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Perceber a
transversalidade é criar um mapa, uma cartografia, dos elementos heterogêneos
que agem em comum, como os inúmeros campos do saber e suportes diferenciados de
arte agenciando com a política dos movimentos em rede. Tenho como uma das
hipóteses, que esses campos têm em comum a impureza, que é uma das
características da transversalidade. São impuros já que não têm barreiras
definidas, agenciam entre si e com outros campos. Obviamente essa é uma das
formas de pensá-los, já que os mesmos podem se apresentar como campos puros,
definidos, bem organizados, ou mesmo, pode haver o desejo de que eles se
purifiquem.
O apagamento da ideia de
autor pode ser um tipo de transversalidade, quando não há centralismos de um
sujeito pensante, mas os discursos de inúmeros sujeitos e coletivos. Estilos
diferenciados de escrita em uma mesma obra é um tipo de transversalidade. O
corpo queer é um corpo transversal, uma soma de sexos e gêneros. Porém, o mapa,
a cartografia, também pensa os centralismos e suas linhas de fuga, a linha
transversal entre as dicotomias, ou seja, poder e potência. O devir é a minorização de um termo maior – como
o que acontece quando teorias de campos consolidados tratam da comunicação, um
devir comunicacional desses campos; “nesse caso” o devir e a transversalidade
entram em uma área de indiscernibilidade, são conceitos com suas
especificidades, mas, portanto, irmanados. O conceito de monstruosidade se
refere à transformação de corpos modernos, tradicionais – família, cidade,
corpo humano, etc – e pode ser usado para pensar as conjunções de campos de
saber. A transversalidade é monstruosa, pode ser, o devir é, o mapa busca a
monstruosidade. O conceito de sujeira,
impureza, que é uma crítica à assepsia, não é a monstruosidade, mas uma linha
dela.
Esses conceitos se
conectam e podem se embaralhar de tal forma que não haja distinção aparente entre
eles; o mapa vai sendo montado, ele pode mudar de forma, de elementos, está em
devir. Aquilo que se percebia como potência, linha de fuga, pode se mostrar de
forma diferente. O mapa é complicado, às vezes funciona, às vezes não; pode funcionar
por uma tarde, uma estação; é uma experimentação aberta ao erro, à sujeira, ele é impuro.
Há um tipo de percepção,
que creio ser fundamental para pensar a transversalidade: a percepção
molecular. Esta ajuda a perceber aquilo que é impensável para o senso comum,
possibilita sair das simplificações do mundo, como dicotomias, dualismos, modelos
– além das dicotomias, entre elas, acontece muita coisa. Essa percepção é o que
permite a cartografia, faz parte da cartografia. A cartografia pode ser chamada
de crítica também, a crítica radical, de Deleuze e de Negri. Cartografia,
porém, não é método, é uma forma de existência que afirma o vitalismo, diz
respeito a alianças, a um grau de loucura desejada, a cartografia é a
experimentação de fluxos não normatizados.
Para Deleuze, o corpo, os
gêneros, a sexualidade, a língua, a comunicação, os cidadãos sedentários e suas
cidades, a base da psicanálise, a arborescência, a busca da raiz, a sanidade, os
segmentos duros como casa, escola, empresa, são instrumentos de controle. Então
ele cria conceitos que são linhas de fuga em relação a tudo isso. Negri faz
algo parecido, mostra que a ideia de Estado nação, de povo, a noção de união, a
política dominante, as barreiras geográficas, são imposições do poder – o
Império – para impedir uma real democracia global; e contra o Império está a
Multidão, um de seus principais conceitos, talvez o que tenha sido mais
apropriado nos últimos anos.
Como disse, a crítica deve ser radical,
deve-se mapear as construções do poder, do controle, e suas linhas de fuga. A sujeira é um conceito anti identitário,
contra o controle, fora de controle. O controle, conceito que trabalho desde o
doutorado, é a circunscrição, a limpeza, a higienização, é a criação de um mundo
simples que nega o devir. Os discursos da área da saúde e do urbanismo ganham destaque
na pós-modernidade na busca de cidades e corpos higienizados. Um dos discursos
contra os okupas é sobre a insalubridade dos seus espaços, já que estes podem
não ter acesso a certos serviços como recolhimento de lixo. Também, as pessoas
que fazem parte das okupas têm um visual estranho, sujo: cabelos compridos, mulheres
que não se depilam, visual punk, neo hippie.
Há uma assepsia acadêmica,
não é qualquer um que entra em uma universidade. O texto acadêmico é isso:
pouca coisa é permitida. Porém, cheguei à conclusão de que certos processos são
expostos de forma mais eficaz, interessante, especial, a partir da arte; muitas
vezes as ciências congelam os processos de tal forma, que eles perdem sua
potência. E o mapa é exatamente uma linha de fuga da fotografia dos processos.
O ensaio, a crônica, são
gêneros menores, pouco delimitados, sem definições precisas, são inclusivos,
muito mais que o texto acadêmico. Uma linguagem inexata expõe muito mais o
descontrole, certas linhas de fuga na cidade do que um estudo de caso. Não vejo
problema em se produzir ciência como se produz ficção, já que é uma ficção, se
torna ficção quando despida do fetiche de se atingir as verdades. Ou seja, a sujeira, a impureza, a transversalidade
são as misturas, as hibridizações, os agenciamentos, as relações de inclusão entre
termos diferentes contra a exclusão, a união a partir de identidades.
