro. A gente queria
vender. Não sei pra que? Depois em colégio público... a gente roubava doces do
super. Minha família tinha casa na praia. Todas as casas da rua eu entrei em
baixa temporada. Roubava vinho, biras, nada demais. Tinha uma casa que eu e uma
turma a gente entrava direto. O bar ficava exposto. Era só pular o muro. A
gente pegava o suficiente pra ficar bêbado uma noite. Tipo três garrafas de
vinho. Nunca deu problema. E na real, a gente tinha grana. Fazia mais por
curtição. Uma vez eu entrei numa baia. Era casa dumas minas. Entrei no quarto
delas. Cheirei as calcinhas. Tinha visto isso em filme de sessão da tarde. Merdinhas.
Outra coisa, vandalismo. A gente saia na rua, e os manos pegavam pedras e
quebravam os carros. Uma vez, um meteu uma pedra numa vitrine. Outro jogou uma
pedra na janela duma casa. A gente saiu correndo, podia dar merda. Mas tudo
bem. A gente não tava nem aí. Não parecia nada demais.
Iggy Pop
Iggy Pop foi num show dos Doors. Gostou
pacas da performance do Morrison. Dá pra notar isso em sua dança. Só que Pop
deixou as coisas mais cruas. Bem, o cara tornou urbana a dança do Morrison, que
era ritual. Um ritual de xamanismo, pagão, tudo isso misturado com ácido. E ácido,
bem, nos anos 60 permitia o contato com algo divino. Além da vida. O lance do Iggy
era punk. Acho que isso: um Morrison punk, do subúrbio, da heroína, do lixo da
vida real. Heroína torna o cara um rato. Ácido deixa o cara, ou deixava numa de
“vejo deus”, ou até de “sou deus”. E Morrison dizia isso: sou Dionísio, sou um
xamã. Pop deixava bem claro: quero ser seu cachorro, nada mais que isso. Pop
dava voltas no palco. Dançava quase no chão. Fazia coisas doidas com as mãos. Pulava.
Tudo parecido com Morrison, só que diferente. Mais violento, menos dramático.
Falos
& Stercos
Grupo teatral aqui de Porto Alegre. Os
caras são uma versão júnior do La Fura dels Baus, grupo catalão de teatro
industrial. Acho que a primeira vez que vi o pessoal do Falos, eu era bem novo.
A encenação ainda era no palco italiano. Só que já tinha interação direta com o
público. Gente da plateia subia no palco pra chicotear uma atriz de quatro.
Quando o grupo já tava bem famoso, vi eles no hospital São Pedro. Hospital psiquiátrico
que na ultima década dá espaço pra manifestações artísticas. Um lugar meio em
ruínas, assustador. Acho que era uma encenação do Grito do Ginsberg. Dois caras
de preto; couro preto, carecas. Eles estavam suspensos no vão de um jardim. Uns
5 metros do chão. A plateia embaixo. O som era demais, industrial. E os dois
caras recitando poesias... e as poesias do Ginsberg não têm muito sentido. Só
que cada frase... bem, elas não falam de florzinhas. A última vez que vi foi em
um prédio que era um antigo estaleiro, na Usina do Gasômetro. Me lembro melhor. O som mais heavy metal. O
visual o mesmo. Só que tinha umas gatinhas de peito de fora. Sem fala. Só som e
movimento no chão e suspensão. O contato com o público era direto, mas meio que
organizado. Queria ver um pouco de violência. Dar umas porradas, tocar nos
atores. Tava com a cabeça em algo punk. Tipo Iggy Pop descendo do palco e
quebrando tudo. Vomitando na galera. Não rolou isso na peça. Acho que o Genesis
P Orridge fez algo do tipo. Contato direto com o público. Festa, carnaval,
putaria. Legal isso, tornar a coisa real. Propor pra plateia coisas novas. Numa
festa tão a fim de drogas, dança, beijos, e sexo. Esse pode ser um bom passo
inicial. Fazer a festa. Acho que o performer poderia até acentuar isso. Propor
coisas novas. Li novo um lance sobre as primeiras festas clubber no Brasil. As
pessoas se juntavam na pista de dança e se agarravam todos, sem distinção: bolo
de carne. Mistura uns tapas. Coloca aí umas chicotadas. Uns cuspes. Um pouco
mais de sadomasoquismo. O som certo. Bem, uma bela festa, carnaval punk. Importante tornar o teatro o mais espontâneo
possível. Como nas festas. Sem roteiro, sem definições. Modificações dependendo
do clima. E violência, o que é violência? Um pouco de dor, não faz mal. Fazer a
plateia sofrer, tirando ela do papel passivo. Saca? Uma vez pedi a uma garota
um tapa. Ela deu. Daí disse, pô mina, bate que nem homem. Ele me deu no ouvido
um belo tapa. Filha da puta. Fiquei com um zumbido por algumas horas. Só que
ok. Nada demais. Vela no peito. Bem, deixa vermelho, dá uma alergiazinha, isso
incomoda, mas pouco. Só que a sensação da vela caindo no peito é legal. Experimentar
o corpo. Ver o que ele aguenta, e aguenta muito. Os caras se acidentam de
carro. Vão pro hospital. Fazem pontos. Uma hora depois tão na estrada de novo.
Larry
Clark
Acho que o cara tem dois grandes filmes
(pelo menos lançados no Brasil): Kids e Ken Park. Outro, o Bully, é legal
também, só que com uma “historinha” bem contada. Kids e Ken Park, eles não têm
história. Só relatos. Tem uns personagens centrais. Só que não tem nada como uma
história de vida. São jovens, classe média baixa, que curtem drogas e tudo
mais. Acho que esses dois filmes me influenciaram em algumas coisas escritas
aqui. Sexo, drogas e violência. Sem ingenuidade. Violência com mortes.
Suicídio. Sexo sem proteção. Gente com dezesseis e HIV positivo. Muita bira,
maconha, ácido e bala. Overdose. Daí dizem: porra, a vida de adulto que é foda.
Trabalhar que é difícil. Acho que é fácil e demais. Tanto que todo mundo
trabalha. Quero ver um cara adulto, que dá duro, aguentar o que os jovens
fazem. Mesma coisa: chamar as prostitutas de mulheres de vida fácil. Porra,
estar na madruga na rua. Depender de um filho da puta dum cafetão. Ser viciada.
E isso é só uma parte. Elas entram no carro de qualquer um. E mesmo se o cara
for bonzinho com elas... bem, vai tratar feito lixo. Se for do mal, pode matar
ela. Era novo, tava na rua. Daí tinha uma mina na rua. Era puta. Pensei, vou
dar uma carona pra ela. Mina legal. Disse que passava o dia fazendo nada. De
noite, trampava. Disse que chupava e
engolia a porra, sem preservativo. Na hora senti cheiro de porra vindo da boca
dela. Bem, disse pra ela descer. E isso vira história. Tem gente que gosta.
Devem gostar; muitos que escrevem sobre isso são best sellers. Ou mesmo as
biografias que vendem e muito de certos artistas. O pintor anão impressionista,
Toulouse Lautrec e suas prostitutas. Kerouac escreveu um livro sobre uma puta,
o Tristessa. Mesmo os michês de Burroughs. As muitas putas do Bukowski. Encarar
todas é um lance meio prostituta; é um lance adolescente; é um lance de
drogado. Tudo muito próximo. E rende boas histórias. As de final feliz, as
pessoas já têm em novelas e filmes ruins. Uma hora vão querer algo diferente.
Daí entra essa tradição. Eu morava perto dum pico de michês. Passava sempre
ali, às vezes de madrugada. Um dia parei e conversei com os caras. Uns caras
novos. Uns mais fortes. Outros magros. Conversaram comigo na boa. Não notei
diferença entre eles e outros jovens. Outra vez, pequei uma puta e dei carona. Mina
jovem, bonitinha. Levei ela até uma cidade próxima de Porto Alegre. Eu tinha
uns vinte. Ela um pouco mais jovem. Era de manhã. A gente tava numa estrada
cheia de carros. Meti meu pau pra fora. Ela ficou acariciando. Tudo muito na
boa. Uma garota que eu tivesse ficado na noite... bem, não ia fazer isso no
meio de uma estrada. E passava uns ônibus. Bem, rendeu uma história. Também,
uma putas eu levava pro meu primeiro ap. Eu bem jovem. Sem nada na cabeça. Só
que como eu disse, o jovem tem algo de prostituta: topar todas. Eu tratava elas
como igual. Acho que elas não beijavam os caras, mas comigo tudo bem. Algumas
vezes, eu nem precisei pagar. E bem... eu não era paternalista. Não era
moralista. Só um cara jovem. Curtindo. Pegava gatinha na noite. Só que às vezes
só pra curtir algo diferente. Hoje a adolescência distante... acho meio imoral e
desnecessário pagar uma transa. Com meu corpo em risco, e com uma moral adulta
meio consolidada... Claro que se tivesse grana pra comer uma dessas gostosas da
TV. Isso seria diferente.
Filmes
japoneses
Tava na internet, vadiando. Vocês sabem, sem nada pra fazer, um link manda
pra outro e tal. Chego num fórum. Ali tem um link, com a chamada: filme real de
estupro. Lembrei que quando era jovem, tinha ouvido falar em filmes snuffs. Uma
época tinha toda uma conversa sobre, em filmes, revistas, até em quadrinhos. Snuffs
são filmes de mortes reais. Tinha algumas séries nos anos 90 de coisas
parecidas. Os caras juntavam imagens de acidentes reais. Uma delas era a Faces
da Morte. Era meio poser. O cara que apresentava era um cabeludo, metaleiro,
com a voz meio gutural. No fundo das cenas som de bandas de metal extremo. Ok,
daí, abri o link do “filme real de estupro”. Bem, foi um erro. Me senti um lixo. Acho que
as imagens eram reais mesmo. Não tinha como ser encenação. Porque envolvia uma
garota duns 13 ou 14 anos, feinha, gordinha. O filme é japonês. Primeira
imagem: um vestiário feminino, do que se diz ser de uma casa de massagem. Essas
massagens normais. Uma câmera mostra o vestiário. Mulheres trocam de roupa.
Colocam toalhas, já que vão pra massagem. Aí pula pra outra cena. Uma mulher de
uns 40 anos e essa garota gordinha. Na legenda do filme diz: estupro de mãe e
filha. Elas tão sendo massageadas por dois japas. Costas à mostra, toalhas
tapando as partes íntimas. Uma hora, um dos caras começa a passar a mão na
mulher mais velha. Eles conversam, só que é em japonês. Parece que ela meio que
tenta se esquivar. A garota parece que não nota. Daí os dois tentam juntar as
macas das duas. E daí começa uma discussão da mais velha com eles. Só que ela
sempre meio passiva. Daí começa o hardcore. As duas são estupradas. Bem, é de
deixar mal... só alguém com uma mente... bem, isso tá na internet. Daí busquei
umas chamadas parecidas no google. E pelo que notei, deve ser uma prática comum
no Japão. Achei umas imagens de várias jovens chorando nuas. Japoneses sorrindo
e as estuprando. Sociedade machista que trata a mulher como lixo. Notei no
primeiro filme que a mulher mais velha, meio que tava aceitando a situação. De
repente, isso não era diferente da relação com o marido.
Monstros
Só que tem uma grande diferença entre os
caras que praticam estupro no Japão e os jovens que fazem merda em todo mundo.
A partir do senso comum dá pra dizer que são parecidos: são monstros. Só que
são monstros diferentes. Os caras do Japão são parecidos com: Hitler,
Mussolini, Pol Pot, os neonazi, as frentes nacionalistas, a TFP, os caras da
direita cristã, Bush, os serial killers. Os jovens são monstros de outro tipo;
eles agridem de outra forma a moral. Fazem tudo o que não se deve fazer. São ladrões,
drogados, michês, prostitutas, e tudo mais. São tudo isso, ao mesmo tempo. Não
são nada bem definido. Os caras mais velhos chamam eles de adolescentes. Como
se isso explicasse tudo. Pais, os professores, os educadores, os psicólogos
fazem de tudo pra entender eles. E não entendem. Monstros já que não podem ser
rotulados nem detidos. Um serial killer é fácil de identificar; mas e os monstrinhos?
Os pais, o professor, o psicólogo não sabem nada da vida deles. Eles sabem
fazer merda no escuro. Não sei como; eles fazem muito barulho. E papai e mamãe são
cegos. Os meus amigos escondiam colírio, drogas... só que chegavam pra lá de
chapados e falavam com os pais. Isso que é a bandeira, não o colírio. E os pais
não notavam. De repente, notavam... falava com um cara mais velho quando
adolescente: é os velhos sabem, e sabem que a gente sabe que eles sabem, todo mundo
sabe, e tá limpo. Será? Uma história de quadrinhos, do Jaime Martin. O cara é
um dos bons cartunistas adultos underground da Espanha. Na história: o
personagem principal, de uns 12 anos, chega muito chapado de tudo em casa.
Entra correndo no banheiro e vomita. A mãe pergunta: o que você tem? Ele diz:
tomei dois chopes. Pra vomitar o cara precisa duns 20 chopes. A cara dele tava
acabada de muita coisa. Só que a mãe diz: filho, eu não quero mais que você
beba chopes, faz mal. Jaime Martin é meio forçado. Suas histórias sempre têm
finais tristes. Só que essa imagem é mais real impossível. Os velhos não
entendem. Não sei como; porra, não passaram pelo mesmo, ou algo parecido? Foram
jovens, não? Esqueceram? Ficaram cegos? Na real, não entendem. E na real, os
monstros são aqueles que querem acabar com o mundo, só que pra construir um
mundo melhor, os Occupy. É importante pensar na monstruosidade jovem; como ela
se relaciona com a monstruosidade revolucionária; juntar as forças ou aprender,
mesmo com as merdas dos jovens.
Usos
da cidade
Os filmes do Larry Clark sempre têm skatistas.
Tem um filme ruim dele, com esse tema, o Wassup Rockers. É um bom filme, só que
do Larry Clark, esperava mais. Parece que ele repete fórmulas. Imita a si
mesmo. Coisas que deveriam ser naturais, como registros documentais de histórias
de vida, nesse filme, soam mal. Só que o tema é legal: jovens rockeiros skatistas,
norte americanos, filhos de imigrantes mexicanos. Os caras passam um dia curtindo
a cidade. Curtindo a arquitetura da forma que um skatista pode curtir. Forma
diferente. Os caras do skate, mais os caras do roller, bike, do le parkour, eles
usam a cidade de um jeito diferente. Olha só: tem uma praça, o chão é liso. Na
praça tem um banco e uma escadaria, como a Praça da Matriz, central em Porto Alegre.
