Exercícios
de esquizo análise com lembranças de Espectralia
Introdução:
na primeira parte do texto continuo com os exercícios de esquizo análise. O
tema mais corrente é o tempo, o tempo controlado na urbe e os N tempos de Espectralia.
Na segunda parte, apresento uma cartografia de Espectralia a partir de anotações
sobre sonhos meus que têm a cidade como tema e de viagens psicodélicas acontecidas
em locais na cidade, portais para Espectralia: a beira de um rio morto, uma sala
de recuperação de um hospital, um apartamento no qual aconteceram festas
contínuas. Há um grau de invenção na narrativa dos sonhos, dos delírios, da
narcose, já que concernem a lembranças em vigília, e não dá para confiar nas
lembranças a partir desses estados alterados; um exemplo são as memórias
borradas de uma festa em que se estava bêbado, já que nunca se sabe direito o
que realmente aconteceu. Busco na narração de sonhos e delírios os signos de
superfície e não a interpretação; não busco razões profundas, racionalizar, mas
sim apenas isso: buscar os signos que compõem eles, registros que mostram parte
da fauna e paisagem de Espectralia.
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Parte
1. Exercício de esquizo análise
Desde que me envolvi com drogas, os
sonhos me chamaram atenção já que são um tipo de narcose, talvez uma das mais
fortes. Em momentos duros de abstinência forçada, portanto, eu tinha os sonhos
como possibilidade de narcose sem o uso direto. Em relação a ficar chapado de
cara, eu aprendi que há muitas outras possibilidades: modular a respiração, fazer
yoga, meditar, ouvir mantras, sonhar acordado, certas práticas sexuais – tudo
isso permite estados narcóticos interessantes. Em uma das minhas piores fases,
eu ouvia mantras e tentava soltar o máximo de ar possível e inspirar o mínimo
possível, isso me colocava em estado de inconsciência momentânea; aprendi
sozinho, respirando, por intuição. Na prática da yoga, eu via, no momento dos
mantras, a aura de meus colegas, lindas auras azuis. O fato de ter aberto as
portas da percepção com drogas me permitiu também outros graus de
molecularização da percepção: sentir odores em certos lugares, ter reflexos
rápidos, ficar com mal estar em certos lugares como sinal de proteção, ter arrepios
com certas músicas, desenvolver uma sensibilidade enorme em relação ao toque de
tecidos e peles de pessoas, sentir o que certas pessoas estão sentindo em
certos momentos. Todos têm seus graus de loucura, todos são shamãs, porém,
poucos notam ou tem controle disso. Uma forma de controlar é a cartografia, ou
seja, perceber a percepção molecular e a normatizada. A loucura do cotidiano
fica presa no privado, e o privado, a vida do dia a dia, é negado pelo
cientista em seu trabalho. Porém muitas teses são baseadas a partir da moral
dominante, mas os cientistas se dizem neutros, frios. Muitos escolhem a
política dominante como tema baseados em sua tendência à esquerda, entretanto fazem
isso já que desconhecem a micro política e se negam a ver que não há mais
esquerda faz tempo; ou seja, são iguais a todos, cegos como todos; e a questão
moral se revela já que eles são cegos para não ver o insuportável, essa é auto
proteção deles. Muitos cientistas dizem que amam Deleuze, mas têm medo de
experimentar o que ele propõe, já que são moralistas. O intelectual estuda e
estuda e estuda apenas para ter um capital simbólico superior. Ele quer ter
mais saber, quer estudar para ser afetado apenas intelectualmente. Ele fica
preso em seu gabinete tendo doces devaneios, permitidos pelos afetos de suas
leituras, sonha com outros mundos, mas continua preso no caixão, no gabinete.
Na vida privada, nas relações cotidianas ele é igual a todos, a única diferença
é que ele marca sua posição hierárquica quando fala dos assuntos que estuda. Os
okupas buscam em seus espaços outras formas de vida, relações, que dizem
respeito ao intelecto e a subjetividade. Eles querem viver em comum, a partir
do comum, não ser pessoas especiais. O intelectual é especial apenas em seu trabalho,
e muitas vezes não é especial em seu trabalho, já que é moralista como todos. A
crítica quando é algo puramente intelectual não é crítica, mas consenso,
aceitação do mundo como é.
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Muitos não conhecem os portais para
espectralia nas ruas da cidade, mas conhecem os portais que estão na alcova e no
que chamam de “própria cabeça”, portanto, mapear Espectralia é possível a
todos. O Second Life, após sua derrocada, virou uma cidade fantasma; quando
todos saíram dele, as ruas vazias mostraram uma outra paisagem; a derrocada do
Second Life deu uma vida diferente a ele, virou uma Espectralia virtual. Os
poucos que ainda freqüentavam o espaço eram hackers e desavisados. Os hackers buscavam
os desavisados e os hackeavam. O lindo bebê que não fala, apenas gesticula e ri
sem controle, ele está em Espectralia, e, quando sair dela, quando for
recuperado pelos signos dominante, vai esquecer do local em que estava; o bebê a
conhece a fundo, a experimenta de sua forma, e não há como saber sobre sua
experimentação. O espiritismo é uma farsa, mas talvez tenha como base as
experimentações dos espaços dos espíritos, e um deles é Espectralia. É uma
farsa já que considera os espíritos como agentes de outro mundo; sim, mundos, N
mundos, existem no que chamam de “este mundo”.
