domingo, 29 de outubro de 2017

viver é consumir e consumir é enriquecer ainda mais os ricos

O conceito de Multidão de Negri se refere ao desejo de um mundo-espaço liso, ou seja, sem barreiras geográficas. A multidão: as cores do mundo – negro com branco com amarelo; n cores, misturas de cores, a hibridização é a cor da multidão. A multidão: os sexos, os gêneros, todos eles e sempre em relação, o que importa é a relação. A multidão: os pobres, os que desejam a pobreza. Não há segmentos duros na multidão, classes, castas; não há hierarquias, comando central, a multidão é o rizoma. Os anarquistas são internacionalistas e lutam contra todo tipo de opressão; os anarquistas fazem parte da multidão, talvez sejam sua linha mais ativa na luta contra o controle. O corpo anarquista é um corpo em luta constante.
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O povo – a ideia de povo, a afirmação do povo – é um tipo de individualismo. Desejam o bem-estar de seu país, só se interessam por seu país e por seu povo. Só pensam como o seu Estado-nação deve ser reformado. Dizem que pensam no mundo, mas, em primeiro lugar, está sempre o seu país. “Eu, minha família, meus amigos, meu país...”, as preocupações se centram nisso. Os sindicatos fazem parte da mesma lógica: lutas setorizadas, com suas demandas, cada um cuidando do que é seu. O feminismo é, muitas vezes, localizado, não se relaciona com as outras lutas; certos movimentos étnicos fazem o mesmo. Isso é a lógica do “eu e os meus”. A necessidade de posse. “Meu carro, minha casa, meu corpo, minha mulher, minhas ideias”; e quando é dito: “nosso”, esse “nós” já exclui muita coisa e é um sinal de individualismo, um individualismo "inclusivo". “Minha cidade, ou nossa cidade, nosso país, nossa identidade”.... é estranho alguém dizer isso. Sua cidade, seu país? Mas qual poder tem em relação à estrutura urbana, em relação às leis, à administração, à política, a economia? E não há nação soberana, elas dependem das diretrizes do Império. A cidade, as grandes cidades são moldadas existindo poucas diferenças de natureza entre elas, são indiferenciadas, não é a "sua, nossa" cidade, é "qualquer" cidade. Que poder tem sobre a identidade do povo, identidade que compartilha com os outros e diz que é sua, “nossa”? A identidade é aceita naturalmente e desejada.
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“Meu corpo? ”. O corpo, o simbólico em relação ao corpo, isso é imposto desde cima; a máquina abstrata produz, comanda a ideia de corpo e, portanto, também, o dito dono do corpo. Isso é aceito naturalmente e desejado. O corpo humano é o mesmo desde sempre? A tecnologia, o ambiente, as ciências, as formas de trabalho, de sujeição, muitas coisas produzem diferenças no corpo humano. Os corpos dos antigos, dos medievais, dos modernos, dos pós-modernos são iguais? O corpo de um trabalhador braçal é o mesmo de um trabalhador intelectual? O corpo pós-moderno é talhado pelo bem viver da publicidade e da área da saúde, ele é moldado por novos esportes, novas drogas, novos medicamentos, pelas mudanças no tecido urbano, o corpo pós-moderno é esculpido por novas doenças, vírus, tipos de alimentação; mas a beleza do corpo pós-moderno é a hibridização que anuncia o fim das barreiras geográficas, é o corpo com n sexos, sem identidade, o corpo-monstro criado a partir das micro revoluções Queers. O corpo que ouve em um i pod é um corpo diferente do que ouve em um walk man. O cavalo de corrida e o cavalo de arado, o jogador de futebol e o skatista, a vagina que faz pompoarismo e a vagina passiva – cada corpo tem suas especificidades. As diferenças físicas dizem respeito à relação com a vida; e os corpos estão sempre em relação, não se limitam a um organismo, organizado, estratificado, hierarquizado. Dizem que são diferenças corporais pequenas, infinitesimais; talvez sim, mas esse discurso revela que não dão importância exatamente ao mais importante: o capilar, o molecular.