A praça das manifestações políticas na cidade. A praça que os Okupa de Porto
Alegre tomaram por quatro meses. Essa praça é referência pra turma do skate, acho
que desde fins dos 80. Nas praças as pessoas sentam nos bancos, sentam na
escada, caminham no piso. Os skatistas pulam no banco, pulam a escada e correm
no piso. Uma parede que não serve pra nada, vira um obstáculo. Eles sobem na
parede vertical como se fosse o piso horizontal. Mais, daí tem os manos que
fazem pichação, ou grafite. Eles pegam a parede e pintam. Tudo meio legal e
meio ilegal. Pixar não pode. Andar de skate em certos lugares... o cara não é
preso, mas se o pessoal reclamar pra polícia, eles tem que sair. Outra coisa
legal: andar bem de skate não significa ser um atleta. O cara anda bem, tem um
certo nome entre os manos. Só que esse cara não anda bem pra correr
campeonatos. Só quer andar bem pra fazer suas manobras. Não tá nem aí pra
competição. Os caras que não jogam nada futebol, basquete, e etc, os caras tão
sempre competindo. Dois times. O que vale é vencer. O skatista faz a manobra;
legal se a gatinha ou o mano verem, mas faz mais pra ele. O Marcelo D2 que
dizia: puta sensação que é, dar um ollie (manobra básica com variações). Daí o
cara passa a tarde numa calçada fazendo manobra. Ninguém vê, mas ele se sente
bem. Não tem como jogar futebol sozinho, vôlei; basquete é um saco ficar
treinando sozinho. Pratiquei esses esportes. Tudo feito num quadrado, às vezes,
pequeno. No skate o que importa é cidade. A cidade é o território. Uma cidade
que se usa de forma diferente. A praia do surfista é algo sem graça comparada
com a cidade do skatista. Claro uma cidade grande, metropolitana, com bastante
asfalto, chão liso. Dói mais cair no chão do que no gramado. Só que no basquete
e futebol de salão, o cara não se machuca tanto quanto no skate. Pular uma escada
de dez degraus. O cara vai cair certo. Uma hora nem mais dói. Fiz basquete e
futebol por anos, me machuquei pouco. Acho que as machucadas de futebol foram
propositais, como tostão, uma joelhada na coxa. De skate quebrei a perna uma
dezena de vezes. Acabei com meu queixo. E parei exatamente quando começou a
doer as quedas. Por isso, que nos filmes do Larry Clark, tem skate e violência
misturados. São coisas próximas. Os maninhos do skate têm o corpo duro. De
pedra. Por isso que tem a ligação com o rap, com o hip hop, com a pixação. Os
caras são meio blacks. São fodas. Iggy Pop tava doidaço de heroína. Mal parava
em pé. Todo mundo tava puto com ele: “pô, o Iggy só queima o filme”. Era a fase
decadente. Foi descer uma escada. Caiu. Escada enorme. O pessoal disse: o cara
morreu. Daí ele se levanta e continua caminhando. Isso é skate. Por isso, que o
skate no Brasil nos 80 era coisa de punk. Skate é punk, é o pogo. Dançar na
pista chutando todo mundo.
Gatinha
1
Pô, gatinha. Hoje quando chamam você de
gatinha, são esses merdinhas que tão a fim duma mina mais velha e gata. Só que pra
eles, na real, gatinhas são aquelas que eu chamo de crianças. Você era mulher, onze,
doze anos atrás. Daí eu tinha medo. Só que agora você é a gatinha. Gatinha, sou
eu que envelheço. Eu que fico velho, você sempre mais gatinha. E você fica puta
quando eu chamo essas menininhas de gatinhas. Mas entre nós é diferente. Você é
mais velha, sempre foi... só que quando você sorri; quando seus peitinhos
empinam; quando você fala; e você dança quando fala; e quando você caminha e
rebola as coxinhas e a bundinha. Mina, você
é a gatinha, demais. É, você diz: mas você chama todas as vadias de gatinha, eu
sou o que então? Você é essas coxas delicadas, mas fortes em mim. Essa boca que
sabe muito bem o que quer. Daí fico aqui esperando, envelhecendo em uma madeira
meio nobre. Só que a gente quer. Você quer. Eu quero. E a gente se encontra. Então,
antes que a gente morra. Antes que ele volte. Ou que ele apareça. Ou antes que a dança vire um bocejo. Antes que a gente vire
o que não devemos. Seja minha gatinha. Vai deixar essas crianças terem o que seu?
Meu corpo. Deixa assim, mas não comigo. Comigo não vai ser assim. As suas
pernas viraram história. As minhas são mais fortes. Isso é bom pra nós. Sem complicação.
No gelo você sabe muito bem se virar. Dança bem com o seu terninho de couro.
Sabe muito. Só que quando você sorri e geme, meu bem, a gente tá jogando o
mesmo jogo. É só deixar de imitar aquele tipo de gatinha. Você sabe mais. Posso
tratar você daquele jeito. Você deixa, mas se sente mal. Então, vamos fazer
direito. Como deve ser feito. A gente não vai casar. Não vai ter filhos. Vai
curtir. E só. Fecha as pernas, meu bem. Mas fecha com o meu dentro. Me machuca
que eu machuco, e isso é bom. Como você sabe fazer. E eu faço em você.
Festa
no centro
Pegava metrô direto pras cidades vizinhas
de Porto Alegre. Ia pra Canoas, Esteio, São Leopoldo, Novo Hamburgo, quando
tinha entre 13 e 20. Muitos amigos viviam nessas cidades. Um dia tava no metro. Tava voltando dum
campeonato de skate. Era quase meia noite. Aparece um mano. Conhecia meio mal o
cara. Só que a gente começou a conversar. O cara disse que tinha brigado com a
mina. O cara era mais velho. Tinha brigado com a mina e tinha recebido a grana
do trampo. Aproveitei a situação: mano, baixa uma ceva. A gente foi num bar bem
no centro. Uma ceva virou umas dez das grandes. O mano tava bebendo feito água.
Eu seguindo a onda. Eu morava na zona sul. Saía só nos picos rock de gente
branca. Esse mano era negro. Daí ele disse: vamos num pico que tem som e umas
gatinhas. Era também no centro, do lado do Mercado Público. O dia era um
domingo. Eu disse, vamos, já que ele tava baixando a festa. O pico era só um
salão com um bar. Nada demais. Só que o público era bem diferente do que eu
tava acostumado. Metade brancos metade negros. E a aparência física das minas era...
elas eram todas meio gordas. O som que
tava tocando era música regional. O pessoal dançava abraçado. O mano tava
doido. Começou a pegar as minas. O cara pegou uma cinco em pouco tempo, umas
feiosas. Daí meio que entrei na onda. Tava dançando com uma mina muito feia.
Conversando com ela. Daí ela disse que no bar as minas eram todas prostitutas.
Só que tavam ali curtindo a noite. Eu pensei: putz... as putas mais caídas da
cidade. Daí o mano meio que se grudou numa feinha e ela nos convidou pra ir pra
outro pico. No centrão, o mano encarou uns caras. Pediu pó. Os caras venderam.
A gente deu uns tecos na rua. Quando dei a aspirada no lance... porra meu, deu
um baque. Eu puxei o pó e cuspi. O cara tinha vendido uma merda. Fiquei com
medo. O mano nem aí, continuou cheirando. Daí a gente foi pros bares da parte
alta do centro, do lado da Santa Casa, um hospital. O som no pico, mais eletrônico,
só que brega. Tinha um grupo de minas. Umas bonitas. Cheguei nelas, eram tudo
lésbicas. Daí o mano apagou. Dormiu no bar. Eu peguei uma grana no bolso dele
pra pagar o bus. Caí fora. Nunca mais vi o cara.
Pobreza
Tava meio que namorando essa mina. Era
bonitinha. Cabelo loiro, olhos verdes, pele meio bronzeada. Era gatinha. Ela era
duma cidade do interior, da serra. Vinha pra Porto pra gente se pegar. A gente
transava direto. Era bom. Bem, ela tinha a buceta meio larga. Mas tudo bem. A
gente trepava e um dia eu tirei o preservativo. Gozei dentro. Na hora que gozei
me deu pânico: tô fodido. Só que passou. E a gente transava na boa. Primeira
transa nossa, a gente tava com uma turma. A gente chegou na casa dum parceiro.
Todo mundo foi dormir. Ela disse que ia tomar um banho. Eu abri a porta. Ela
tava tomando banho. Eu entrei. Tomei banho com ela. A gente foi pra cama. Foi
legal. Daí ela pintava aqui em casa. Eu dizia que tava apaixonado. Só que tava
apaixonado por outras também. E ela meio que deixava assim. Daí eu comecei a
namorar outra mina. E a mina da serra desapareceu. Um dia eu tava numas... bem,
queria festa. Queria dar uma corneadinha na namorada atual; daí liguei pra mina
da serra. Fui pro interior ficar com ela. A gente tomou várias. A mina era boa de
copo. Ela me convidou pra ficar na casa dela. Uma casa velha de madeira. Por
dentro tudo em cacos. A mãe dela, a mina tinha me dito que era alcoólatra. Eu
não sabia o significado da palavra. Dormi com ela num puxado atrás da casa.
Acordei de madrugada. Fui tomar água. Vi que tinha na mesa da cozinha uma garrafa
de um litro de cachaça cheia. Olhei e fiquei meio assim. De manhã, acordei com
a mãe da mina mexendo na minha mochila. Pensei: qual é? Me levantei um pouco
depois quando a mãe saiu. A mina ainda tava dormindo. Fui na cozinha e a
garrafa de canha tava vazia. Foi a coisa mais extraordinária que já tinha
visto. A velha matou a garrafa de canha na manhã mesmo.
Traficantes
Era novo, tava começando a fumar um. Gostava
do lance. Problema era conseguir. A gente não subia morro. Conhecia pouca gente
que vendia. Daí um mano disse que um cara vendia fumo. A casa dele era bem
perto da minha. Numa rua movimentada. Uma cerca de compensado na frente,
guardando um terreno bem jogado, e uma casinha de madeira. Fui lá na cara dura.
Atraquei o cara. Me vende um fumo ae! O cara ficou meio puto. Porra, um moleque
queimando o filme. Só que o cara queria grana e vendeu. Comecei a ir com certa
frequência. Só que uma hora ia direto, e fumava até de graça. O cara era alto e
muito magro. Com barba. Tinha uns 35 anos. Só que bem envelhecido. A mina dele
era acabada. Era loira, tinha olhos claros, já tinha sido bonita. Só que agora,
a mina tava acabada, meio careca até. O cara tinha três filhos. Entre três e oito
anos. Crianças bonitas, mas tudo bem magras. Uma era uma mina, duns cinco anos.
A cara da mãe, bonitinha, um amor, mas esquelética. O cara não trampava. Ele vendia
fumo e era viciado em pó na veia. Vivia ali no barraco de favor. Um dia cheguei
na baia dele. Pedi fumo. O cara tava desesperado. Disse pra mim: “cara, não tem
comida na baia faz uma cara. Tá todo mundo morrendo de fome aqui.” Olha só, eu
tinha 14 anos. Não tinha nada na cabeça. Fiquei puto, não tinha fumo. E só. Podia
ter ido em casa pegar umas latas de rango e ter dado pra eles. Só que peguei
minha grana e fui buscar fumo em outro lugar.
Demônio e revolução
Um cara chegou uma vez e disse: cheirei pó
e tudo ficou de cabeça pra baixo, o demônio tava me chamando. A fórmula de
física, ou matemática, sei lá: deus vê tudo e o diabo vê tudo virado. Quando o
cara tá louco dizem: tá com o demônio no corpo. O cara louco fica com a cabeça
virada. O símbolo anticristo é a cruz virada. O nome do demo é o nome de deus
virado: Dog - god. E revolução é isso. Quando tudo vira. Quando tudo muda. O
carnaval é assim em alguns lugares. Troca de papéis como forma de resistência a
partir do riso. Deus está em cima, os caras de cima mandam. O diabo está em
baixo; os caras de baixo que lutam. A revolução é deles. Eles são os demônios
pros capitalistas. São os demos pros caras que ovacionam a democracia. São os
demos pra moral dominante. Por isso todos têm medo deles.
Experimentação
da marginalidade
Acho que é melhor falar na marginalidade
como um todo. Não pensar só em coisas específicas. Tudo se liga. A prostituta
se droga e rouba. O drogado faz michê e rouba. E por aí vai. Daí tem essas
crianças. Eles têm entre 12 e 17 anos. São amparados pela lei. Os de classe média
por papai. Daí eles fazem o que querem. Não vão ser presos. Eles não são
drogados, michês, putas, ladrões profissionais. Só que eles fazem isso tudo, e parte
por curtição. Depois ficam adultos e a coisa muda. A maioria não se torna
viciado, muito menos ladrão e profissional do corpo. Pra mim, isso é uma das
riquezas da juventude: experimentar a marginalidade, de um jeito espontâneo e
sem paranoias. E mais importante: quando adultos, têm a possibilidade de
experimentar algo que tava presente na adolescência. Não sendo marginal, mas algo
ligado ao marginal, um marginal possível. Pode ser na escrita, na arte. Na
relação com a esposa ou marido. Na relação com o filho. Na relação com os
alunos. No trabalho, com o patrão ou empregado. Na vida, na relação com a vida.
Pode ser até nos pensamentos. Manter o coração com o jovem, o marginal, não como
um lance paternalista. Ser parceiro de sua própria adolescência.
Moda
Você encontra muitos adolescentes de
classe média ligados a subculturas. Um lance legal dessas culturas é a relação
com a moda. Cada estilo com suas roupas. Punks com roupas sujas, rasgadas e
cheias de adereços e escritos. Metaleiro: calça preta e camiseta de banda. Góticos:
coturno e o resto preto. Black metal é uma mistura de gótico com metaleiro.
Hippies: calça jeans desbotada, camiseta colorida e all star; ou bermuda e
sandália. Os mods com roupas vintage. Indies
de franginha. Interessante que eles não compram roupas em shopping pra compor o
estilo. Até são contra roupas de marca, coisa de mauricinho. Os skatistas,
surfistas, rappers, os clubbers, daí a coisa é diferente. Essas subculturas
foram recuperadas pelo mercado. Usam roupas de marcas. Bem, mas fico com
aqueles avessos ao shopping. Talvez esses estilos, tipo punk, metal, hippie,
etc, sejam mais presentes em gente da classe média branca baixa. Só que têm muitos
que são da classe média. Essa relação com estilo, modas, pra mim faz parte da experimentação
da pobreza dos jovens. Roupa é um lance interessante. Depois da casa, do carro,
vem as roupas como símbolo de status. Você anda com o carro mais caro, marca
sua posição. Sai do carro, entra no shopping, daí as roupas dizem quem você é.