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Fala
de um esquizo para um neurótico:
-
nós sabemos e muito bem o que
aconteceu, sabemos do seu segredinho sujo, sabemos que você não vai contar para
ninguém... Mas nós anunciamos ao mundo o seu segredinho. Sim, nós sabemos que aquele segredinho sujo
está adormecido dentro de você, você não se lembra, mas vai lembrar, nós vamos
fazer você se lembrar. Nós sabemos
que aquela sujeira, que você guardou para você... Que ela sempre foi natural
para você, mas nós vamos lhe mostrar que era a pior sujeira do mundo. Sim, nós sabemos, todos sabem, e você sabe que
todos sabem.
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A relação do cinema com Espectralia
mostra outros tempos e espaços, portanto é filosofia e medicina. As cenas de Tarkowski duram e duram. O início
de Aguirre de Herzog faz algo parecido, porém o filme é marcado pela presença
de Kinski que ocupa praticamente todo o filme. A entrada de Drácula, em
Nosferatu, enquanto Adjani está se penteando; o cair de Michael Pit em Last Days;
o deitar na relva do Stalker; Pink chapado junto ao piano em The Wall; a
relação coleóptera de Jane e Bill em Naked Lunch de Cronemberg; a chuva de lixo
banhando Sid and Nancy no filme de mesmo nome; o respirar de Giordano Bruno em
sua cinebiografia; todo o curta Catalan de Jarman; a viagem de éter do
alienista em Bicho de Sete Cabeças; o correr de Di Caprio junto as papoulas em
Diários de Basquete.
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Sempre na cama eu me perco com você em Espectralia;
às vezes, parece que passaram horas, às vezes, parece que passaram minutos, e
quando paramos de transar tantricamente, quando voltamos para Cronos, sei
exatamente que estávamos em outro tempo, o do amor, da morte: Amor-te. Ninguém
no mundo conhecia esse conceito, ele foi inventado, criado por nós, sim, você é
meu amor e morte, meu Amor-te. Tenho medo que depois do Amor-te venha a morte,
ou seja, o amor que todos afirmam. Sim, o amor deles é a morte, simbolizada na
neurose, na paranóia, na violência, no medo, no ódio, ou seja, nas paixões
tristes, o amor deles é uma paixão triste. Todos têm inveja do conceito que
criamos, e eles não querem roubá-lo de nós, mas destruir o que nós inventamos,
já que eles amam o ódio, como disse a paixão triste. Sim, nós mostramos a eles
quem eles são, a impossibilidade deles de viver a vida de forma alegre. Sim, o
amor deles é a morte, o nosso amor é amor e morte: Amor-te. Precisei te
conhecer a fundo distante para conseguir chegar perto de você, depois precisei
conhecer todos os pontos de teu corpo te tocando sem nenhuma intenção sexual.
Precisei te mapear para entender o que eu já sabia: sim, você é uma deusa. Nós
estamos juntos desde sempre, eu sou teu pai e você é minha mãe. Você me gera e
eu te gero em um ciclo contínuo. Nessa temporada atual nossa, na qual eu sou
teu pai, você pode virar Elektra e me destruir, ou eu posso afirmar que sou Lúcifer
e te destruir. Se você for mais forte do que eu e quiser me destruir, eu aceito
a derrota. Você pode me matar se o assassinato for uma forma não de amor, mas uma
forma de dar consistência ao Amor-te. Sempre achei feio chorar, não gosto de
depressivos que choram, mas a primeira vez que disse o que sentia, sim, eu
chorei, já que estava arrebatado, maravilhado com a tua beleza. Muitas vezes eu
não te ouço, já que estou junto dos fantasmas, não os meus parceiros de
Espectralia, mas os fantasmas da necrópole, eles dizem: “você não pode ser
feliz”, já que não há felicidade na necrópole; eles dizem também: “junte-se a
nós, seja um de nós, nós lhe daremos tudo o que você quiser.”. Sim, eu me
potencializei rapidamente ao estar perto de você, gradativamente, porém, em
determinado momento, a potência se estabilizou, continuo potente, mas de forma
estável; então eu me acostumei com a potência, e o costume e a estabilidade me
causaram um estranhamento, pensei que o Amor-te tinha virado a morte. Sim,
acredito no Amor-te, mas tenho medo (um fantasma) da morte. Um problema é que
agora tenho que me precaver ao causar meus genocídios, tenho que escolher o
lugar certo para por minhas bombas, não posso mais fazer tudo que quero da
forma que quero, já que isso pode te afetar. Tenho que me preocupar contigo e
isso é uma forma de prisão. O amor deles é morte, já que é um elemento que
sustenta a prisão. Você sabe que em breve eu vou ter que cair na estrada,
voltar para o Tibete, mas eu acredito, sim, que o último amor é mais importante
e belo que o primeiro. Mas você não é meu último amor, você é meu primeiro,
melhor, meu primeiro Amor-te. Como dizia a banda TSOL: “eu não acredito em
amor, eu acredito em magia, magia negra”, e Amor-te é magia negra, magia negra
que não é ressentimento; se há ódio no Amor-te é o ódio ao ódio. Amor-te não é
só um afeto, mas também um portal para Espectralia. A potência das minorias
presentes em você me potencializou, isso criou o Amor-te. Sim, as minorias não
são fracas, são potentes, são as subjetividades realmente potentes; os homens,
brancos, adultos são fracos, maus, assassinos, são a ralé, a pior escória. Eu
andei muito tempo com os nórdicos, fortes, loiros e adultos, eles me ajudaram a
me forjar como arma, mas você como tripla minoria, mulher, negra, jovem, é
muito mais potente que eles. Não é uma questão de se orgulhar de quem se é,
como dizem muito negros, o “orgulho negro”, mas perceber a potência, não se
enfraquecer, não ter medo (fantasma) dos nórdicos que me acompanharam em outras
estações.