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A luta setorizada. “Vamos todos juntos lutar, mas cada um por seus direitos; se todos lutam por seus direitos, nos encaminhamos para um bom mundo. ” Cada profissão luta por si, cada classe por si, cada sexo, gênero, cada raça .... Mas por qual motivo todos não lutam realmente juntos pelo fim de todo tipo de opressão? Isso fizeram as lutas da virada do século, isso fazem os anarquistas. Uma okupa em Porto Alegre está muito mais próxima de uma okupa em Barcelona do que do sindicato dos municipários de Porto Alegre. Um coletivo musical auto gestionado, que atua no centro de Porto Alegre, está muito mais próximo de um coletivo do mesmo tipo de Barcelona do que do showmício que acontece no mesmo local que atua. A questão geográfica, a necessidade do solo, do que dá para tocar, do visível, do que parece próximo – “meu corpo, não uma linha de um corpo sem órgãos. O que é meu está próximo, posso ver e tocar, tenho poder sobre. Meu corpo, minhas regras, gosto de regrar o corpo. ” O macho diz: “homem nenhum toca a mão em mim”; a feminista também. O corpo sem órgãos não tem regras, só relações, a hibridização. O corpo como posse pessoal é o corpo exclusivista, moralista, apartado, raro, para poucos. A burguesia cultua exatamente isso: ficar apartada, estar entre poucos, pessoas raras, ditas especiais, únicas. Unicidade, raridade são características da arte burguesa. Na casa noturna a menina pequena burguesa diz isso: meu corpo é para poucos, é raro, exclusivo, artigo de luxo, caro. É uma ilusão achar que manda no seu corpo; o controle manda no corpo, impõe a ideia de corpo. Tem medo de um pênis dentro do seu corpo, mas não tem medo de ingerir o lixo das indústrias farmacêuticas e alimentícias; não está nem aí com a poluição das cidades que mata aos poucos o corpo; não acha as modas algo a ser criticado, e as modas padronizam os corpos. “Meu corpo, minhas regras”? O CSO não tem regras, apenas programas, experimentações, relações entre termos diferente, núpcias demoníacas.
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Viver é consumir e consumir é enriquecer ainda mais os ricos; ele sabe disso, mas não pensa sobre, não quer ficar estressado, só quer viver sua vidinha na boa. Ele acorda as sete horas da manhã num dia da semana. Dormiu com medicações (das marcas tais) vestido de cueca e camiseta (marcas tais) em uma cama (marca tal) no quarto do apartamento alugado – apartamento de propriedade de um engenheiro que é dono de todo o prédio. Sai da cama (comprada em um shopping), vai até a cozinha, abre a geladeira (marca tal) e pega uma garrafinha de iogurte (tal). Depois de beber o iogurte, fuma um cigarro (marca tal) na frente do PC (marca tal); ao seu lado uma janela mostra um parque da cidade – uma cidade metropolitana que está se encaminhando para se tornar modelo. As contas estão pagas: luz, internet, telefonia móvel. Está tentando faz tempo trocar de plano de internet e não consegue. Escova os dentes com a pasta de dente tal e a escova tal; toma banho se ensaboando com o sabonete tal, usa o shampoo tal e se seca com a toalha tal. Veste tênis tal, calça tal, camiseta tal e sai de casa. Pega o seu carro popular tal, que está com metade do tanque cheio de gasolina comprada num posto tal. Nas ruas muitos carros: 8 horas e 15 min. Os carros são todos novos e muitos são caros. Há um fluxo nas ciclovias – hipsters que se dizem alternativos. As pessoas que estão nas ruas vestem roupas tais, compradas em lojas tais, e todos têm smart phones. Prédios enormes estão por todos os lados, muitos são novos, frutos do empreendedorismo de grandes construtoras, que conseguiram financiamento de grandes bancos. Ele demora 45 minutos até chegar no trabalho, mas se fosse em outro horário, demoraria metade do tempo. Chega no prédio da empresa, micro, na qual trabalha. A sala é situada em um prédio de médio porte, propriedade de um único sujeito. Ele entra em seu nicho, pega seu notebook marca tal e começa a trabalhar. Os outros cinco colegas que estão na sala vivem uma vida praticamente igual a dele; há uma diferença pequena entre salários. O trabalho diário dura mais ou menos 8 horas. A empresa funciona como outras empresas: hierarquias, horários, tarefas, relações entre os funcionários... porém, as hierarquias não são duras, já que o dono tenta ser o mais amigável com seus funcionários; ele sabe que isso ajuda otimizar o trabalho. Ela, a micro empresa, foi montada a partir de uma herança recebida pelo dono. Ele, o familiar que deixou a herança, teve como objetivo de vida acumular o suficiente para ajudar os seus. O dono da empresa era funcionário público, já fazia mais de uma década, mas com o dinheiro resolveu realizar seu sonho, ser o seu próprio chefe. Quis recomeçar a vida com 40 e poucos anos. A empresa não dá muitos lucros, mas como ele tem ainda um bom