Só que um cara pobre pode economizar a grana do mês e comprar roupas de uma
outra classe. Pode fingir ser mais rico do que é. Tinha amigos de classe média
baixa ou pobres quando novo. Eles trabalhavam como office boys. Eles se vestiam
muito bem, usavam o salário pra isso. Outra coisa, os caras que não trabalham,
mas assaltam, pra ter os panos da moda. Só que o interessante é essa gente da
classe média das subculturas que se vestem com roupas baratas. Isso é
importante pra eles. Um mano falou que numa cidade do interior quase todos os
jovens da classe média eram hippies. Era uma cidade universitária. Usavam
calças rasgadas e camisetas lisas. Um visual meio mendigo. Ele disse que a mãe
dele pegou suas calças. Elas imundas. Ele tinha posto elas na qboa pra perder
cor. O tecido ficou frágil. A calça toda rasgada. A mãe pegou pra usar como
pano de chão. Ele a pegou de volta e continuou usando. Acho que esses tão mais
perto da revolução. Bem pouco, mas tão mais perto do que os jovens que tão
sempre no shopping.
Otimista
quanto aos jovens?
Parece que estou fazendo apologia ao lixo.
Ou vendo só lados positivos. Todo o lixo da adolescência a gente conhece, e
bem. Faz parte do discurso dominante. A gente vê isso na TV, lê sobre no jornal
e em revistas. O lixo dominante são as nóias, as crises, os conflitos entre
gerações, droga como culpa, sexo como culpa, e por aí vai. O lance que trato
aqui é o adolescente fazer a experimentação sem virar um pária. E isso pode ser
sem drogas. Só que pouco é possível pra eles. Sobre a vida adulta, trato na
pesquisa acadêmica: política, filosofia, arte, campo do saber. Restou isso, os
jovens. Por isso, trato aqui. São
prisioneiros. Pensam neles como se fossem idiotas. Não têm movimentos políticos
pró-adolescência produzidos pelos adolescentes com demandas reais. Nem sei se
precisa ter. Como minoria são representados por gente como pais, psicólogos,
policiais, gente da saúde, políticos. A maioria dos marginalizados se
representam a si mesmos. Já os jovens, tão perdidos por aí. Tentando fugir, com
poucas armas, ou desarmados. Também só falo nos jovens de classe média. Melhor,
falo mais neles. Isso à primeira vista. Falo não em classe, mas naquilo que atravessa
as classes. Não importa as classes, mas a experimentação.
Saló
do Pasolini
Um grupo de adultos representantes do
poder. São o poder. Eles raptam jovens do povo. Impõem a eles todo o tipo de
perversão sexual. Tudo apresentado em ciclos: de merda, sangue, etc. Simulam um
casamento de dois jovens. Na hora da consumação, curram os dois. Uma garota que
tenta se matar é impedida. Após, vai sofrer as piores torturas. Uma linda
gatinha é obrigada a comer fezes. Festa do poder. Eles fazem o que querem.
Alguns jovens aceitam. Não podem fazer nada. Tão fodidos. Pra que lutar?
Interessante que não há conflito. O poder é absoluto. Não há lugar pra fugir. O
que resta é um pouco de união, de camaradagem, de parceria, que é sufocada. Só
que mesmo entre os que são tratados como animais, os governados, há os X9s.
Aqueles que amam sofrer o poder. O modelo perfeito do masoquista, melhor, do
bom cidadão.
La Edad de Oro e Genesis P Orridge
Programa dos anos 80 duma TV espanhola.
Tem arquivos bem completos no site da emissora. Pacotes com os melhores
programas. Na maior parte, é música. Shows e entrevistas com as melhores bandas
dos 80 e 70. Nick Cave, Lords of New Church, Psychedelic Furs, Smiths, The
Sound, Kiling Joke e por aí vai. Tem uma parte brega, com bandas dos 80 com um
som que não vingou. Também apresenta documentários sobre artistas visuais e
filmes curtos. O melhor pacote da série é o de número seis. Nele, de bandas: Psych
Tv; vídeos: Derek Jarman; artistas visuais: Vagina Dentata, Mapplethorpe; performance:
La Fura dels Baus. Este último, aparece no início da carreira. Hoje é um grande
grupo de teatro. Veio ao Brasil algumas vezes. Eu vi uma peça deles em Barcelona.
Uma peça secundária, em catalão. Achei chato. Muito texto. Muito drama. Não era
o que queria ver. Só que valeu a pena. Derek Jarman é um cineasta inglês
marginal. Trabalhou com vídeos também. Temática do sexo homossexual muito
presente. Tem um filme sobre o pintor Caravaggio, com muito sexo. Vagina Dentata
é uma performance do Jordi Walls, artista espanhol. No programa ele esfaqueia
quadros que estão em uma parede. Um órgão faz sons estranhos. Cães estão presos
em coleiras. Uivam. O melhor: Psych Tv. Som industrial, vídeos e a performance
do Genesis P Orridge. O cara participou
de vários grupos de pós-arte desde os 70. A banda antes era mais de performance.
Na época tava centrada em música. O cara faz uma boa interação com o público. Depois
que vi o programa busquei informação sobre ele. Tem um projeto de body art.
Acho que pode ser chamado de arte existencial. Usa não só o corpo como campo de
experimentação, mas também a existência. Fez várias cirurgias plásticas para
deixar o corpo feminino. Veste roupas de mulher. Age como uma mulher. Na vidinha
isso é comum. Os travestis e trans fazem isso. Tinha um trans no último big
brother. Até bonito. Não que sejam incluídos. Só que não é tão marginal como
era. Só que na arte, fazer isso na arte... isso é diferente.
Sadomasoquismo
Os Acionistas de Viena filmavam imagens de
mutilação do corpo. Um coletivo de pós-arte dos 70. Nada muito extremo. Queimar
a glande do pênis e rir. Coisas do tipo. Suspensão é um lance que fiquei sabendo nos
anos 90. Implantam argolas no corpo. Prendem as argolas em correntes postas no
teto. Daí o cara é suspenso. Pode ser na pele das costas, pernas, mas corre o
risco de a romper. Algo mais raro. Quando fiz minhas primeiras tatuagens meus
pais odiaram. Só que na época já era moda. Hoje mais que comum. Donas de casa
com tatuagens. E quando donas de casa fazem algumas coisas, deve estar
acontecendo outras mais interessantes. Tatuagem, piercing tão ligados à
suspensão. São coisas da mesma onda. E o pessoal do S&M... bem, meio que
precursor. Couro preto, correntes, coleiras, cortes, sangue, violência. Corpo
como experimentação.
Fuga
pro oeste
Lembro da fórmula duns caras: numa guerra,
se endurecem as coisas no leste e no oeste, ou no norte, a galera faz a festa
no sul. Sempre dá pra fugir. Sempre se foge. Tem uns caras que não param de
sair de clínicas de reabilitação. Não param de ser presos por porte de drogas.
Acho que não adianta, o cara vai seguir resistindo, até a morte. Mais da metade
de uma vida na cadeia, vale a pena. Claro que se o resto da vida tenha sido
prazeroso. E prazer muitas vezes tá na marginalidade. O aluno naquele filminho
dos anos 80, o Clube dos Cinco. Ele fala uma palavra pro diretor, como:
dane-se. Cada vez que repete, ganha um dia de detenção. Só que ele continua
falando: dane-se; e o diretor: mais uma detenção. Por alguns segundos de
rebeldia, o cara dá um dia inteiro, um sábado, o dia mais importante da semana.
A galera continua indo pra rua, e são presos. Nos movimentos por outra
globalização, no início do século, tinha grupos que encaravam fazer coisas só
para serem presos. Desviavam a atenção da polícia, cometendo atos ilícitos.
Negri, o maior pensador contemporâneo, por uma postura ética, ele voltou pra
Itália pra ser preso. Um gesto, uma atitude, por isso ele ficou 10 anos em cana.
Fora todas as lutas contra as ditaduras. Os caras estavam preparados pra
morrer. Ser preso e torturado era uma questão de tempo. Daí podem dizer: ah,
eles queriam se foder. “O drogado quer alguém que o pare, o tranque.” Acho que
ele faz de tudo pra ter aquele momento. O momento da resistência, seja qual for
o preço. Fechar alguém, todas as saídas. Isso não existe.
Sala
de aula
Uma coisa que me parece absurda, extrema:
ficar duas horas sentado em uma aula de matemática do segundo grau ou primeiro.
Melhor, ficar em uma sala de aula, a maior parte do tempo sentado, em qualquer
matéria do primeiro ou segundo grau. E eles ficam durante dez anos nessa. No
mestrado e doutorado a coisa é diferente. As disciplinas têm ligação com o que
a gente estuda. Mas sou o que mais sai em sala de aula. Vou ao banheiro. Busco
água. Fumo cigarros. Faço isso por um motivo: pra mim, aula não funciona. Dois
extremos: colégio e pós-graduação, e ambos não funcionam. Sobre a graduação, todos
entram felizes na universidade. Daí tão na maior boa vontade. E o lance é diferente
mesmo do colégio, mais flexível. Você faz quase tudo o que quer. Dentro do
possível. Sair da aula. Ir até o mato, até o bar. Entra a hora que quer. Tem
professor que não faz chamada. Tudo mais leve. Só que e daí, tá todo mundo
interessado? Como deixar todos interessados, melhor, a maioria. Impossível. Só
que o pessoal da faculdade, esse são mais velhos. Esses tem autonomia,
trabalham, pensam melhor. O pai não fica mais em cima. Ganharam privilégios. E
os adolescentes? Esses que me preocupam. O colégio é mais rígido, o pai é mais
rígido, só o Estado é menos, em parte. Eles não podem beber, fumar, entrar em
festas. Claro que têm a tarde livre. Estudam menos que o cara da universidade. Só
que com a cabecinha deles, vão fazer o que além de se detonar? Eles podem ler,
podem participar do grêmio do colégio... e o que mais? Sobre a leitura, vai
demorar um tempo até ficarem por dentro do que leem. E mesmo se escreverem
algo, ou se fizerem política, eles são adolescentes. Ninguém tá aí. Aquele
lance dos “caras pintadas”. Era um lance macropolítico. Não era sobre a
escravidão dos adolescentes. Quando eles saem organizados pra rua é contra
outra coisa. Só que a gente vê eles na Rua Lima e Silva, em Porto Alegre, nos
domingos. Ficam na frente dum supermercado; tomam vinho barato. Todos se
detonam. Os adultos odeiam quando eles fazem isso. Odeiam por qual motivo?
Quando eles tão se detonando estão fazendo sua representação, lutando por um
pouco de autonomia.
Gatinha
2
Não precisou de muito. Muito a gente já
tinha. Só que a gente deixa rolar. Isso é bom. E fica rolando. Daí, uma hora
pinta. Bom que pintou. Não que fosse a hora certa. Só que tava um clima legal. Daí,
você mostrou seu corpo, que eu já conhecia. Me deu o que eu queria. Daí, muito
bom o que você sabe fazer. E não foi o fim do mundo. Mas foi bastante. Bastante
gostoso o que você sabe fazer. E sabe muito bem o que eu quero e gosto. E não é
muito. Sem exageros. Sem muita história. Não estamos na frente do vídeo. Nem
estamos competindo. Quem sai vencedor, é outra história. Ele e ela que se
fodam; eles perdem. Só que quando rola, e tá rolando e vai continuar... somos nós
e pode ser três ou quatro, depende do clima. Ou muitos, depende de nós. E quando chamo você de gatinha ou baby... bem,
baby gatinha, o lance é que você tem que saber que isso tá saindo da minha
boca. E tô sempre numas de dar novos significados pras coisas. E meio que trabalho
com palavras. Só que o mais importante é meu tronco forte, minhas pernas fortes.
Tudo isso acho que tá em jogo. Você não precisa fazer muito. Já que a neurose parece
que... você deixa em casa. E você sabe que isso faz com que eu saia correndo. E
acho que... você quer que eu esteja perto. Então, baby gatinha, tô aqui. Tô por
aí. Fácil me encontrar. Encontros dos bons. Sem exageros. Sem muita arte
marcial verbal; já física, depende da lua. Bom quando a gente nem nota que tá
subindo as paredes. Só vê isso depois, porque tá bom demais. Bom assim. E acho
que isso vale mais que um diário de bordo. Aqui só umas palavras, pra lembrar o
que tá rolando. Acho o surf um esporte legal. Rola uma onda, encaixa legal,
depois flui na boa. Bom a quebradinha na espuma. A machucadinha na areia. Ralar
um pouquinho os joelhos. Você queimadinha de sol, com a pele num bronze e não
mais branquinha.
gatinha 3
Gatinha, sou todo teu pra sempre. Amo você
gata, muito. E você é gata demais. Linda. Toca aqui no meu peito. Olha só, bate por você
bem forte. Ele tá forte por você. Muito forte e vivo só pra você. E só pra você;
pra você pra sempre. E você sabe que é verdade. Pra sempre. Tipo hoje é sábado.
Pra sempre, até terça. O meu coração forte pra sempre. Forte pra você pra
sempre. Desde hoje pra sempre. Desde sábado até terça. E isso é muito. Você
sabe, baby, é muito. É o máximo que se pode ter. O coração que pulsa forte.
Pulsa muito. Só pra você gata. Sabe disso. A sua boca faz coisas maravilhosas.
Sua saliva é um drink dos bons. E isso misturado com seu sorriso. Com seu
cheiro. E não para por aí. Isso que importa... a forma como você dança. E como você
dança. Você dança como ninguém. Tudo compondo um lance que me faz ficar muito
apaixonado por você. Pra sempre, meu bem... até terça. E sei que estou sendo sincero
demais. Eu estou sendo demais. É muito pra mim. O suficiente. Paixão total. E
quando você dança seus olhos aparecem e desaparecem entre seus cabelos. E muita
coisa que era pra ser importante, não é mais. Não quero saber sua idade. Nome
não importa; você é a gatinha, minha deusa. Porque eu sei muito de você quando você
fala, sorri, beija e dança. E como você dança gatinha. Dança que vai ficar
muito bem guardada. Você vai ficar muito bem guardada. Lá em casa pra sempre.
Eternamente. Até terça. Não quero ver você na ressaca do dia seguinte. Neurose
não combina com a gente. E não precisa. Depois a gente pega outro sábado e faz
tudo de novo. Mesmo que você, daí já seja outra. Mas vai ser tão bom quanto. As
ondas batem. Cada uma diferente. Ainda mais se for um dia, uma festa, uma
cidade, um país diferente. Tudo tão diferente. Só que tão bom quanto. Porque eu
atravesso a cidade. Eu abro a porta. Só pra ver você dançar. Porque você é gata
demais. E se isso não diz muito na boca de “gatinhos”... bem, eu não um
gatinho. Nasci na selva. Devo ser filho de lobos. Algum felino ou canino
selvagem. Então gatinha me lembra algo.... você sabe; se não
sabe, deixa que eu mostro pra você.