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Primeiro fiquei sem celular, assim sem o
relógio dele, depois o relógio do carro teve uma pane, o meu de pulso parou e o
do tablet se desregulou; não consertei o celular, não arrumei o relógio do
carro nem do tablet, e não pus bateria no de pulso. Mesmo com todas as pressões,
principalmente a de usar o celular, estou assim faz meses. Isso conjugado à
alimentação regrada, ao esporte e à meditação está fazendo com que eu tenha
lapsos temporais no cotidiano, momentos de transe. Transes desse tipo eu sempre
tive a partir do controle da alimentação, das práticas esportivas e da
meditação. Porém, sem relógios tudo ficou mais acentuado. Isso é filosofia,
entender o tempo, é medicina, experimentar os tempos, é crítica e política,
resistir ao tempo. O louco só tem presentes, como os jovens e os drogados. Os
torturadores sempre manipulavam o tempo para tornar a tortura ainda mais
insuportável. O relógio ponto e a burocracia. O senso comum diz que a extensão
do tempo é o mais importante. A eternidade, a transcendência, são fábulas
coercitivas em relação ao tempo. A eternidade pode ser agora, e a
transcendência acontece nas ruas, melhor, em Espectralia.
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O improdutivo, o punk, o morador de rua,
aqueles que quebram com Cronos fazem filosofia, mas temos que aprender com
eles. E como deixar de lado nossa postura pequeno burguesa e aprender com os
marginais? Os intelectuais têm medo de
morrer e que a obra em andamento não seja publicada, querem continuar vivendo.
Os pais se tornam pais também por isso, desejam uma vida que seja eterna. O
improdutivo radical quer zerar a existência, nunca ter existido. Quando ele
afirma isso, e quando isso não tem causas profundas como traumas, está fazendo
política, crítica, já que nega o senso comum, que diz que ama a vida, mesmo que
a vida seja a morte. Querer zerar é uma coisa, querer nunca ter nascido é
outra. “Amar a vida” é também uma palavra de ordem da ciência, a qual impõe aos
corpos a higienização, purificação, para que durem o máximo possível.
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A palavra de ordem não está só no
imperativo, e quando está... bem, é a forma mais óbvia de impor: faça isso. “Faça
isso” está presente em tudo: ciência, publicidade, jornalismo, política. Os
sujeitos introjetaram de tal forma o uso do imperativo, que é impossível não dar
ordens até nas falas mais cotidianas: me sigam, curtam, participem, leiam,
venham para o evento, me ajudem.
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Fala
de um crítico esquizo para um estelionatário famoso
- Você mentiu a todos sempre. Você disse a
todos que era o mais forte sempre. Você fez coisas terríveis, matou muitos, já
que eles eram mais fortes que você, ou já que poderiam ser mais fortes que
você. Você sempre berrou como se fosse o macho alfa para silenciar os outros,
principalmente os mais fracos. Quando um fraco parecia forte, você fazia o
máximo possível para enfraquecê-lo. Você mentia já que era um “especialista” em retórica, e os
estelionatários foram forjados na antiga Roma. Você ria de todos, e o riso é uma
das formas de colocar os outros em posição inferior. A maior mentira sua era a
afirmação de que você era diferente de todos os outros, mas todos fazem isso:
colocam os outros abaixo para manter sua pose. E sim, Satã quebrou sua pose,
agora você é uma boneca. Satã mostrou a todos que você é uma puta, sim, uma
puta: má, mentirosa, sacana. Você afirmou a moral dominante a vida toda e matou
em nome da moral, sim, o seu sonho sempre foi ser um inquisidor. Os hereges, os
críticos, os andarilhos de Espectralia para você devem ser mortos já que você é
um moralista. Sim, você é um assassino, não apenas um estelionatário, ou seja,
na prisão você deveria ser respeitado, mas agora todos sabem que você é uma
puta, ou seja, não merece respeito.