dinheiro guardado, não se preocupa com isso. Na hora do almoço, os funcionários vão até um mercado próximo, que faz parte de um monopólio da região, e compram sanduiches e coca cola; eles almoçam isso em uma praça. Depois de comer, eles fumam um baseado e conversam sobre as viagens que querem fazer; sonham com Londres, curtir os pubs, tomar boas drogas. As ambições deles são: acumular grana, ter ou trocar de carro, viajar, ter dinheiro para ir em bons restaurantes e casas noturna da moda, comprar roupas de tais e tais grifes, trocar de smartphone, de note book. Todos se dizem chateados já que não dá para comprar produtos em pequenos mercados, a rede que monopoliza a cidade tem preços mais baixos. Mas comentam felizes que na rede há promoções de tais e tais produtos. Eles se sentem bem de certa forma com a vida; são jovens, o trabalho é criativo, todos são meio que parceiros. Eles voltam para o trabalho, e quando termina todos vão para um bar tomar cerveja. Como é dia de semana, escolhem um bar com cervejas baratas. O bar fica em um bairro boêmio e dá certo lucro para o proprietário. Ele vende bebidas de tais e tais marcas, mas está pensando em montar um acervo de cervejas artesanais. Os poucos pratos do bar são feitos na casa com produtos comprados nessa rede que monopoliza a região. O dono pensa se deve ou não pedir um empréstimo para um banco e assim reformular o espaço. Todos, o pessoal da microempresa, sabem que devem economizar – é a regra. Quem quer pôr dinheiro fora? Eles não são loucos. Não se interessam muito por política, votam já que são obrigados. Não veem como algo negativo fumar maconha, mas depois de velhos passaram a gostar de policiais.
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Quem comanda uma subjetividade? “Eu penso”? “Minhas ideias”? As pautas e agendas das conversas, das discussões são impostas pela mídia, e isso é o mais visível, já que a máquina abstrata, o controle, comanda tudo. Todos aceitam a linguagem, o posicionamento das mídias, isso é naturalizado.
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Os pós-modernos são pós humanos, são monstros, são estranhos para os outros e para si. As mudanças constantes impostas pela máquina os coloca em uma posição de estranhamento, não sabem quem são e muito menos o que serão. Ninguém se reconhece, tudo é estranho, até as modas são entranhas. Um reflexo disso é a tentativa de reviver identidades, a busca de identidades duras, fascistas.
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O espião, o estelionatário, o policial corrupto, os que praticam golpes, são geniais. Sabem mentir, inventar, criar ficções. Criar uma verdade é criar, ou seja, é ficção, algo diferente de encontrar uma verdade; se não é verdade então é uma mentira: viva os cientistas mentirosos! Alguns pesquisadores em campo na cidade não sabem direito quem são, não reconhecem a si mesmos... quem são? São cidadãos sofrendo com a opressão da cidade ou pesquisadores da opressão da cidade. Quando atua em um movimento social, o que é? Um ativista ou um pesquisador. Um amigo meu está aplicando um golpe. Ele está sem grana, saiu da prisão, tá na ruim. Ele pede nos semáforos dinheiro para comprar leite especial para a filha – mas é um golpe. Ele é alto, bonito, ele sabe sorrir, olhar da forma certa para quem está nos carros; quando ele mostra o cartaz pedindo leite, ele faz uma cara de esperançoso, de um pai de família em crise financeira, que é obrigado a se sujeitar – ele faz tudo isso muito bem. Mas ele não tem filha, é um golpe, e ele é bom nisso. Outro amigo meu é um pesquisador. Ele montou uma barraca de cervejas artesanais. Ele vende as cervejas, usa uma caminhonete velha, se apresenta a todos como um comerciante pequeno, de poucos recursos. Mas os recursos para montar a barraca, tirar a licença, para ficar no ponto foram pagos pelo financiamento do grupo de pesquisa dele. Ele está dando um golpe, é um cientista fazendo seu experimento. Em Barcelona me intimaram uma vez já que eu estava sempre em uma okupa e ninguém sabia quem eu era. Um dia me encararam e eu encarei eles, e tive que dizer que era um cientista. Nas festas eu minto, digo que sou artista, nenhuma gatinha de vinte e poucos anos vai estar interessada em um doutor. Os adolescentes mentem. Em pesquisas, os entrevistados mentem. Mentir envolve uma criação, é mais difícil do que dizer a verdade. É feio mentir para conseguir algo, mas mentir para ser criativo, isso é poesia. E não é tão feio assim, mentir pode ser uma questão de vida ou morte. O adolescente mente para os pais, para os policiais, para o professor. O capitalista, o político, eles mentem, mas daí a coisa é diferente; mentem para conseguir poder, mentem e muitas vezes acabam matando muitos. Pequenos golpes são louváveis, mas não os grandes golpes daqueles que querem mais e mais: carne podre, trabalho escravo, guerras...