Gatinhas
Meu bem, eu posso ser o que você quiser, e
não vou ser falso. Teatro não é falsidade. É uma coisa legal da vida. Tem gente
que até paga pra ver um teatro. Faço pra você de graça. Não tá bom? Você quer
uma peça especial pra você? Você quer aquele lance que tanto quer? Tanto assim?
Então, deixa assim. Sei bem que o problema é que você não sabe o
que quer. Daí vira qualquer coisa. Você sai correndo do meu ap pra me ver. Estranho,
não? Depois ligo, você não atende. Pô baby, teatro é um lance, mas drama
psicológico... Você menstruadinha? O lance baby, deixa que eu faço o que tem
que ser feito. Eu faço a história. Deixa eu fazer uma história. Um pouco mais
do que isso, já que o corpo tá envolvido. Deixa que eu armo tudo. Deixa eu
guiar. E não estou sendo o macho que guia. O braço forte. Meu braço é forte, sim,
naturalmente. Posso alcançar o céu com esses braços fortes. Então deixa, baby.
Sem onda. Sem neurose. Eu sei o que você quer. Está aqui nas minhas mãos. Estou
olhando agora de frente pro que você quer. Deixa de frescura. Não precisa me
chamar de tio, mesmo eu conhecendo bem sua mãe. E mesmo que seu pai tenha medo
de mim. E bem, meu bem. Deixa de ser... melhor, deixa que seja. Sem onda.
Gírias
drogadas
Muitas gírias se referem a coisas ligadas
a drogas, ao uso, ao usuário. Segue uma lista. Massa: uma coisa legal. Massa é a maconha da boa. Palha, uma coisa ruim. Palha é maconha
fraca. Fraca como uma palha. Na loucura, doido, são palavras dúbias. Podem se referir a um cara do tipo sem
noção, um bobão, ou um cara legal que faz merdas que não sujam. Sujeira e limpeza: sujeira com os
canas, com os pais, com os amigos. O cara que tá com o filme queimado. Limpeza,
um cara tranquilo, um lance que pode ser feito sem problema. Nóia é um cara meio sujeira. Que viaja.
Viagem: lance também bom e ruim. O
cara é uma viagem, é uma figura, é massa. Ou é um viajão, o cara tá fora da casinha.
Tipo o cara que pirou da bola. Na antiga, todo mundo falava de artane: uma bola,
remédio, que levava o cara à loucura, uma sujeira. Da boa: maconha forte. Fazer
a mão: comprar droga. Fazer algum lance, uma história. “Faz a mão então,
busca as biras. Dá um jeito”. Frito:
o cara que fritou do pó. A ressaca do pó. Que
coisa: redução de coisa boa. Droga boa. “Essa é da boa”. Tá ligado: o cara é ligado, antenado. O
cara que saca das coisas. Quem tá ligado curtiu uns estimulantes. Desligado, largado: o cara chapado de
maconha. O cara que não tá nem aí pra nada. Furar a mão: o cara que não cumpre o que prometeu. “O cara disse
que ia estar com o fumo tal hora e não apareceu”. Alto, alturas: o cara que tá podendo; tomou algo bom. Cai da boca: o cara que tá na boca de
droga queimando o filme. Sai fora. Dá um
tempo: o cara que larga as drogas pra fazer a cabeça careta. Cabeça feita: um cara ligado, dos bons.
Careta: o que não se droga.
Careteou. O cara que deixou de fazer a mão. Roubada: ser passado pra trás. O cara compra droga malhada. Melado: alguma combinação não
realizada. Melou a história. Melado é o pó que fica no sol e vira uma pasta
grudada. O cara só pode por embaixo da língua, depois frita. Se queimar, queimou.
Queimar a cabeça: usar muita droga.
Parece que a cabeça, os neurônios tão queimando. Ficar burro: usar maconha. Não é só uma coisa ruim. O cara fuma e
fica burro, mas numa legal. Legal: inversão
de ilegal. O cara faz um lance ilegal, se droga, mas pros drogados isso é
legal. Ilegal pro Estado, legal pros manos. Mete a história: tipo: “faz a mão. Dá um jeito”. “Mete a história
rápido, a droga rápido. A polícia pode chegar”. Ou os pais. Cortar: misturar droga. Coca com farinha.
Cair a casa: dar tudo errado. Polícia
atracando o barraco. Enquadrar: sacanear.
Tirar. Ser preso pela polícia. Onda: curtir uma onda, fazer onda. Onda
da maconha. O cara viaja em alguma coisa. Fica uma hora divagando sobre algo
mínimo. Meio nóia. Dar um brilho: fazer
algo legal. O cara ligado de pó. Acabado:
cansado, falido. O cara que tomou todas, tá acabado. Se acabar: fazer as coisas ao extremo. Fez demais.
Akademia
Os caras da academia são bons; dizem que eles
são os melhores. Na minha experiência... bem, os caras do mestrado não são os
caras da graduação. Na graduação, eu conhecia uns caras que faziam pesquisa, e
os caras eram muito inteligentes. Comparando comigo e com os outros. Os caras
do doutorado, tão muito na frente dos caras do mestrado. Daí, tem os
professores de PPG, esses são ídolos. Inteligência em PPG é o que não falta.
Transborda. Só que bem, todo mundo sabe isso, e não vou ficar falando o que
todo mundo sabe. Umas coisas me incomodam. Mestres agindo como bons alunos de graduação.
Pela lógica, foram os melhores alunos, o problema é que às vezes eles esquecem
que estão em outra situação. Permanecem assim os mesmos. Vão em todas as aulas;
ficam sentados a aula toda; fazem todo trabalho pedido. Mais, leem religiosamente
todos os textos. Fiz isso no mestrado. Tava numas de ser bom aluno. Um pouco
antes já tava nessa. Só que na graduação, bem, eu era da turma do fundo. Não
parava em aula. Muitas disciplinas, passei enrolando. Como já tinha uma
leitura, era mais fácil de enrolar. Fiz jornalismo, e as disciplinas de escrita
sempre me dei bem, rádio também, tirava notas altas. O resto, passava ali, era
muito malandro. Tinha parado de fumar maconha, mas era mais legal sair com os
manos pros matos da faculdade do que ficar em sala de aula. As aulas de teoria
me davam vontade de vomitar. Como disse, fui pra outro caminho no mestrado. Só
que agora, hoje, tô no meio. Só que um meio muito bem pensado. Um cara disse em
aula com orgulho no doutorado: “fiz um curso de ciências políticas com 13 anos.
Estudava muito no colégio.” Meio que fiz uma comparação: eu com essa idade
comecei a fumar maconha direto. Meu pai queria me matar porque eu fugia do
colégio pra andar de skate. Eu fazia colas imensas pra passar nas aulas de
matemática. Meus amigos eram todos losers. E foi assim por um bom tempo. Claro
que sempre dava uma parada nas drogas e daí dava uma de leitor. Lia boa
literatura, um pouco de filosofia maldita. Só acho que mais importante foi
minha caída na vida: drogas, putaria, rua, etc. Tudo que meu pai odiava em mim
e não dava valor. Tudo que o cara que fez curso de política aos treze não fez.
Ou se fez, não dá valor. De repente, traça a fuga da vida no porre de sexta, mas
é o seu valium. Me graduei na vida adolescente. Não quero passar por isso de novo,
não tenho corpo pra isso. Só que passando tudo, foi melhor assim. Passei coisas
que poucos passaram, vi coisas que ninguém viu. Como diz a música dos Doors:
atravessei pro outro lado. Minha riqueza da adolescência. Tudo aquilo que pais,
psis, professores, policiais, gente mais velha, pais de amigos, tudo aquilo que
eles queriam que eu não tivesse experimentado. Não basta fumar um, cheirar pó
no fim de semana, tomar ácido de vez em quando. Isso muitos fazem. E se muitos
fazem... legal é fazer o que poucos fazem.
Mas quem tá preparado pra se fuder? Pra quebrar a banca realmente?
Fumantes,
minorias
Tava tomando meu café com cigarro. Era noite.
Tomo café até o meio da tarde normalmente, porque me deixa meio tenso se tomo de
noite. Só que no final de semana me permito. O tempo rola de forma diferente.
Daí tava nesse posto com meu café e meu cigarrinho. Tinha um rapaz do meu lado.
Cara atleta, meio surfista. Me pediu fogo. Achei massa. Um cara atleta fumando.
Outra coisa, ele foi super educado comigo. Sorriu quando passei o isqueiro. Daí
tava logo depois dando uma banda e me veio um lance na cabeça. Tem relação com
o método de pesquisa. Não quero trazer conceitos pra não deixar o texto pesado.
Só que vou tentar expor a ideia. Uma pergunta, pesquisa é feita de perguntas: o
cara fazer parte de uma minoria, tipo fumante, tá mais aberto a relações com
outras minorias? Falei do sorriso do surfista quando passei o fogo. Achei algo
legal, talvez um afeto diferente do dominante. Ele um cara forte, atleta, mas
fumante. Seu sorriso tinha algo de feminino. Não tô falando de
homossexualidade. Falo mais de uma relação diferente com os outros, pode ser
com a vida. Uma relação minoritária. No
caso específico, uma relação de parceria que pode ter relação com uma
afetividade feminina. Diferente do estilo jovem dominante aqui no sul: vamos
quebrar todo mundo. Outro exemplo, um pai gaúcho que descobre que o filho é
gay. Foi um desastre pra ele e pra família no início. Só que esse pai com o
tempo aceitou. Isso deu uma nova sensibilidade nele, em relação ao filho, aos
homossexuais. Uma relação nova com a arte também. Ficou também mais tolerante. Isso
acontece de forma visível nos caras que ouvem rock. Não dá pra saber se o rock
que mudou a vida do cara, ou se ele já tinha uma abertura. Só que o território
do rock, que em certos casos diz respeito a minorias, como certas subculturas,
envolve toda uma afetividade homossexual. Esta vista na dança, nos gestos, nas
roupas, nas letras. Daí o menino usa roupas apertadas, dança de um jeito mais
mole, fala de um jeito mais musical. Quer
ficar parecido com o ídolo. E de repente o ídolo é gay. E ele sabe e não se
importa. Claro que o garoto odeia quando os amigos dizem que ela tá meio
bichona. Ele é meio fascista, mas continua ouvindo o som, se vestindo de forma
diferente e dançando.
Lutar
pela “nossa” revolução
Não penso em voltar. Só que se tiver que
voltar, tô pronto. Perder tudo por uns
quilinhos... não só pelo pó, mas perder tudo que tenho. Ir pra rua. Me queimar
com todos que amo. Não quero isso. Mas é uma possibilidade. E se já passei por
isso... bem, sei que é uma possibilidade. O próximo passo é a morte. E quando
eu crescer morte não vai ser coisa ruim. Isso que falo. A gente tá preparado
pra muita coisa. Importante mapear. E se a gente tiver que pegar em armas, cair
na rua, na marginalidade, ser preso... acho que a gente tá pronto. Como dizem
os punks gaúchos dos Replicantes: lutar pela revolução.
Fora da infância
Eu
era novo, tinha uns 11 anos. Admirava a vida do meu irmão e dos manos dele. O
cara era metaleiro. Comecei na idade comprar discos de metal. Deixei o cabelo
crescer. E mais, comecei a imitar o jeito que eles falavam e andavam. Lembro de
falar mais devagar, e caminhar com os ombros caídos... só que eu não sabia, mas
tava imitando os caras chapados. O cara da maconha fala mole e o corpo fica
mole, caem os ombros. E assim, não era
uma admiração com o cara mais velho, era uma vontade de cair fora... cair fora da
infância. Era isso. Hoje meio que volto à adolescência, mas reconhecendo isso. O
que me interessa: usar a potência adolescente na escrita. Uma postura também do
tipo: que se foda. Não quero imitar, mas usar uma parte que conheço bem pra
quebrar o texto acadêmico. Melhor, dar novos contornos.
Gatinhas
2
Você tá com medo como sempre. Repara em
tudo que eu faço. Cada palavra, cada gesto. Tá esperando que role alguma merda.
Que eu faça alguma merda. Que eu aponte uma arma. Que eu pegue você na força;
amarre você na cama. E eu torne você um monstro como o monstro que eu sou pra
você. Gatinhas têm medinho de monstrinhos. Leram muitos contos de fadas. Então,
você sabe que eu não sou o príncipe. E isso é bom. Já economiza muita conversa.
Mas eu não vou amarrar você na cama. Não vou tirar do armário meus apetrechos.
Não vou dar a você uma bela noite de sadismo. Eu vou fazer pior. Tenha medo.
Muito medo. Depois do que vai rolar as pessoas não vão mais respeitar você. Você
não vai mais ter coragem de olhar na cara do seu pai. Nunca mais vai sentar no
colo do vovô. Não vai mais poder dar selinho no seu irmão. Você vai ser um monstro.
E gatinha, eu não estou brincando. Quem brinca aqui é você. Com seus medinhos.
Com seu jeitinho de fada. Com sua educação. Com esse seu jeito de criança. E
isso... bem, isso já era. Porque chegou a hora. Sou legião, você sabe. E você
vacilou. Entrou na minha casa. Bebeu vinho comigo. Bebeu demais, aliás. E você me
deixou beijar você. Você entrou na jogada. Agora a chave tá lá embaixo. Joguei pela
janela. Não tem mais ninguém por perto. Ninguém vai ouvir você. E você pode
rezar. E você pode até relaxar. Você pode me chamar de meu bem. Até dizer que
me ama. Mas nada disso vai ajudar você. Porque a jogada agora é outra. Você
ficou muito tempo fantasiando que eu era um monstro. E agora eu quero entrar na
jogada. Vou entrou com a fantasia. Eu entro com meu corpo. Com minha vontade...
de enlouquecer, você.
Mano
que fugiu da desintoxicação
Estava andando de carro pela cidade. De
tarde. Estava na Cidade Baixa. Tava perto do viaduto da Borges. Passei rápido
por dois caras, moradores de rua. Passei e não dei bola. Continuei dirigindo.
Só que me veio na cabeça a imagem de um dos dois: era loiro, com cabelo
comprido, meio de surfista. Ele tava abraçado num cobertor com um cara novo
negro, esse bem com visual de morador de rua. Achei estranho. Continuei
dirigindo. Passei pela Rua da República. Entrei na Lima e Silva. Estava fazendo
meu trajeto de sempre. Tava passando pela Cidade Baixa, olhando as garotas nas
ruas, nos bares. Acho o melhor lugar pra fazer isso, olhar as garotas. O lugar
cheio dessas mulheres novas e lindas, gatinhas do sul. Segui a Lima e Silva.