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Nos jogos da copa todos ficam centrados
nos minutos, de forma dolorosa, cada minuto é uma batalha, idêntica à batalha
diária do trabalhador; sim, aquele que sofre neuroticamente já que nunca tem
tempo. Mas nos dias de jogos, principalmente do Brasil, a cidade fica diferente
em muitos pontos, uma cidade de outro tempo, Espectralia. Esses pontos são os
que não aglomeram pessoas para ver os jogos. Todos assistem aos jogos e assim
não contemplam Espectralia; sim, eles a negam, têm medo dela. Talvez a forma de
resistência mais importante seja lutar contra o tempo imposto. A greve geral, a
morte do presidente, a manifestação impõem uma temporalidade diferente para a
cidade. Mas o cidadão fica em frente às mídias contemplando, não a cidade, mas
a sua representação indireta. O tempo controlado e o tempo do caos. O
dispositivo crava o tempo cronológico nas costas de quem está sob seu poder, o
tempo não passa. O viciado quando recuperado tem que aceitar Cronos, e o tempo
não passa; na sala de aula, no trabalho, na prisão, o tempo não passa. O Brasil
perdeu de 7 a 1 (71 – estelionato) em um
jogo que parecia uma peça do teatro do absurdo. Um rinoceronte em plena rua de
uma grande cidade, surgido do nada, seria menos absurdo. A copa é espetáculo, e
espetáculo é mentira, ilusão, marketing, 71. O que realmente aconteceu? Ninguém
sabe o que acontece nos bastidores da política; e ninguém quer saber a verdade,
seriam destruídos se soubessem. Não são cegos, eles têm dois olhos, os olhos
que o Grande Irmão criou, e fingem que não têm o terceiro olho. Satã é o ser
mais alegre do mundo, não lhe falta objetos de riso. O cristianismo, a crença
absoluta, durou quantos séculos? Na modernidade virou objeto de riso da ciência,
e ela, a ciência, é objeto de riso de Satã. Os modernos riem dos
obscurantistas, da manada de evangélicos, mas eles são enganados da mesma
forma: não acreditam no que a mídia diz, mas só vêem o que ela permite,
acreditam na esquerda, na ciência – tudo isso é crença, que na verdade é
submissão. Pensando assim, mídia, política e ciência diferem apenas de grau do
obscurantismo religioso. “Vamos ser racionais, lógicos e pensar no óbvio!” Isso
é palavra de ordem que nega o caos. Eles racionalizam sempre, se sentem seguros
longe do caos, mas interiorizam o caos e ele toma a forma de fantasmas, ou
seja, neurose, agressividade, sofrimento, depressão. A psicanálise de
consultório é uma forma de controle: pensar que os problemas são questões
privadas. O analisando olha apenas ao que chama de “si mesmo”. Garotas não
devem ir para o consultório, devem sim se juntar a coletivos de feministas,
sair da bolha, socializar sua vida, se abrir, não se fechar em si mesmas. Trancam
poucas pessoas num espaço durante muito tempo, e dizem que é o mais importante
da vida, a casa e a família; assim, as questões sociais ficam em posição
marginal, e quando se pensa pouco no social, as coisas se mantêm. As redes
sociais permitem que todos tenham a sensação de que estão lutando por um bom
mundo, mas é só discurso; eles berram: “eu luto por isso, eu luto!”, mas é só
uma imagem no facebook, e quando não estão nas redes, é uma conversa de bar. O
intelectual quer formar mentes, ajudar mentes, ele se considera um ser especial
que forma mentes, um líder. Fazer isso é se espetacularizar, querer ser
importante, estar acima dos outros. O punk diz que é ninguém, não é pastor, nem político, não é vanguarda – essa é sua
ética: nega o espetáculo de si.
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O ano 1968 foi o acontecimento, o
divisor de águas – o divisor, o Diabolo. Contando os números temos 15, o número
da carta do demônio no Tarot de Marselha. Deleuze e Guattari, filhos de 68,
falam no demoníaco nos Mil Platôs: Belzebu como o senhor das moscas, devir, as
núpcias demoníacas, vampiros, lobos homens. Os hippies, mesmo que baseados em
Eros, muitos deles tinham interesse, apego pelo satanismo. Outros “aléns”,
diferentes do além cristão, eram atingidos pelas massas a partir da narcose.
Talvez os cristãos sejam os religiosos que menos têm contato com outros mundos;
eles não têm rituais transcendentais; e a droga, como elemento de ritual, usada
pelos hippies, fizeram com eles se interessassem por outras religiões.
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Satã ri da cidade, do modelo de cidade,
desse projeto que não funcionou. O bom cidadão prefere a cidade parada para ter
seu auto móvel. Adultos desejam realizar o sonho de infância: ter um carro caro;
e eles ainda riem das crianças já que elas são crianças, mas eles são crianças.
Os bares ficam cheios no happy hour, já que é a forma de fuga, amortecimento,
para o bom cidadão, mas o bar é apenas um intervalo, melhor, um presente do
controle. O livro 1984 mostrava como o Estado impunha álcool para os
trabalhadores suportarem a vida. O álcool, em seu uso dominante, faz esquecer,
doer menos; mas há usos e usos de álcool, certas subjetividades experienciam
coisas diferentes das dominantes. Aqui o sino toca de manhã e de tarde. Ouço a
sirene do colégio indicando o andamento das aulas. Os carros param nas
sinaleiras; em certos horários, as ruas estão cheias. De noite os bares enchem.