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Eu posso dizer: eu não lhe traí, eu comi ela sim, mas você estava junto, e você gostou, mas nem sabe, não se tocou que estava junto. Mas quando a sua vagina mente, quando seus olhos mentem, quando mente que está bem a meu lado, tudo isso dói. Você nunca vai me trair, estamos juntos mesmo separados, e juntos com o mundo quando juntos. O exclusivismo: “a vagina que é minha, a boca que só me chupa, o pau que é só dela”... Desejos individuais, machismo por toda a parte – e as feministas repetem isso. Tentativa e erro, experimentação. Não há modelos, “somos” todos monstros e “a gente” tenta e erra, tenta e erra. Erra comigo, não me acerta! O feminismo por vir está aqui em algumas coisas, o machismo ainda está aqui em muita coisa, entre homens e mulheres, machos e feministas. Não há agenciamento puro, sempre há o erro, mas há aqueles agenciamentos em que os processos mostram um mundo atual especial. Eu chorei quando você me mostrou seus dons, que eram técnicas milenares, eu fui comido por você, deusa mágica, e pelos meus amigos do oriente, fui comido pelas belas meninas-meninos das okupas, fui comido, mas no meu pau, e meu pau era apenas uma linha cósmica, ou seja, não um pau, mas um canal. Estavam por perto ratos, chatos, caretas, mas “nós” todos somos chatos e caretas, “a gente” é isso, só que em boa parte do tempo “a gente” tenta ser zen-budistas em narcose; tentativa e erro. Amo errar com você. Eu te amo. E o que mais amo é isso: os momentos em que eu não sou mais eu, um corpo individuado, e você não é mais você, e “nós” não somos mais dois, somos apenas moléculas entre o céu e a terra em dança, trepada cósmica, amor transcendente que acontece no cotidiano.
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Tem coisas, muitas, que grudam nas subjetividades de tal forma que parecem naturais. Ainda falam em natureza, mesmo que o projeto da modernidade tenha sido acabar com a natureza. Nada contra a tecnologia, a técnica sempre acompanhou o homem; ela aparece e daí muda os homens, muda o mundo. A tecnologia está a serviço do Império, mas também é uma potência da multidão. A máquina vai destruir o homem? Não, o homem destrói o homem. A natureza é vista como um bem, um objeto, depois que destruíram ela. A destruição da natureza já aconteceu; mas o medo em relação da tecnologia é o que? Remorso humano... tipo quando a gente sacaneia alguém e depois sabe que vai ter volta. Mataram a natureza, matamos, e agora a tecnologia vai nos matar! Vai ter volta!
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Odeiam a todos, se juntam para lutar contra os outros, quando sozinhos lutam entre si. O ódio mantém o capitalismo; passar por cima de todos para ter mais e mais; mentir, manipular, matar para ter mais e mais e é isso: mais e mais. Quantos morrem para alguém ter um apple, um nike, compras no shopping? Que se foda a natureza; a modernidade venceu. Quem está dentro do sistema mata outros, mata formas de vida. E ninguém está fora do sistema, todos “somos” assassinos.
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