Atravessei a perimetral. Entrei numa ruazinha e cheguei no mesmo ponto que
tinha visto o cara loiro com o morador de rua. Avistei ele de novo. Parei num
semáforo e foquei a minha visão nele. Como disse: tinha cabelo de surfista
comprido e tava enrolado num cobertor. Além disso, ele tava de chinelo havaiana
com meia. O chinelo meio pequeno pros pés. Tava de jeans e camiseta. A camiseta
tava meio curta nele. A barriga dele tava grande saindo da camiseta. Ele tinha
uns 25 anos. Olhei pra cara dele, ele tava com um sorriso estranho. Olhos
mareados, a boca meio puxada, sorriso de quem tava chapado. Então, ele tava com
esse cobertor velho em volta do corpo. Tava frio. E tava acompanhado dum cara
que era morador de rua mesmo. Saquei o cara loiro. Tinha certamente fugido de
uma clinica de reabilitação. Tava na rua de novo e se chapando. Era óbvio que
não era morador de rua, visual de classe média. A barriga grande era de quem
tinha saído das ruas e tinha sido internado; o cara engorda um monte na
clinica. Tava de chinelo, tinha trocado o tênis por droga. Fugiu da clinica e a
primeira coisa que fez foi se chapar. Tava feliz, aliviado, já que deu um jeito
de voltar pra pedra. Tava tão feliz por voltar pra vida, que pegou o primeiro
cara na rua e abraçou ele como mano. Eram iguais agora. Ele não era mais o
surfista classe média em recuperação, era agora o viciado de rua que faz
qualquer coisa pela pedra. A vida da classe média, a vida média, na média, é um
tormento. Trocar isso por nada; melhor, trocar tudo isso por alívio, por um
barato constante e tudo que vem junto... acho que a escolha tem que ser
pessoal.
Curtindo
as gatinhas na rua
Eu estava passando, e passou ela... só que
ela passou muito rápido, não deu bola pra mim, e eu me fiz também, não dei bola
pra ela. Deixei assim. Só vi que era bonita. Fiz minhas coisas. Subi umas
escadas, comi minha janta, tomei meu café. Queria sair correndo pra fumar meu
cigarro. Só que fiquei na fila pra pagar a conta. Ela apareceu de novo. E ela
me olhou, de um jeito... e a gente ficou numas; nada direto; nada na cara. Só
que a gente sabia que a gente tava ali, e que somos jovens e... então, eu
estava atrás dela; a gente tava caminhando juntos no corredor. E ela estava na
minha frente. E claro que eu estava olhando pra ela. Alta, bem alta. Cabelos
claros, sem muita preocupação. Magra. Ombros largos. As costas bem escavadas.
Fiquei nas costas, escavadas, com uma blusa meio aberta, não muito... mas dava
pra ver as costas dela, com as asas de anjos bem excessivas. Mais abaixo uma
lordose acentuada. Ela não tinha a bunda grande, mas era bonita pela lordose.
Também notei que o porte dela era um pouco... a posição do tronco era um pouco
irregular. Formava um tímido arco da cabeça até a bunda, atingindo um pouco as
pernas. Linda demais. Deveria ser uma modelo, de passarela... dessas que com
uma produção ficaria exótica e mais linda ainda. Estava descendo a escada, como
dizia. E tentei não ficar com o olhar em cima. Sei ser discreto. Uma hora não
sei se foi a luz que mudou, ou a forma que ela caminhou, mas consegui olhar pra
abertura da blusa. Consegui ver melhor as costas dela. Uma visão meio raio x
talvez. Mas vi que ela tinha da nuca até a bunda um traço na pele. Um traço
fino, mas que pude notar. Era uma cicatriz fina, mas muito comprida. Uma
cicatriz cirúrgica. Não era muito recente. Já tinha meio que se mesclado à
pele, mas dava pra notar. Eu não estava em cima dela. Estava apenas olhando
quando dava. Não queria constranger ela e a mim, nem as pessoas que estavam
comigo e com ela. Apenas olhava como dava. Daí saquei: a cicatriz, o formato da
coluna, o porte dela, as asas de anjo, a lordose, tudo isso que deixava ela
linda, tudo isso era fruto de algum problema na coluna. Algo sério. Talvez uma
má formação. Algo que ela tenha nascido. Ou de repente, um acidente, grave. E
pensei: ela precisou passar por tudo isso pra ficar linda. Deve ter sofrido
muito. Mas sem dramas, lembranças, e as neuras que isso pode trazer... mas sem
a cicatriz ela não teria ficado tão linda.
Dois. Estava num bar fazendo
minhas coisas. O que se faz em bares. Só que era cedo, era dia ainda. E as
pessoas de dia são diferentes das pessoas da noite. Mas são as mesmas de certa
forma. Estava esperando alguma coisa. Nada sério. Não muito. Aquilo que o dia
pode dar. Luz demais, sol demais, sorrisos demais, gente saudável demais. Parecia
um pouco de paraíso. Pouco mas, depois do dia vem a noite. Isso que importa.
Tava sentado, atrás de um cardápio. Tava olhando pra ver o que ia pedir. Não
queria muito. Queria me esconder do sol, e de tudo que vem junto. Então veio
essas garotas. Elas vierem juntas. Falaram com a atendente. Pediram algo. Duas
garotas acima do peso. Não me chamaram a atenção. Talvez mais tarde. Só que uma
se juntou a elas. Veio do nada. De cara, vi que era muito bonita. Alta. Magra.
Cabelos longos castanhos. Muito bonita. Foquei a visão nela. Não tinha como não
focar. Não olhava diretamente. Mas ela me interessou. Não tinha como não. Estava de vestido. Os pés com uma rasteirinha.
Era alta, não precisava se preocupar com saltos. Algumas tatuagens, nos pés e
nas costas. Ela sorria de leve, sem exageros. Era muito bonita. Uma hora pegou
o celular. Mexeu nele. Eu estava num lado do bar e via mais seu perfil. Vi daí
como segurava o aparelho. Com o braço esquerdo apoiava, com o direito, com as
mãos do direito mandava uma mensagem. Ele não tinha o braço esquerdo. Não era
talidomida. Era muito nova pra ter isso. Mas não tinha o braço esquerdo, apenas
um toco com algo que se assemelhava a dedos.
Ficar
sem é horrível
Tem esses manos na rua, não são muitos. Em
Porto Alegre a gente vê muitos meninos, um pessoal de vinte e poucos anos e uns
caras velhos. Quem ataca os carros pedindo grana são as crianças e esse pessoal
jovem. Dizem pra não dar grana pro pessoal que mora na rua. A gente ouve no rádio
quando a gente tá parado no semáforo e o pessoal tá pedindo grana. Não deem
grana, senão eles ficam na rua. Ficam aí vadiando, se drogando, bebendo,
roubando. A gente tem que tirar esses caras da rua. Eles têm que viver como a
gente vive. Eles têm que ter uma casa, oportunidade, carros, contas pra pagar.
Têm que ser como nós. Como alguém pode ser de forma diferente? Nossa vida, a
vida da casa, da família, do emprego. Na real, eles têm que ir pra periferia,
viver mal e trabalhar para nós. Eles têm que se foder, mas ser fodidos por nós,
não por eles mesmos. E a gente dá sopa, pão e sermões, a gente faz isso até que
eles encontrem o bom caminho. Sempre vejo então eles, e quando dá, dou uma
grana. Não gosto de dar grana pras crianças, prefiro dar grana pro pessoal de
vinte e trinta anos. Acho que esses que tão fodidos. Esse pessoal, tá mais
tempo afundado em muita coisa, principalmente drogas e álcool. Gosto de ajudar eles
com grana ou com cigarros. Até já pensei em fazer um rancho com cigarros
baratos e canha e distribuir pra algum grupo. Só que grana é melhor, daí fazem
o que querem. Parece que todos eles tão afundados no vício. Então ajuda mesmo
grana pra se drogarem. Álcool alimenta mais que comida. Quem se droga não pensa
em comida. Penso que tão nessa não só porque não têm oportunidades. Acho que
eles gostam também dessa vida. As duas coisas se misturam. E deixem os caras se
drogar. Viver a deles. Levar outra vida. E isso é impensável pra familinha
pequeno burguesa. Esses dizem: eles são uns vagabundos, têm que trabalhar. Se
eu estivesse no lado deles; se eu fosse pobre e preto; se eu tivesse como
possibilidade de vida apenas limpar merda de classe média; certamente, eu
estaria na rua, me drogando, curtindo a cidade, me fodendo de outro jeito.
Então, acho que eles tão certos. Melhor se fuder com muita droga na cabeça, não
servindo a burguesia.
Os
fodidos
Eles tão fodidos e bem fodidos. Já
nasceram fodidos. Daí resolveram dar uma amenizada na fodeção. Se é tudo é foda
que se foda! Que se foda a cabeça. Que se foda o corpo. Que se foda a rotina, o
trabalho, a escravidão. Que se foda tudo. Eles dizem: me dá só um barato que tá
bom. O resto que se foda. Que eu me foda também; mas se eu tiver com o barato
na mão, tá bom. Que eu me foda do meu jeito. Daí dizem: não! vocês não podem se
foder da forma que você querem. Vocês têm que se foder da forma que a gente
quer. Na real, não dizem, mas a gente sabe que eles tão dizendo isso, até
quando respiram: sejam fodidos por nós! E tem uns outros caras; esses caras
dizem: não, a gente não quer foder com vocês, mas a gente quer que vocês não se
fodam. A gente quer que vocês caiam fora da rua. Deixem de ser fodidos. Mas não
só isso, a gente não é que nem os outros, a gente quer que vocês não sejam
fodidos por ninguém. Esses são os caras do bem. Os padres, os pensadores, a
gente da esquerda, a gente do bem. Esses são aqueles que se orgulham de quem
são. Se dizem contra toda essa merda. Só que esses não são muito diferentes dos
sacanas que a gente saca de cara; porque eles dizem: vocês são uns coitados e a
gente quer mudar a vida de vocês. A gente quer por vocês num mundo melhor. Um
mundo que a gente está construindo. Um mundo pra vocês e pra nós... pra todos
nós, pra gente viver feliz. Só que eles deixam bem claro que no mundo melhor
não vai mais ter a rua; não vai mais ter a droga; não vai mais ter nem o que
chamam de sofrimento. Na real, o mundo melhor não deixa de ser como o próprio
mundo deles, o mundo que eles vivem – esse pessoal humanitário, legal, que quer ajudar os
desafortunados. Bom apenas se a gente vivesse e pensasse como eles. Vivesse a
vidinha de classe média, e pensasse numa via que alguns chamam de esquerda. Pra
esses a rua não é opção, a droga não é opção, se foder não é opção. Todo mundo
é obrigado a ser feliz, como eles são.
Ex-gatinha
Conheci você na sua melhor fase. Posso
dizer que eu fui a sua melhor fase. Deixei você linda, gostosa, poderosa.
Tornei você a melhor foda da cidade. E não me diga que estou sendo egocêntrico;
você sabe que é verdade. Por isso, esse corpinho que tá aí, agora tão longe de
mim, continua sendo meu. E nem me venha dizer que eu fui a pior coisa da sua
vida. Menina, veja bem: se sonhos são caros, pesadelos valem uma fortuna. E eu
criei um pesadelo só pra você, pra nós, e bem, pra muitos. Você era tão inocente;
tão infantil; tão chata; tão filhinha da mamãe. Uma putinha de merda que
sacaneava todos os caras com os joguinhos de sempre. Metida, nojenta, mimada. Você
não abria as pernas pra ninguém; só pros dedinhos na banheira antes do beijinho
na testa da mamãe. Claro que você não se orgulhava de ser a purinha; mas você
gostava de se manter purinha, só pra deixar os caras na mão. Batia umas
punhetinhas pra eles de vez em quando só pra dar mais vontade. Deu uma
chupadinha no namoradinho que deixou ele louco e... daí você se viu obrigada a
dar. Você sabia que tinha que dar, senão a coisa ia ser na força. Daí perdeu
aquela coisinha, pedacinho de pele e... ficou mais nojenta. Daí você se tornou
uma gatinha que dava. Os caras corriam mais atrás. E você ria dele. A pior das
vadias. Então, você me encontrou. Foi horrível pra mim. Uma criança mimada
jogando um joguinho. Só que eu não era o seu vizinho; eu não era o seu primo;
eu era um cara que não tava nem aí com sua mãe e com sua família. Não tava nem
aí pra você. Você pra mim era mais uma. Mais uma festa, e só. E por isso, você
gostou. Você gostou de um cara que mostrasse pra você que você era nada; porque
na real era assim que você se via. Peguei você de jeito. Mostrei pra todos a
puta que você era e você se apaixonou. Você me ligava todo dia. Você dizia pra
todos que estava me namorando. E daí... bem, caí no jogo. Mas só caí quando você
me chupou no cinema; quando você me deu no banheiro do bar cheio de gente;
quando você me deixou comer o seu cú, e depois disse que adorou. Então, entrei
na jogada, e entrei bem, porque era a sua melhor fase. Corpo firme; bundinha
empinada; peitos fartos; limpa, muito limpa, eu podia comer você sem proteção. Você
me pegou de jeito, mas do meu jeito. Foram alguns meses de foda contínua, todo
dia, toda a hora, em qualquer lugar, de todos os jeitos. E eu coloquei você nas
piores situações: fiz você transar com outras mulheres e outros caras; fiz você
aceitar que eu transasse com quem eu quisesse, fiz você abrir a cabeça. Eu dei
a você a melhor fase da sua vida. Deixo isso como recordação. Agora que você
está casada, com três filhos, gorda, tomando bola o dia inteiro, tendo que
trepar com um cara que você odeia.
Vidinha
Você me quer ao seu lado. Pra sempre, como
você diz. Você quer que eu seja seu braço forte. Que eu cuide de você. Poderia
ser qualquer um. É, alguém que seja um cara parecido com seu pai. Então você quer que eu construa uma casa pra você.