Toda essa movimentação e barulho me entendiam já que são repetições de
repetições. Mais uma segunda, mais uma sexta, tudo é um saco, a cidade é um
saco, e a utopia da selvageria não é permitida para quem sempre viveu na
cidade. Para não sermos enterrados na Necrópole, experienciamos a Espectralia,
conjuramos a vida de Zumbi e desejamos como Fantasmas. “Segundas feiras
felizes” é o nome da banda que tem como hit “Gente que faz festa o dia todo,
todos os dias”. A banda foi forjada em Espectralia. A música é um afeto, a
droga é um afeto. A música eletrônica, simbolizada nas festas e na ovação dos djs,
precisou do afeto do Ecstasy para ganhar consistência. As subjetividades mudam
e junto o corpo, ou seja, mutações antropomórficas. Hoje todo mundo toma drogas
psicodélicas como se fosse água. Quando o Ecstasy apareceu, uma bala deixava
qualquer um louco, depois de um tempo todos precisavam de sete balas para dar
um barato. As gerações que excedem são lastros dos excessos das gerações
posteriores. O corpo muda de geração para geração. Nos anos 80 as manobras de
skate eram tímidas, hoje, em um mês, qualquer garoto pode andar melhor que
muitos skatistas famosos dos anos 70.
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Na boa época dos hippies, os 70’s, todos
estavam felizes, riam, estavam no céu, não na terra. Os hippies tomaram todas
as drogas possíveis nos 70, e nos 80 veio a ressaca; esta – a ressaca – impõe
sentimentos negros: solidão, depressão, desejo de morte. Para suportar a
ressaca dos oitenta, os sujeitos começaram a usar coca, já que cocaína dá forças
para enfrentar qualquer coisa. O tempo da coca e o tempo de Cronos se irmanam,
podem funcionar juntos; o yuppie – o jovem promissor, vestido de Armani,
surgido nos 80, que trabalha o dia todo com um prazer psicopata – é fruto do
uso de coca. Na mesma época, o punk fica cada vez mais veloz, principalmente com
o hard core, e este permitiu o thrash metal, um ápice de som pesado e rápido.
Os vídeos clipes com seus cortes rápidos, apresentando um afeto cocaínico, marcaram
a cultura pop nos 80.
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Kerouac diz em On The Road que não quer parar,
não quer dormir, quer curtir ao máximo; além disso, ele escreveu o livro em
poucas semanas usando benzedrina. Ele queria que o dia tivesse 72 horas para
aproveitar tudo ao máximo. A felicidade impõe isso, querer mais e mais e mais, querer
tudo ao mesmo tempo agora. Deus fez o mundo em sete dias, e o demônio não
inventou o fim de semana, mas o dia de 72 horas, já que ele é Eros. O dia de 72
horas se refere ao afeto do viciado em estimulantes; ele fica três dias
acordado, então esses três dias são na verdade um dia de 72 horas; e 72
invertido, a inversão satânica, se torna 27, o número da morte na cultura pop. A
vontade de “mais” de Kerouac é diferente da necessidade de “mais” dos yuppies,
há uma diferença de natureza entre elas. Kerouac queria “mais poesia na sua
existência”, os yuppies queriam “mais dinheiro”.
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Os sons do primeiro Pink são ondulações
sonoras. O relógio em
Dark Side of the Moon. Os sinos de igrejas do Sabbath – os
sinos que simbolizam certas horas do dia. O som industrial, mostrando a batida,
o tempo das fábricas. Jesus Built my Hotrod, a velocidade máxima do som e da
voz se assemelhando com a dos Hotrods. Os rappers tentam cantar o mais rápido
possível. A desaceleração do Black Metal cria o Black Metal Depressivo. A
poesia de Cooper Clarke era punk e por isso rápida. A bateria de Morris é
hipnótica. Tremolo picking presente na Surf Music e no Black Metal. Alguém
caminhando na rua atrás do ônibus, alguém caminhando chapado na rua. Skip diz
que jovens não devem usar relógios. A velocidade mecânica dos virtuoses da
guitarra. Picasso tenta pintar o mais rápido. Pollock dança junto à tela, com velocidade.
A dança, o ritmo, o afeto, dos shoegazers, tudo muito lento em contraponto à
velocidade dos punks.
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“Cada um tem seu próprio tempo”, isso é
palavra de ordem que esconde que o tempo é controlado. O pet aprende na força
os momentos de mijar e cagar, nas certas horas do dia que o dono tem vontade de
sair com ele. A criança: hora de comer, de dormir, de brincar. Ficam felizes em
viajar, mesmo sabendo que dez horas em um avião é uma das piores experiências.
Vender seu tempo, sua vida, seu corpo, sua subjetividade. O calendário cristão,
o calendário falível da Revolução Francesa; voltar no tempo, se encontrar.
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As artes românticas louvam o excesso, a vida
em excesso, os prazeres diferenciais, os sonhos, delírios, os contatos com o
inferno, com o sublime, com Espectralia. Na literatura, posso citar alguns
autores espectrais sem pensar muito: Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Poe,
Blake, os Beats, Bukowski, o Gonzo, Piva, Huxley, Artaud, Castañeda, Pepe
Escobar, Breton, Bukowski, Fausto Fawcett. Há muitos filmes que homenageiam,
biografam os românticos, e não apenas os românticos que produzem, mas também os
que apenas vivem. Também há muitos filmes com imagens e narrativas que são
claramente baseadas no uso de drogas. Listo abaixo alguns filmes que atualizam
o que disse acima:
Cinebiografias
de artistas viciados: Pollock. The Doors, Basquiat, Medo e Delírio
em Las Vegas, Almoço Nu, Last Days, Stooned, Diário de Adolescente, On the Road,
Get Him to the Greek, The Wall, Não Estou Lá, Factory Girl, Bicho de Sete Cabeças,
Sid Nancy, Total Eclipse, 24 hour Party People, Party Monster, Bird, Velvet
Goldmine, os filmes sobre o Bukowski.
Filmes,
vídeos, desenhos sobre uso de drogas, com uso de drogas ou com imagens
delirantes: A Concepção, Vício Frenético, Laranja
Mecânica, Scarface, Blow, Trainspotting, Born to be Wilde, Paraísos Artificiais,
Gêmeos Mórbida Semelhança. Spun,
Kids, Bully, Catalan de Jarman, Asas do Desejo, Stalker, Simpsons, American Dad
e Family Guy, Garotos de Programa, Pulp Fiction, Canos Fumegantes, Drácula de Bram
Stoker, Ódiquê, Dead Man, Performance, In to the Wild: Zabriskie Point, IF, Natural
Born Killers. Garoto da Motocicleta, Romeu e Julieta do Baz Luhrmann.
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Essa letra, do Pere Ubu, é muito curiosa,
mostra os afetos permitidos pelo contato com Espectralia. O narrador não sabe o
que aconteceu, se foi sonho ou realidade, já que estava em Espectralia, era um Espectro.
Esse afeto é comum no uso de drogas mais pesadas, ou no uso contínuo de
qualquer droga. Como diz a máxima de Woodstock: “se você se lembra é por que
não foi”, já que todos que estavam lá estavam chapados; sim, quem estava lá não
sabe ao certo o que aconteceu. Woodstock
era uma Espectralia repleta de fantasmas maravilhosos.
414 Seconds
That day that
I say I woke up to find a heap of mist
I wake up that day with a shark
Not knowing if I’ve been asleep for moments, minutes or millennia
I wake up that day with a shark
Not knowing if I’ve been asleep for moments, minutes or millennia
I look around, all plants have lived it and died
Did you spiral in the sink?
They are livid and dried
Even in the glass, he looked at me
He says weaver can’t be flied
And I care about dream
The terrible thing that I did in that dream
The thing that woke me up
I ask myself, did I do that terrible thing only in my dream?
Or is the dream simply a hard brink bit of self-deception
When in I dream that I only did the terrible thing that I did
In a dream
What part of the dream is true?
What part of the truth is a dream?
I throw out the coffee to drink the soup
But there are wonders I have to know
I run this happening
I launch myself like a jet pilot jerkin himself from the doom in the far earth below
I throw myself through the door
I fall down the hall
I turn up through the steps
Turn up through the steps
Round the corner, stumbling and flailing
Fumes and exhaust, blackened fluid smoke below it
Running for the bus I cry
Oh God bless love
I have been on that non-stop
Happiness
In that terrible dream
The terrible thing I did in that dream
The thing that woke me up
I ask myself, did I do that terrible thing only in my dream?
Or is the dream simply a hard brink bit of self-deception
When in I dream that I only did the terrible thing that I did
In a dream
In a dream
In a dream
What part of the dream is true?
What part of the truth is a dream?
What part of the dream is true?
What part of the truth is a dream?
What part of the dream is true?
What part of the truth is a dream?
What part of the truth is a dream?
What part of the truth is a dream?
What part of the truth is a dream?
Round the corner, stumbling and flailing
Fumes and exhaust, blackened fluid smoke below it
Running for the bus I cry
Oh God bless love
I have been on this all night non-stop
I have been on this all night non-stop
Happiness
Happiness
Happiness
Happiness
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Parte
2. Registros de sonhos e narcoses em Espectralia
Uma estação de metrô em Roma, localizada
em uma parte pobre da cidade, que parece o objeto de uma foto antiga, muito
antiga. No sonho, Roma, na verdade é Lisboa em época de chuva, que não é
Lisboa, mas talvez Paris.
Uma parte de uma cidade grega é idêntica
a imagem da capa de um livro sobre arte fantástica.
Santa Maria não está localizada no Rio
Grande do Sul, mas sim em Santa Catarina. Em Santa Maria há um clube esportivo
que freqüento; para chegar nele subo os morros da cidade. Em uma parte dos
morros há um penhasco que leva para o mundo dos sonhos; quando entro nesse
mundo minha memória fica totalmente borrada.
Vindo de Espírito Santo de carro chego
em Florianópolis. Lá há um shopping que tem uma piscina enorme, sempre cheia de
gente. E Florianópolis é na verdade Passo Fundo.
Santa Maria, em seu norte, tem uma
estrada que leva a um morro. Às vezes, a estrada vira conjuntos de casas
divididas em linha horizontais, que são casas de praia.
Um lugar que morei na Cidade Baixa tem o
pior elevador do mundo. Na rua do prédio, a Lima e Silva, acontecem festas e
parece que sempre é feriado. Às
vezes, parece que a Lima e Silva continua na parte alta da tristeza.
Em Belém Velho há uma casa que visito.
Às vezes, saio de lá a partir de uma estrada na Serraria, que quase nunca passa
ônibus. Moram na casa um velho e suas filhas e filhos. Eu tenho um caso com
todas as filhas. Mas eu sempre me pergunto: quem são essas pessoas?