Quer que eu pague a maior parte das contas. Quer que eu deixe o dinheiro que você
ganha nas suas mãos. É, pra fazer compras no fim de semana no shopping. Quer
que eu cozinhe para você. Quer que eu trate bem você. Quer que eu fique de pau
mole durante a semana, já que você só transa aos sábados. Quer que eu goste de
seus pais, de sua família. Aquelas pessoas asquerosas que você odeia. Quer que
futuramente eu lhe de um filho. Que eu troque fraldas e leve vocês dois pra
passear no fim de semana. Você quer que eu fique sentado de noite ao seu lado
vendo tv. Que eu comece a gostar de novelas. Você quer que eu fique sentado ao
seu lado e lhe ouça. Já que você gosta de falar e falar. Quer que eu fique em
silêncio quando você estiver menstruada. Você quer que eu lhe ache bonita. Que
eu não olhe pra nenhuma mulher na rua. Você quer que eu me sinta feliz ao seu
lado. Que eu sorria sempre. Que eu sorria pra você e seus amigos. Mesmo que você
sempre esteja triste. Você quer que eu cuide da minha saúde, já que tenho que
viver pra cuidar de você. Quer que eu esqueça das minhas ex namoradas. Que eu não faça festa no
fim de semana. Na real, você não sabe o que quer. Mas sempre quer. Você quer
que eu aceite o seu jeito. Você quer que eu aceite a sua indecisão. Você quer que
eu queira você. Que eu finja pelo menos. Você quer que eu seja infeliz, mas não
demonstre isso. Você quer que eu seja infeliz ao seu lado como você é ao meu.
Rua
Lima e Silva
Saiu uma matéria no
jornal gaúcho, Zero Hora, sobre uma rua de Porto Alegre, a Lima e Silva. Diz
que a rua estaria sendo invadida, aos domingos, por jovens que a tornam um
“antro” de sexo, drogas e outras coisas. Eles fazem sexo em banheiros de estabelecimentos
comerciais, usam drogas, brigam. Não se sabe se é verdadeiro o relato do
jornal. Expõe apenas o ponto de vista de certos moradores. A rua se tornou, nos
últimos anos, “o local” da noite da cidade. Boa parte do pessoal que mora ali e
nas imediações é gente jovem. A rua corta o bairro Cidade Baixa que fica perto
da universidade mais famosa da cidade. O bairro é boêmio, e lucra com isso. Já
a Zero Hora é um jornal família, pras famílias de classe média. Gente que gosta
de uma vida calma, sem barulhos. O jornal é conservador, defende “a moral e os
bons costumes”. O mais interessante é que os jovens que se drogam e transam em
banheiros são os filhos dessa classe média. O jornal postou fotos com legendas
do tipo: “sem limites”. A maior parte era de garotos e garotas se beijando. As
fotos estavam desfocadas. Uma foto era de um garoto deitado no chão, bêbado. E
se rola mesmo sexo em qualquer lugar e se todo mundo se droga? Os jovens fazem
isso como resistência exatamente a esse discurso e essa vida criados pelos
meios conservadores, a classe média, papai e mamãe. Volta e meia alguém fala da
“adultificação precoce das crianças”; mas a questão é exatamente o contrário,
da infantilização prolongada. Tentam punir e vigiar, tentam controlar os
jovens, impedindo o mínimo de autonomia. Eles não podem beber, não podem entrar
em festas, não podem se divertir. Tentam tornar o mundo da juventude algo
sufocante: “eles deveriam estar em casa com papai e mamãe, como a criança está”.
O emprego que oferecem para eles é precário, impossível ter autonomia
financeira para sair de casa e fazer a vida. Autonomia intelectual também é
difícil, considerando que impõem uma educação idiotizante, não lhes dão
alternativas. A saída é se agarrar no que é mais fácil para criar um mundinho:
ser punk, emo, metal, hip hop, ou fazer parte de guetos relacionados à
sexualidade. Quanto à droga que atravessa todos esses estilos, ela é a
possibilidade de liberdade, pelo menos até o barato acabar ou até bater a
ressaca. E não importa se isso é bom ou ruim, mas o que motiva os jovens: a
fuga da disciplina, do controle, a busca de autonomia, resistir. As drogas e o
sexo são os seus aliados. Estão sempre ali, prontos para os acolher. Eles não
têm limites, dizem as legendas. Essa é a real, eles estão cheios dos limites,
dessa vida de todo mundo que constroem pra eles. Passaram mais de uma década
trancados em casa. Vivendo como refugiados. E ainda dizem que ser criança é ser
feliz, mas não há nada mais triste que ser um refugiado, um prisioneiro
político, o que as crianças são. Quando o corpo fica mais forte e a cabeça
começa a funcionar, o jovem diz: quero minha vida; uma vida singular, e faz
ela, uma vida não muito rica. O mundinho dos jovens marca o limite: nós não
queremos ser como vocês, adultos. E a vidinha tradicional da família não aceita
isso.
Rua Oswaldo Aranha
A
Rua Oswaldo Aranha foi o marco da cultura underground de Porto Alegre. Era o paraíso
pra galera, o inferno pra papai e mamãe. Paraíso que não era frequentado por anjinhos.
Melhor, eram todos anjos, mas de um tipo diferente. Anjos movidos por um desejo
de cair fora das regras, do controle. Sempre rolava um beijo em uma
desconhecida sem precisar de uma palavra. Alguém começava a falar do nada como
se fosse seu melhor amigo. Baseados apareciam. Grupos se acumulavam na rua sem
a existência de barreiras. Um grupo interagia com outro grupo que interagia com
outro grupo, formando uma quadrilha. Talvez uma matilha jovem que tinha muito
mais o que fazer do que tentar seguir pequenas convenções e etiquetas. Quando
as coisas esquentavam mesmo, ou seja, sempre, o clima enlouquecia. Alguém saia
bêbado da Lancheria e era atropelado por uma ambulância, depois por um carro e continuava
caminhando. Um rapaz, louco de Benflogin, engatinhava entre a massa no Escaler.
Algumas pessoas sorriam. A maioria nem via. Um garoto abordava um grupo fugindo
de policiais e o grupo o acolhia. Sem perguntarem o porquê da confusão, se
embriagavam juntos. Dias depois d o garoto começava a namorar uma das garotas
do grupo. 10 pessoas tomavam chá de cogumelo e viam anjinhos e estrelas voando
em plena rua. Uma briga entre gangues resultava em um garoto esfaqueado.
Garotos, que nunca tinham visto o agredido, o ajudavam. Dois jovens trocavam
beijos sobre a grama do Araújo Viana. Pela primeira vez despiam alguém de outro
sexo. Ali mesmo, entre o gramado verde, transavam. Após alguns beijos, um rapaz
abraçava uma garota pelas costas com seu casaco. Em frente à Redenção, dentro
do Ocidente, junto a mais de 300 pessoas, a penetra sem preservativo. Uma garota,
louca de bolinhas, caminhava na pista de dança do Ocidente em linha reta. Cada
menino ou menina que aparecia em sua frente recebia um beijo.
Mais uma noite
Tinha ficado meia hora na fila pra
entrar na casa noturna; só com os cigarros. Nem olhava pras garotas, boca muito
seca. Acabou a fila; entrou correndo no pico e comprou três doses de qualquer
coisa. Chegou no balcão do bar. Ela tava atendendo, mas ele apenas disse: quero
isso, mostrando os tickets. Ela jogou as três doses de destilado no balcão,
meio puta. Ele nem pensou: tomou uma, duas, três, e vamos lá. Daí sacou que ela
– a garota que tava sempre no balcão – era linda. Sacou que havia gatinhas antes
na fila. Sacou que a festa tava começando. Atravessou a pista, só curtindo. Empurrou
uns caras, passou a mão em algumas minas, dançou com um grupo. Chegou no fumódromo.
Pediu fogo pra uma gatinha. Ele tinha fogo, mas queria o dela. Acendeu um crivo,
filtro vermelho. Ali tava todo mundo rindo. Elas se fazendo. Uns viadinhos. Mas
a noite ia ser mesmo um saco se estivesse em qualquer lugar. Lançou uma piada
prum grupo de garotas. Elas fingiram que não gostaram. Ele sacou. Sabia que
devia se aproveitar da situação. Mas bateu a sede. Atravessou correndo a pista.
Deu um empurrão numas gatinhas, só de curtição e elas curtiram. Dançou com um grupo.
E depois outro. Beijou uma gatinha. Sorriu pra ela e saiu fora. Encontrou um
mano. Falou com ele. Chegou no guichê; comprou mais três doses. Furou a fila do
bar, chegou no balcão e lá estava ela. Linda ela, demais. Só que o balcão está
entre nós, pensou. Mas sorriu pra ela, o primeiro sorriso verdadeiro da noite. Ela
jogou mais três doses no balcão. Ele bebeu. Bateu um pouco de barato. Se sentiu
meio mole. Pegou um pouco de anfetamina no bolso. Aquelas doses que se compra
no centro por quase nada. Meteu um punhado na boca. Saiu correndo do bar.
Passou a pista de dança. Empurrou garotos e garotas. Não importava quem. Dançou
com um grupo. Estava bom. Tinha uma gatinha, mas tava bom só dançar. Quando a
música acabou, continuou andando. Não olhou pra trás e chegou no fumódromo.
Alguém tem fogo? Surgiram vários isqueiros. Ele pegou qualquer um. Acendeu mais
um filtro vermelho. Depois outro, depois outro. Se ligou que tava com uma gatinha
no canto: é, é uma gatinha. Uns beijos. Umas puxadas. Umas palavras de carinho.
Uns tapas. Só que se ligou que tava também com sede. Saiu correndo. E tudo de
novo. E estava no balcão. E só via ela. Linda como sempre. Ainda sorrindo. E
ela jogou no balcão o que havia pedido. Ele nem aí. Só queria ver ela. Ela
sorrir e ser legal com ele, de um jeito que ninguém era. Não tinha mais bola no
bolso. Entrou no banheiro. Alguém lhe deu umas carreiras de pó. Meteu pra
dentro. O barato mudou um pouco. Ficou mais esperto. Esqueceu a gatinha do bar.
Entrou na pista. Estava dançando junto com uma outra gatinha. A dança estava
legal. Uns toques. Umas palavras. Logo um beijo. Mas a dança continuava. E isso
era bom, como ela dançava; como o corpo dela se encaixava com o dele. Ele jogou
ela no canto. Tinha umas 100 pessoas na pista. Mas ele não via mais ninguém. Só
ela, só ela. Disse que a amava. E era verdade. Pra sempre, disse pra ela. Só
que sem pensar saiu correndo na pista. Chegou no balcão e ela lhe deu um dose.
Nem tinha comprado. Ela foi legal com ele, como sempre. Ele saiu pra pista de
dança e encontrou a gatinha que tava antes com ele. Tudo de novo: beijou ela,
empurrou na parede, disse que a amava; só que daí sacou que não era ela, era
outra. Mas e daí? Os dois continuaram se pegando e tava tão bom. Uma hora o som
parou. Acabou a festa. O sol tinha nascido. E eles caíram fora. Ela tava legal ainda,
queria beber mais. Ele só queria ela. Daí ela levou ele pra casa. Cuidou dele a
manhã toda, até o meio dia. Depois, deixou ele dormir até o fim da tarde.
Quando ele acordou, ela lhe deu uma ceva. Os dois transaram de novo. Ele caiu
fora sem dizer uma palavra. Foi embora sozinho. Tinha que voltar pro bar pra
ver ela.
Adolescentes
Caíram da infância mais cedo que os
outros. Nenhum motivo em especial. Quem os dava eram os pais, psicólogos,
orientadores educacionais. Essa gente lerda e burra que não entende nada. Só
que eram novos e não tinha muito o que fazer. Ficar trancados no quarto longe da
sala e da televisão. Fugir do pai e da mãe quando convidavam pra ir pra praia
no fim de semana. Fazer desenhos no caderno em sala de aula. Só que daí a
cabeça começou a funcionar. Sacaram que tinha outros na mesma e montaram a
turma. Venderam os brinquedos. Compraram pranchas de surfe, skates e roupas de
gente mais velha. Começaram a ouvir e tocar rock n’ roll. Os caras mais velhos
começaram a notar eles. Nas festas ofereciam bebidas. Bebiam, se detonavam,
enquanto os outros dançavam e tentavam pegar aquelas crianças, gatinhas mimadas.
Não tinha mais razão pra ficar em sala de aula. Eram os únicos que saiam na
hora que queriam. Os professores tinham medo deles. Deixavam assim. Todos
juntos, na frente do colégio, fumavam cigarros. Os caras mais velhos trouxeram
uns baseados. Não tinha motivo pra não fumar. Fumaram um, dois, três, quatro,
cinco vezes, e nada. Na sexta vez bateu o barato. Daí a vida realmente começou.
Sete horas da manhã, todos juntos no campo de futebol. Uma turma grande da
galera de 13 e 14 anos. Tinham pegado fumo com os caras mais velhos. Um ou dois
já sabiam enrolar. O baseado era grande, parecia ser de duas sedas e bem
grosso. O baseado passava de mão em mão. Depois entraram na sala de aula. Riram
dos professores. Riram dos alunos. E eles faziam as gatinhas rirem. Rápido, já eram
um dez baseados por manhã. Depois do terceiro nem mais fazia a cabeça. Almoçavam
meio chapados com os pais. Fumavam mais um depois do almoço. De tarde, tocavam
com a banda de metal. Andavam de skate. Caminhavam pela cidade. Não bebiam
muito, mais no fim de semana. Sexta caíam pra Oswaldo Aranha. Eram os mais
novos. Mais novos que eles só as crianças que estavam em casa dormindo. E a
maioria da idade deles tava vendo tv com papai e mamãe, ou indo pras festinhas
que eles odiavam. Papai e mamãe ficaram putos o dia em que eles chegaram em
casa de manhã cedo no sábado. Passaram a noite na rua. Chamaram até a polícia.
Eles disseram pros velhos: agora é assim que as coisas funcionam. Papai achou
50 gramas de fumo. Eles disseram pros velhos: não se metam na nossa vida. Eram
novos, mas pegavam as gatinhas mais velhas. Pegavam as de 16 e 17. Mentiam a
idade e pegavam as de 18. Bêbados no bar do João, na Oswaldo Aranha, entraram
no banheiro. Um cara mais velho esticou umas carreiras, todos cheiraram, e eles
disseram: a vida começou. Em pouco tempo, não precisavam mais dos caras velhos
pra se drogar. Aliás, os caras mais velhos começaram a buscar eles pra se drogar.
Eles subiam o morro a qualquer hora, em qualquer dia. Terça de madrugada. Sobem
uma parte da vila Cruzeiro do Sul, junto do bairro Cristal. Não tem pó junto ao
asfalto. Decidem subir o morro com um morador. Tudo escuro. Ruas estreitas.