Em Barcelona estou passando a temporada
numa estranha casa de repouso. Eu durmo num quarto cheio de pessoas de idade. A
casa de repouso fica quase na divisa da cidade, porém na frente dela há uma
estátua enorme; essa estátua, na “vida real”, melhor, na vida da necrópole
Barcelona, se localiza numa parte central para o turismo.
Entre Porto Alegre e Canoas há um
conjunto habitacional muito bonito, situado de frente a um rio, e eu moro nele
– sempre estou em busca dele. Ali é tipo uma mina de algum mineral estranho, e
o rio é um rio de iodo.
Me mudei para um prédio mais barato, e é
realmente mais barato. No prédio moram garotas da Fémem. Eu tenho um caso com
uma delas e é gostoso estar com ela. Porto Alegre está uma confusão por causa
do dia da independência da Catalunha. Alguém diz pra eu não ir de bike até a
Cidade Baixa já que eu estou na zona sul.
Porto Alegre é Barcelona; sou inquilino
de dois apartamentos situados no mesmo bairro. No bairro há uma piscina de
ondas com água de rio, o fundo é só barro; eu nado nela e faço surf. Em uma rua perto de um calçadão fica um ponto
de prostituição. Eu gastei milhares de reais ou euros ali. Para andar no
calçadão sempre é um problema, ele está dominado por gangues de ladrões
baratos. Um taxista me leva para inúmeros lugares e eu estou bêbado. Eu me
perco na cidade e tenho medo. Depois de um rio há um deserto predominado por um
tom de laranja estranho. O lugar é como se fosse a lua, tem uma paisagem lunar,
mas pintada de laranja. Eu não tenho moradia, mas tenho móveis e eles estão na
rua, eu vivo na rua. Durmo na rua, mas em certo momento uma limusine me leva para
um lugar que não me lembro. De carro vou para uma cidade da fronteira; ali há
um precipício, depois dele há algo lindo, um mundo lindo, e quando eu chego nele...
bem, não mais me lembro. Eu ando de skate em estradas da serra gaúcha. Gramado fica
ao lado de um bairro londrino.
Entre o Brasil e os Estados Unidos ou
Canadá se situa o leste europeu, o leste europeu de algum filme. As cidades
desse leste têm gente estranha, feia e barulhenta.
Um vale pequeno, com um rio sujo, uma
favela, isso em Roma.
Ando de skate em uma lomba no bairro
Tristeza. Chego na rodoviária de Porto Alegre, mas é na verdade um mercado de
Lisboa. A Praça da Alfândega sempre cheia de gangues de rua. De noite essa zona
vira a Oswaldo Aranha que é menos perigosa, mas quando saio de manhã dela, vou por
ruas menos movimentadas, para não encarar as gangues. No alto do centro tem um
mercado com boas comidas, como nele e depois desço uma rua principal que dá no
Parque do Marinha. Entre a parte alta e o parque fica uma praça de Barcelona.
Na praça estão meus amigos okupas, na verdade, tem uma okupa ali, e eu vivo
nela. Sempre pego um taxi nesse ponto, mas os taxistas sempre me roubam. Uma
parte de Porto Alegre, a mais pobre, eu chamo de Viamão. Ali tudo é velho e
decadente; tem um parque de diversões em Viamão.
Sempre sonho com um local que morei na
Cidade Baixa; no outro lado da rua há uma casa chique, que é um albergue para
jovens ricos. Eu sempre uso o albergue sem pagar, ele fica de lado da UFRGS.
Muito perto fica um bairro elegante, no qual amigos moram, que conta com casas enormes;
nos jardins das casas todo mundo toma banho de sol.
Estou em Gramado, hospedado em um hotel
caro; porém, os quartos são coletivos; durmo em um deles com várias outras
pessoas.
Passo noites tomando bola dentro de um
bar que é uma farmácia. Todo mundo está deitado no chão, emboletado, abraçado,
tudo bem quentinho.
No bairro Cristal há um ginásio de esportes.
Nas escadarias do ginásio traficantes vendem cocaína.
Do lado de um clube na zona sul, tem a
casa de um traficante. Compro coca ruim com ele. Tenho medo de ir ali porque a
polícia sempre está por perto.
Passo os sinais vermelhos, não consigo
diminuir a velocidade.
A casa dos meus sonhos ficava na parte
norte da zona sul. Era uma casa enorme, uma mansão; mas ela era um local
amaldiçoado.