Podia ser mortos. Entram na casa do traficante. Era uma mina velha. Ela oferece
pó. Eles cheiram. Ela pergunta se eles não querem pó de graça; era só deixar
ela chupar eles. Um deles diz: eu topo. Ela chupa no quarto ao lado. Os outros
ficam rindo: olha só o cara, olha só. Depois disso, ela sempre liberava pó pra
turma por uma chupada. Um deles meio que começa a namorar ela. Uma noite, tavam
passando pela Vila Conceição. O ônibus tinha deixado eles longe, já que não
tinham grana. Motorista filha da puta. Passaram por um bar fechado. No mezanino
três caras negros endolavam uma montanha de pó. Os black olharam eles e
disseram: tão a fim? Cheiraram as maiores carreiras que já tinham cheirado. Os
blacks só diziam: vai fundo meu. Daí mandaram eles cair fora, mas liberaram de
graça umas gramas. Iam todo dia pro
Parque Marinha. Lá junto da pista de skate, toda a galera se encontrava e daí
eles fumavam vários. Uma época uns manos iam até o Gasômetro e buscavam fumo
mesclado. Maconha com crack. Eles fumavam de vez em quando, mas o barato era a
maconha e o pó. Uma hora só queriam saber de pó e era caro. Então pegavam
maconha e vendiam pra galera no cursinho. Ali no centro de Porto Alegre, naquela
praça ao lado do hospital Santa Casa. Todo mundo comprava fumo deles de manhã.
De tarde. pegavam a grana e compravam pó. Um dos manos um dia cheirou muito.
Tava com 50 gramas na mão. O cara morreu, mas foi ressuscitado por paramédicos.
Ainda eram jovens, não estavam viciados. Mas quando acabava o pó doía na alma.
Queriam mais e mais e mais. O pai de um deles tinha dólares guardados. O mano
sabia a senha do cofre. Eles pegavam e iam pro morro. Os traficantes ficavam
felizes em ver grana estrangeira. De noite tavam sempre no Timbuka. Bar famoso
no bairro Assunção. Ali fumavam, vendiam, cheiravam. Não tinham medo da polícia.
Pegavam o prato e esticavam as carreiras na rua mesmo. Os mais velhos ficavam
putos. Só que agora os mais velhos tinham medo deles. As gatinhas estavam
sempre em cima. Umas minas meio caídas, mas não importava. Eles liberavam pó
pra elas, e elas faziam o serviço. Já tavam fazia anos nessa. Não iam mais pra
escola. Já haviam sido internados. Saiam e entravam da clinica. Os pais enchiam
o saco, mais os psicólogos, toda essa gente. Eles só queriam curtir. O que tem de errado em
curtir a vida? Eram jovens, o corpo era forte. Os outros, os integrados viam
eles como lixo. Com vinte anos a coisa mudou. Alguns deles pararam com tudo. Outros
deram um tempo. Uns se integraram mais ou menos. Outros caíram na vida,
continuaram. Uns morreram de overdose. Outros tão com aids. Os mais espertos,
caíram de casa, montaram negócio, se formaram. Só que nos fins de semana tão na
noite fazendo a cabeça.
Neurose
Ela era um saco. A filhinha problema.
Desde nova aprontava. Pintou os cabelos de verde com quinze anos. Fez tatuagens.
Colocou piercings. Ouvia new metal. Ia direto na a Oswaldo Aranha com uma turma
do rock. Fazia festa, mas não se detonava. Não podia beber muito porque tomava
remedinhos controlados desde cedo. É, tentavam controlar a anorexia dela e suas
investidas constantes contra papai e mamãe. Faziam isso desde que ela disse:
fodam-se. Um dia conheceu um cara. Ele pegou ela de jeito. Foi legal com ela,
mas meio sacana. Fez com ela o que os outros não faziam. Meteu ela na parede.
Deu uns beijos. Disse: vamos pro meu ap. Ela foi. O cara era mais velho, tinha
uns 25. Morava sozinho. Ela ficou trepando com ele por três dias. Os pais
ficaram loucos. Chamaram a polícia. Pensavam: ela não toma os remédios faz dias.
Ela chegou em casa. Os pais choraram. Disseram: mas como você faz isso com a
gente. Nós amamos você e você faz isso. Eles não bateram nela; não meteram ela
de castigo. Já estavam acostumados com ela e sabiam que isso não adiantava. Daí
ela se sentiu um lixo. Oh, eles me amam e eu faço isso. Daí ela pegou duas
caixas de remédios controlados e tomou tudo. Primeira tentativa de suicídio.
Levaram ela pro hospital. Fizeram lavagem estomacal. Meteram um tubo na boca e
deram algo que a fez acordar. Ela acordou com os pais no pé da cama chorando.
Diziam: não faça mais isso, a gente ama você. E ela disse: é mentira, vocês não
me amam. Os pais queriam internar ela. Ela não quis. Trocaram de analista. O
cara receitou bolas mais pesadas. Ela não tomava direito os remédios. Em certas
fases, ficava em casa, se emboletando. Em outras, caia na rua, e se drogava. Quando
se sentia uma merda, isso com frequência, quando não se sentia amada, tomava
uma overdose. Ela não queria se matar, queria ouvir eles dizendo: não faça mais
isso minha filha, a gente ama você. Em cinco anos tentou umas dez vezes o
suicídio. Tentou nada. Tomava o suficiente pra assustar os pais, e só. Se casou com o primeiro cara que apareceu na
frente. Era a cara do pai. Casou pra cair fora da casa dos velhos. Odiava o
cara. Não saía mais a noite. Não pintava mais o cabelo. Não se drogava mais. Se
fechou cada vez mais em si mesmo. E quando não segurava a onda tentava o
suicídio pra chamar a atenção dos pais e o do novo pai, seu marido.
Revivendo
Fazia tempo que ele não cheirava. Fazia
uns cinco anos. Tinha sido um bom cheirador por muito tempo. Parou porque
mandaram ele parar. Um monte de gente: namorada, pais, treinador, psicólogo,
policia, pombos, ratos, e mais um monte de chatos. Ok, parou, e parou mesmo.
Cinco anos sem cheirar. Nesse tempo, virou o senhor bom cidadão. Virou um cara
bom, um amor, o filinho da mamãe, o esposinho que abre a porta. Olhava para o
espelho e se sentia orgulhoso. Percebia como os outros olhavam pra ele e se
sentia orgulhoso. Empinava a cabeça e estufava o peito não mais por causa do
pó, mas pelo orgulho. Até os policiais quando passavam por ele, olhavam com
admiração. Só que um dia, apareceu um mano. O mano tava com a mão, não muito
sabe, só umas cinquenta gramas de pó. E ele deu um teco. E depois outro, e
depois outro. Quando viu tinha passado o final de semana e o pó tinha acabado.
Daí ele subiu o morro sozinho e pegou mais umas vinte gramas. Pegou um quarto
de motel barato. Esticou umas belas carreiras. Se olhou no espelho e disse pra
si mesmo: vou vender tudo que eu tenho. Vou comprar tudo em pó. Quando acabar o
pó, vou me dar um tiro, e já era. Decidiu isso porque não queria ficar preso na
rotina. É, a rotina do pó: conseguir grana, comprar, cheirar, depois ficar sem,
ter que roubar pra ter mais. Incomodação demais. Se tivesse pó na mão pra
sempre, não se mataria, mas não é assim que funciona. Sempre acaba. Então, não
queria a rotina do pó e, muito menos, a rotina do bom cidadão, do filinho da
mamãe, do babaca que ama uma babaca. Vendeu tudo, comprou tudo em pó. Se
enrolou com uma mina muito louca porque ela tinha um ap. Esticou as carreiras.
Fez a festa. Uns três meses de festa. Pó, canha, sexo, brigas, grana pra
polícia, bares, putas, muitas pessoas, tudo a cem por hora. Ele sabia que se
ele resolvesse não se matar, a ressaca seria tão grande que acabaria se
matando. Ou seja, o tiro na cabeça já era certo. Tava na praia de Ipanema em
Porto Alegre. Tava no carro. Não tinha vendido o carro porque pó e carro andam
juntos. Tava na praia, tava com as últimas parangas de pó. Esticou uma carreira
com tudo que tinha. Deu uma longa aspirada. Botou tudo pra dentro. Esperou o pó
descer. Esperou o brilho começar a se apagar. Pegou a arma. Meteu na boca. E já
era. Parte dois. Ele namorou ela por
cinco anos. Ela meteu ele nos eixos. Fez ele parar de sair, de beber e se drogar. Ele virou o caretão. E gostava
disso. Dizia: agora eu sou um homem. Encarava de frente o pai, não ouvia mais o
velho o chamar de “um imaturo que só faz merda”. Tomava cerveja apenas no
almoço de domingo. Enchia a cara junto com o sogro. Depois via tv com toda a
família da namorada. Viam o jogo de futebol todos bêbados. Ele era novo, tinha
28 anos, mas já se sentia um senhor. Falava sobre casamento. Falava sobre ter
filhos. O pai ofereceu uma grana pra montar seu negócio, e seguir em frente,
fazer sua família. Montou uma empresa. Em pouco tempo começou a dar dinheiro.
Fez uma grana. Marcou o casamento. Todos estavam tão felizes. Ele podia se
casar, tinha autonomia que nenhum amigo tinha. Uma semana antes do casamento
ele disse: tô fora. Não quero mais me casar. O pai, a família dela, ela ficaram
loucos com ele. Mas ficou firme na posição. Primeira coisa que fez depois de
toda a novela, foi num bar. Tomou todas com os velhos amigos. Fumou uns
baseados, cheirou umas carreiras. Depois foram numa casa noturna. Pegou uma
gatinha duns 20 anos. Levou ela pra casa. Transou com ela. Era a primeira
transa em cinco anos com alguém diferente das ex-quase esposa. Transou com ela
feito louco. Parecia uma transa que nunca tinha experimentado. A coisa foi
demais. A partir daí começou a sair direto. Na sexta, no sábado, no domingo. Em
pouco tempo, voltou na ativa do pó, mas de uma forma diferente. Não tava
viciado como já tinha sido. Durante a semana o negócio até ia bem. Trabalhava
normalmente. Mas não passava um dia de trabalho sem que pensasse nas festas. Na
real, pensava o dia todo nas gatinhas, nas drogas. Só que sabia que tinha que
ser um lance eventual, senão ele não ia ter como se manter. Tinha que
trabalhar. Era sexta, tava na noite. Rolou mais uma gatinha. Levou ela pra
casa. Transou com ela. De manhã, ainda tava cheirando umas carreiras na sala, vendo
tv. Ela dormia no quarto. Como disse, ele não tava viciado em pó, estava
encarando de uma forma diferente o lance. Isso não era o mais importante. O que
ele queria era a noite, a festa, as gatinhas, tudo isso, sempre. Mas só tinha a
opção da festa apenas no fim de semana. Sentia uma dor por dentro. Daí decidiu
o que fazer. Vendeu tudo que tinha. Não
falou pra ninguém. Vendeu o carro, móveis, o que era seu da empresa. Pegou toda
a grana do banco. Foi pra Europa. Tinha grana suficiente pra fazer festa durante
cinco meses direto; e fez. Curtiu. Se apaixonou por garotas, curtiu festas,
usou drogas que nunca tinha usado. No fim, quando acabou a grana, comprou uma
arma. Estava em um quarto dum ap que dividia com estrangeiros. Tomou uma dose
de uísque. Meteu a arma na boca, e já
era.
Porto alegre nos anos 90
A gente tava na Oswaldo. Tava fazendo a
cabeça no João. Tava rolando aquelas cachaças da boa. Alguém pegava um copo grande
e botava na roda. Aquela merda era muito forte. Um golinho de vez. E de gole em
gole o barato batia. A gente ia até o Escaler e pegava um fumo. Uns trafis
vendiam atrás do bar. Ali numa viela sem luz. A gente fumava. Voltava pro bar.
Pedia mais uma canha. Sempre rolava algo mais. Umas minas vendiam hipofagin e
inibex. A gente comprava. É, a gente tava lá. A gente tava curtindo. Chegaram
uns boys. Eles tavam de carro. Era uma saveiro. Disseram pra gente: sobe aí,
vamos dar uma volta. A gente subiu na parte aberta da caminhonete. Eu, um mano
e duas minas. A gente tava doido de bola, fumo e canha. Os manos da direção, os
boys meteram o carro na rua. Alta velocidade. E a gente ali atrás. A gente tava
passando pelo Parcão, numa descida. Os caras não tiravam o pé do acelerador.
Era nos anos 90. Não tinha essa de lei seca. Não tinha essa de que menor não
pode entrar em casa noturna. Não tinha essa de que menor não pode comprar
cigarro. Os postos todos enchiam de gente que se reunia pra beber. A gente
fazia a festa. A gente tava descendo a lomba ali do Parcão. Na traseira tava o
mano, viajando. Junto tavam as duas minas. Uma delas eu tava ficando fazia um
tempo. Só que a outra era muito gata. Dei uns beijos na mina que eu tava
ficando. Vi que a outra ficou com a cara fechada. Saquei que ela tava a fim.
Beijei ela também. Ela gostou. Quando vi, nós três, a gente tava se beijando.
Eu com duas garotas. E elas também se beijavam. Primeira vez que fiquei com
duas garotas ao mesmo tempo. Primeira vez que duas garotas se beijavam na minha
frente. O carro voltou pra Oswaldo. Os boys eram parceiros. Dei uma paranga de
fumo pra eles. A mina que eu tava ficando me chamou prum canto. A outra
desapareceu. Parte dois. A gente saiu
da Oswaldo, eu e um mano. Era no meio dos anos 90. A gente tava doido de bira e
bola. A gente passou pela universidade federal. Tava tudo meio escuro. A gente
tava quase no centro e passava por uma rua estreita. Daí meu mano disse: cara,
tem uma galera ali na frente. Era uma gangue duns 50 caras, blacks, de vila.
Eles tinham saído das festas no alto do centro, ali do lado da Santa Casa, e se
concentram na rua. Tavam atrás de confusão. Eu e meu mano, a gente tava doido. A gente nem
deu bola e passou por eles. Os caras nos tiraram. Falaram dos nossos tênis de
marca. A gente nem olhou pra eles. E eles deixaram assim. Devem ter pensado:
esses caras são loucos de passar por nós. Daí a gente parou numa outra ruinha. Ficava
entre o centro e a Cidade Baixa. A gente tava ali esperando o ônibus que não
passava. A gente ficou conversando. Putos já que não tinha mais crivo. Putos
porque não tinha mais fumo. Mas a gente tava na boa. A rua, a gente já tinha
sacado, era lugar que uns michês faziam ponto. Eles pegavam putos ali. Mas isso
só rolava de vez em quando. Mas daí a gente não ficou surpreso quando um viado
passou e nos ofereceu carona. A gente entrou no carro. Pediu crivo pra ele. Ele deu. Perguntou se
tinha fumo. Ele disse que não tinha. Daí ele disse pra gente: vamos fazer
programa? Eu e meu mano a gente disse que topava. A gente disse que podia rolar
na Usina do Gasômetro. Lá tinha um estacionamento e ninguém passava. Era junto
do rio Guaíba. O viado parou o carro, e disse pro meu mano: quero fazer
primeiro com você. Quero chupar você. Saí do carro. Meu mano tava na carona. O
viado baixou as calças dele. Meu mano deu uma joelhada na cara dele. Eu abri a
porta na parte que o viado tava. Empurrei ele pra fora. Meu mano veio junto. A
gente encheu ele de chute na cara. A gente chutou ele até apagar. A gente pegou
a carteira do cara. Ele tava cheio de grana. A gente empurrou ele até a areia.