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Eu tinha uns 14 anos, tava com meu beque
e fui até um terreno baldio junto ao Rio. O terreno era ladeado por mansões,
comuns no Bairro Tristeza. Eu sempre fumava ali com minha turma. Nesse dia, tava
sozinho, gostava também de ficar sozinho com meu beque. Queimei o beque e
fiquei curtindo o pico: a praia deteriorada, um clube náutico, algumas fábricas
mais longe no horizonte, o céu. Era um dia quente, com céu azul. Fiquei
curtindo o céu, as nuvens, e fiquei intrigado com uma nuvem enorme bem na minha
frente. Ela tinha o formato da cabeça, do perfil de Cristo. Era ele, de perfil,
com barba, cabelos compridos. Eu tava na praia e ele tava lá no céu. A nuvem de
longe parecia também uma montanha, mas com o formato da cabeça de cristo. A
imagem era tão perfeita que pensei: podia chamar o pessoal pra dar uma olhada,
mas não quero perder isso. Interessante que eu não era crente, até era um ateu
radical. Sentia que em certos momentos, com o movimento da nuvem, a imagem
continuava a ser do mesmo Cristo, mas de ângulos diferente. Devo ter ficado
horas ali parado olhando, ou posso ter ficado minutos, não sei. Mas num momento,
a nuvem começou a se dispersar, e isso foi brochante, fiquei puto; daí eu fui
embora. Eu tava ainda chapado e bem chapado, tanto que, na minha viagem que
continuava, eu pensava: porra, a nuvem mais legal e perfeita que já vi e ela
desaparece?! Na minha loucura não conseguia entender que nenhuma nuvem poderia
ser tão perfeita, que isso era parte do barato; mas como o barato era contínuo,
eu estava sempre de barato... bem, o que era real ou ilusão? Naquela época o
real “na real” era uma grande ilusão, e a vida chapada era também uma ilusão só
que muito mais divertida.
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Eu nunca tinha tomado morfina injetável;
mas sabia que era algo realmente forte. Tinha uma ideia na prática do efeito de
opiáceos. Só que daí quebrei o braço, tive que fazer uma operação; quebrei o
braço fazendo uma manobrinha numa garagem de bûs na Azenha. Eu sempre mandei
bem ali no espaço, tirava umas manobras aéreas legais. Só que fiquei um tempo
sem andar, e tentei fazer uma manobra que não devia ter tentado. Voei alto e
caí no chão, com todo o peso no meu pulso esquerdo. Quando caí, na hora pensei:
merda, me quebrei. Segundos depois,
quando o corpo produziu a sua química e a dor aliviou, pensei: deu nada, só que
olhei pro meu braço e ele tava torto, e a dor bateu. Daí me levaram prum
hospital de pronto socorro. Eu não conseguia pensar direito, doía demais.
Quando me atenderam, expliquei o que tinha rolado, e fiz umas piadas, não ia
perder a oportunidade de rir da situação. Depois disso, fiquei mais de uma hora
esperando para ser atendido e ia ter uma festa na mesma noite; pensei: tá, eles
metem um gesso no braço, tomo um analgésico e já era. Daí sou atendido e o
doutor diz: foi uma fratura séria, você terá que fazer uma cirurgia. Daí fiquei
puto, odeio cirurgia, mesa de operação e sala de recuperação. Daí eu tava lá na
sala de recuperação, depois da cirurgia, e disse pra enfermeira, isso tá doendo
muito, não vou aguentar. Daí, ela me deu um pico e senti um gosto amargo na
garganta, ela tinha me dado morfina. Daí pensei: melhor, eu relaxar... só que
foi uma noite horrível, eu dormia, acordava, dormia e acordava. Eu tinha umas
alucinações estranhas, mas muito vivas, como sonhar com imagens duplas. O que
são imagens duplas? Eu não sei, mas me baseio no que estava sentindo e
percebendo, nunca havia passado por isso e nem li relatos do tipo. Mas as
imagens duplas: digamos que uma imagem de sonho seja exposta em uma tela, como
num filme. Na minha viagem eram duas telas, não uma tela do lado da outra, mas
duas telas apenas, uma na frente da outra, e eu podia ver, sentir, perceber as
duas ao mesmo tempo – isso é impossível de explicar, e por isso que é legal. A
noite foi péssima, principalmente, por estar numa cama de hospital, numa sala cheia
de gente doente em volta, muitas desesperadas; eu não podia sair da cama, não
podia fumar meu crivo e nem sabia se a operação tinha ficado legal.
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Eu li numa revista que um músico, o
Manson, tinha triturado ossos humanos e fumado. Cinco anos depois conheci um
cara que colecionava ossos humanos. Não era nada demais, mas ele ia no
cemitério, nas valas de indigentes, e sempre encontrava ossos. Ele limpava e
guardava. Era um cara novo, que tinha depressão, namorava uma mina feia, mas
era bem criança, na dele. Eu conversava com ele, já que ele morava perto do
lugar que eu morava. Ele era pobre, o pai era zelador em um cortiço. Esse mano
curtia rock, lia sobre rock, então eu tinha um certo interesse nele. Era um
cara querido, uma ou outra vez eu fui na casa dele, e num desses dias ele
disse: cara, você é legal, vou te dar um presente; e ele me deu uma rótula de
um joelho humano, esteticamente bonita, com linhas regulares. Daí um dia eu
tava no meu ap de frente pra João Alfredo, essa rua que hoje em dia é central
em Porto Alegre... é, eu tava na janela, vendo a rua e lembrei da história do
Manson, que ele tinha fumado ossos humanos. Na mesma hora, um mano meu tava
comendo uma mina no quarto. Daí eu pego a rótula, trituro uma parte até virar
pó e fumo. Só que quando dormi, depois de ter fumado, tive um sonho muito louco,
eu me vi num cemitério, junto com esse mano e essa mina que ele tava comendo; a
gente fazendo a festa no cemitério. Na real, não sei se foi sonho, ou se foi um
delírio acordado ou se foi coisa de outros mundos, ou tudo junto, já que na
época tava tomando muita coisa.
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