Deu mais chutes na cabeça pra apagar ele de vez. A gente pegou o carro, e se
foi. Eu era o único que sabia dirigir, a gente tinha só 16 anos. Meu mano do
meu lado, tava tremendo todo. Começou a falar: será que e gente matou o cara,
será que a gente matou. Eu também tava nervoso, tinha ficado careta com toda a
história. Daí disse: cara, vamos até a Cruzeiro, a gente deixa o carro ali
perto. A gente pega essa grana e compra pó. Não se preocupe. A gente deixou o
carro numa rua. Subiu o morro. A gente pegou toda a grana em pó. Deu umas 10
gramas. Tava de boa. A gente cheirou, e daí esqueceu do cara. Nos dias
seguintes a gente ainda tava com medo. Podia dar merda, a gente podia ter
matado o cara. Mas não rolou nada. Três semanas depois a gente tava no mesmo
ponto que tinha pegado o cara. A gente queria pegar mais um viado e roubar o
cara e fazer a festa.
Fim de século
A gente fumou um, dois, três. A gente
tomou umas cevas, várias. A gente era: eu com 13 anos, mais três manos de 18.
Eu tava com eles porque era um cara legal. Eu fazia a festa e ficava no meu
canto; e quando eu fazia merda, todo mundo se divertia. Era um garoto que tava
aprendendo com o pessoal mais velho. A gente tava em algum bar, jogando sinuca,
no bairro Menino Deus. Hoje em dia o bairro é um desastre. Muitos restaurantes
pra classe média. Muitos edifícios pra classe média. E só. Mas o bairro já foi
legal. Tinha uns bares pra galera. Um tempo, tinha prostituição de mulheres e
travecos. Só que eu tava com os manos, e era época boa. A gente jogava sinuca.
Bebia. Fumava. Eu tinha 13 anos e ninguém me incomodava. Eu podia fumar e
beber. Eu podia estar na noite. Já era meia noite. A gente saiu de carro e foi num
show. Não lembro a banda, mas me lembro do lugar. Era o Fim de Século. O bar
foi um dos mais famosos do underground da cidade. Depois mudou o nome para NEO.
Daí o pico virou um lugar pra cena clubber. Mas na primeira década do século
tinha festas de subculturas. Um das poucas dedicadas pra turma gótica em Porto
Alegre teve seu apogeu na NEO. Daí, a
gente tava lá no Fim de Século. A gente tava se detonando. Muita bira. Meus
manos já tavam queimando o filme com as minas. Eu tava mais de canto. Mas uma hora meio que enlouqueci. Tava na
pista de dança. A banda tocava algo meio punk. Uma mina loira parou na minha
frente. Era mais velha. Ela tava agarrando outra mina. Uau, eram lésbicas.
Nunca tinha visto algo assim. Eu tava atrás delas. Eu tinha só treze anos. Agarrei
a loira, por trás. Ela continuou dançando. Dei uns amassos por trás. Dei um
beijo no pescoço. Ela se virou e me deu um soco. Fui pro chão. Chamei ela de vadia.
Meus manos todos riram. Isso virou a história da semana entre nós. Parte dois. Fazia anos que eu não ia na
NEO. Uns dois anos. Tava namorando uma mina e a gente não saía. A gente tinha
se conhecido ali, numa festa gótica. Larguei a mina e a primeira coisa que fiz
foi ligar pruma amiga que eu já tinha ficado algumas vezes. Ali na NEO também. Peguei
ela em casa. A gente chegou na festa. Era festa dum parceiro. A gente entrou.
Eu não conhecia mais ninguém. Só o pessoal que organizava a festa. Tudo tinha
mudado. E eu também. Tomei todas. Dancei. Curti. Tinha voltado a ficar com essa
mina que me levou na festa. Só que uma hora me desliguei dela. Senti vontade de
outras. Legal que nas festas todo mundo tá a fim de conhecer gente nova. A
gente pode conversar com gente que nunca viu. Tá todo mundo aberto, e demais. Tava
no banheiro falando com um viadinho e uma mina. Ele disse que tava a fim de
mim. Eu ri alto. Mandei cair fora. A gente tava na frente do banheiro, um lugar
com torneiras e espelhos. Quando vi era só eu e ela. Ela tava de preto. Com a
cara pintada. Era nova e bonita. Era metida a gótica. Só me lembro de uma
imagem depois. Eu no banheiro com ela. Eu penetrando ela. E com certeza eu tava
sem preservativo. Depois lembro que voltei a falar com a mina que eu tinha ido
na festa. De dançar com ela. E dançar com outras. De ficar com outras. Só que
não importava. O que importava era que eu tava livre de novo. Eu podia curtir a
noite. Não tava mais preso com namorada. A juventude tinha voltado com tudo. E
eu merecia. Parte dois. Eu tinha recém entrado na
faculdade. Ainda era novo. Tava conhecendo gente diferente. Tava fazendo turma.
Eu tava na turma dos caras que andavam de preto. Todo mundo de calça preta,
sapatos de bico fino e jaqueta de couro. E todo mundo tinha banda de rock
pesado. Todo mundo era legal, todo mundo fazia festa. Na segunda, a gente tava
na Rua Independência. A gente fazia festa direto e depois ia pra aula. Depois
na quinta a gente tava no Cabaret. Depois a gente ia pro Garagem Hermética. Fim
de semana a gente tava na Oswaldo. A gente tinha sido foda. A gente tinha
curtido todas. A gente encarou o colegial. E a agora a gente era gente de
faculdade. Num fim de semana a gente tava na NEO. Rolava som eletrônico. A
gente era do rock. Mas não importava. A gente tava dançando. Eu tava com uma
gordinha. Tava curtindo ela. Era bonita, mas pesadinha. Chegaram outros manos.
Eles trabalhavam numa loja de roupas de gente IN. De gente ligada. De gente que
tava por dentro. Larguei a gordinha. Peguei uma ruiva que tava nesse grupo de
gente da loja. Tava dançando com ela. Tava beijando ela. Tava muito a fim.
Pintou um mano. Ela tava muito doido. Ele ofereceu pra mina um ácido. Eu só
fiquei olhando. Ela ofereceu um pedaço pra mim. Eu aceitei. Era um pedaço de
uma dose. Um papel bordô dupla face. Eu encarei. Tomei. Mastiguei o papel. Meia hora depois desceu o barato. Sentia
ventos passando por mim. Sentia ventos de palavras de pessoas me acariciando.
Sentia ventos dentro de mim. Um pouco gelado, uma delícia. Tava dançando. Isso
que importava. Dançava nos ventos. Tava voando. O beijo dela. A música. As
pessoas. Tudo junto. Já era de manhã. A gente tava no Gasômetro. A gente tava
fumando um. O barato do ácido tava se indo. A gente via as pessoas na rua.
Alguns já começavam o dia. A gente tava terminando a noite. Mas a gente não tava nem aí. Só importava que depois
de dormir a gente ia acordar. E ia rolar mais ácido, mais fumo, mais gatinhas,
mais festa, mais noite. Porto Alegre era
uma merda, mas a gente tornava ela um lugar melhor pra se viver.
Pega de carro
Virada do século. Ele vivia em porto
alegre. Tava na faculdade de administração. Tinha recém entrado. Estudava em
são Leopoldo. Aula todo dia. Um saco. Fim de semana ia nos lugares que tinha
pra ir. Durante a semana ia em alguns lugares que tinha gente. Sempre tinha uma
festa, um ou outro dia que não. O dia mais chato era terça. Fazer o que? Fazer
o que? Não tinha nada pra fazer. Uns baseados e nada mais. De noite uns postos,
umas cevas. Daí tudo morria. Tinha que ir pra casa dormir. Só que não. Na noite
de terça o pessoal pegava as carangas e ia pra rua. Eram poucos, mas muitos.
Qualquer um jovem que tivesse a fim d eficar na rua. O pessoal se reunia junto
da Nilo Peçanha. A rua depois ficou uma merda pra rachas de carro. Colocaram
pardais em toda a pista. Só que era virada do século e as coisas eram
diferentes. Era uma terça como qualquer outra. Fumou uns. Tomou uma cevas. Tava
de carro com um mano. Tinham saído da zona sul e tavam ali na Nilo perto do
Iguatemi. O carro era como qualquer outro. Podia ser o do pai ou o da mãe.
Tanto fazia. Não era playboy pra envenenar carro. Só queria curtir. Passaram o
Iguatemi e pararam num sinal. Era o carro deles, mais dois carros com uns caras.
Algum dos carros começou a roncar, depois o outro, depois o outro. O sinal
liberou. Meteram o pé na estrada. Seguiram em linha reta em alta velocidade.
Chegaram a mais de cem. Passaram por sinais abertos. Depois os sinais fecharam
e eles continuaram dando pau até a Protásio Alves. Cada carro seguiu uma
direção. Decidiram ficar na rua. Foram até a Oswaldo. Depois cruzaram a Cidade
Baixa. Chegaram na Ipiranga. Pararam num posto. Tava ainda aberto. Tomaram
umas. Voltaram pra Ipiranga. Sinal fechado. Um carro do lado. Uns boys. Os dois
motores roncaram. Meteram o pau. Quando eles viram tinha passado na frente do
palácio da polícia a mais de cem por hora. Que se foda, pensaram. Parte dois. Eles tavam na Oswaldo. Era domingo. Tavam no
João tomando todas. O Escaler tinha fechado. Pegaram o carro e foram pra Farrapos.
Passaram pelas putas. Umas gostosas. Outras não. No fim da rua tinha os
travecos. Eles passaram e berraram: seus viados. Depois passaram pelo
aeroporto. Decidiram voltar pro centro da cidade. A noite tinha morrido. Não tinha
nada pra fazer. Só tinha os postos. Só tinha o morro. Só tinha as putas. Ou
seja, muito pouco. Só que queriam esquecer que na segunda tinham que trabalhar.
Que tinham que ir pra aula. Que tinham que acordar na manhã de segunda vendo a
cara da mãe e do pai. Não tinham o que fazer. Só dar pau na noite. Percorriam a
cidade. Encontravam manos na rua. Faziam pegas. Queimavam um fumo. A cidade era
deles. Não tinha nenhum policial na rua. Decidiram ir pra zona sul. Tinha um bar que
talvez tivesse aberto em Ipanema. Passaram o Menino Deus. Passaram o estádio do
inter. Quando chegavam no Cristal, na curva do Estaleiro, o carro derrapou,
entraram num poste. Uma puta colisão. Um bateu a cabeça no vidro o outro na
direção. O Santana tava arrebentado. Os dois começaram a catar o fumo nos bolsos.
Pegaram as garrafas de ceva dentro do carro. Levaram pra bem longe. Limparam a
área. Logo, carros pararam. Os dois tavam sangrando. Tinha dado merda; os pais
iam incomodar. Chegou a polícia. Falaram com eles. Eles só diziam: a gente
perdeu a direção. Os policias levaram eles prum hospital. Levaram pontos. O
carro tinha sido levado pro DETRAN. Daí tavam os dois fumando um cigarro na frente
do hospital. O dono do carro pensou: meu pai vai me matar. O carro já era.
Tinham cartão no bolso. O cartão compartilhado com os pais. Pegaram um táxi.
Foram pra farrapos. Fizeram a festa num puteiro. E que se foda.
Anarquismo
Recebo informações sobre grupos
anarquistas na Europa, faz um tempo. No início da crise já recebia muita coisa,
principalmente da Grécia. Interessante
que hoje chegou notícia de um grupo que havia expropriado um supermercado. Os
caras pegaram produtos essenciais, e a grana, meteram fogo nela. Interessante
que a primeira notícia do tipo, recebi uns dois anos atrás. Um ato comum. Uma
tática anarquista: vamos pegar o que nos interessa, já a grana é lixo
capitalista, vamos meter fogo. Os caras podiam pegar a grana e comprar coisas. Gasolina
pra coquetel molotov. Podiam comprar umas roupas negras pra não serem
reconhecidos. Podiam pegar a grana e fazer o que dá com grana. Muito, ou tudo. Mas
num ato simbólico queimaram o dinheiro. Quem queima grana é louco. Isso diz o
senso comum. Não só louco, um louco anarquista. Alguém que quer que tudo mude.
Que o mundo mude. Alguém que luta pela revolução. Mudar tudo. Até os valores. O
mundo de vocês a gente quer que acabe. A gente quer foder com isso. Foder com a
moral de vocês. Vamos foder com tudo que vocês acreditam; foder com o que vocês
querem e valorizam tanto: grana. A gente quer um mundo sem grana. A gente quer
um mundo sem distinção. Viva o nosso poder, de fazer coisas que vocês não
suportam. Queimar o que vocês dão valor. Queimar a vocês se for necessário.
Botar fogo em tudo e que se foda. Botar tudo abaixo. E vocês vão sofrer. A
gente não quer o mundo de vocês. Mas vocês querem o mundo que a gente luta.
Quando chega o fim do mês; quando o patrão faz merda pra vocês; quando vocês
pensam nos seus filhos, que vão se fuder; quando pensam na sua vida. Quando vocês
olham pras coisas que têm em casa, e veem que isso é muito pouco; quando sacam
que mesmo a riqueza seria pouco. Quando veem
tudo isso, você são dos nossos. Apagam o desejo de vocês de uma nova realidade
na TV e quando dão grana pra vocês comprarem mais e mais. Vocês gostam disso e
querem mais... mas lá dentro querem outra vida. Vocês se sentem uns putos no
trabalho e seus filhos vão encarar a mesma coisa. Suas mulheres sofrem por serem
mulheres. E você querem uma vida melhor. Já a gente não quer de jeito nenhum a
vida que vocês levam. A gente luta por um mundo melhor. Por nós. Entende? Vocês
querem fazer parte de nós, mas têm medo. E é pra ter, porque a gente vai acabar
com tudo isso que vocês amam tanto.
[1] Baixista da banda punk mais famosa
dos anos 70, os Sex Pistols. Vicious criou fama principalmente por ser viciado
em morfina e um péssimo instrumentista.
[2] Na primeira pessoa, só pra ficar
num tom mais pessoal, mas a questão é entre quem luta e o poder.
[3] Primeiro vocalista do Pink Floyd
que acabou enlouquecendo pelo uso de LSD.
[5] Escrevi isso após
um duro semestre no doutorado. Desde o mestrado está claro pra mim que o
ambiente de sala de aula (mesmo de palestra) é desnecessário. Ultrapassado. Me sinto
enclausurado, meio doente. Sobre isso a
carta.