O que entra, quem entra,
o papel de cada um, sempre a partir de lógicas hierárquicas, atravessam
dispositivos, como a cidade, mas essa mesma cidade é atravessada por linhas de
fuga. As okupas não são casas de casais, não são escolas, não são empresas, mas
há pessoas que vivem nelas, produzem saber nelas, produzem nelas outras
alianças entre pessoas, outras formas de vida.
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Após o contato direto com
os movimentos em rede e a leitura constante da filosofia da diferença são
criados outros valores, outras formas de vida, de existências, mesmo a percepção
e a afecção se modificam – isso é um exemplo de dessubjetivação; portanto, há
uma questão existencial na pesquisa. A academia forma pesquisadores, mas certas
pesquisas, principalmente as críticas, permitem linhas de fuga dos padrões
dominantes. Essas linhas de fuga quando atingem o pesquisador criam uma radical
dessubjetivação.
Mas aconteceram mudanças
que atingiram a multidão global, sua subjetividade, nos últimos anos (e
obviamente me atingiram). A partir das lutas de 2011 – dos indignados espanhóis
e do Occupy
Wall Street – ficou radicalmente fácil produzir em redes descentradas e
o processo assembleário se tornou unânime. As redes de assembleias, que
funcionam e muito bem, apresentam uma opção para a hierarquia política. Muitos
mudaram, os movimentos, pessoas, teóricos, e eu estava no meio disso tudo; e
mesmo assim, o discurso dominante parece negar essas mudanças já que dá valor
apenas para a macro política. A cartografia, o pensamento sobre a
transversalidade, é essencial para perceber que já não somos mais os mesmos.
Jovens de 15 anos nas ocupas-escolas têm uma compreensão fina de
redes; facilmente os okupas – também jovens – produzem sem hierarquias; o punk
– alguém presente em okupas, mas que muitas vezes se nega a fazer parte de
qualquer tipo de organização, mesmo que seja auto-organização – é radicalmente
contra toda forma de opressão. Estes conhecem e praticam uma outra vida,
impensável para a subjetividade dominante. Ou seja, eu como pesquisador aprendo
com eles essas relações diferenciais, e isso afeta minha existência. Perceber
isso é cartografia; isso também é a transversalidade, quando meu papel fica
borrado, quando saio da minha posição de doutor, quando ela significa pouco, já
que estou com eles para aprender e viver, aprender a viver.
Fugir de transcendências,
hierarquizações é uma questão política, ética, estética, existencial. Traçar
linhas de fuga é construir mapas. Não há problema em errar, sempre se erra; a
assepsia vê o erro como algo negativo, mas o erro é o meio, estar no meio,
experimentando. Resolver um problema é chegar a um fim, mas importa o meio, os
problemas. Okupam um espaço e depois são desalojados, mas depois okupam um
novo; uma okupa não busca uma finalidade, é um meio para se estar. Uma
manifestação busca um fim, mas há os processos, as experimentações.
No momento que se nota
que a crônica ajuda e muito na produção pelo seu estilo, isso não é uma questão
estética, mas sim ética. A arte permite coisas impossíveis para a escrita,
pesquisa científica; já falei isso e insisto que deve ser mapeado. Uma tese é uma
tese, um poema é um poema; cada um tem uma potência própria. E criar dicotomias
do tipo: arte ou ciência, realidade ou ficção é criar ilusões. Há artes, formas
de arte, e há teses, tipo de teses. Teses podem se aproximar de tipos de artes
mais do que outros tipos de arte. Artes ainda se aproximam da racionalidade
moderna, outras já na modernidade anunciavam a pós modernidade.
Não aceitar as coisas como
elas são, buscar a diferença, isso é também cartografia. E não estou dizendo de
forma alguma: façamos a transversalidade. Apresento essas linhas atuais na
pós-modernidade; o que eu faço é ver valor e expor isso textualmente, o que já
é feito por teóricos e movimentos. Negri não fazia a proposta de que a multidão
fosse formada, apenas atualizava em seu trabalho a produção da multidão.
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Deleuze e Negri não são autores
bem vistos pelo campo do saber. São poucos que se afetam com suas obras ao
ponto de quererem estudar seus conceitos. Primeiro talvez por certo romantismo
que atravessa suas obras, como perceber a pobreza como uma potência e a riqueza como algo negativo, já que
os países ricos sustentam falsas democracias.
Eu já fui chamado de
romântico por esse mesmo tipo de posicionamento. Para mim, as lutas dos
movimentos em rede são um valor em si mesmas, como muitos afirmam. Se o Brasil
entrou em uma crise política, que anuncia um novo fascismo, após as lutas de 2013 – e algo parecido aconteceu
na Espanha a partir das lutas de 2011
– ao mesmo tempo, os coletivos em rede se fortaleceram. Ocupas foram criadas
em escolas e universidades no Brasil; jovens, mesmo com 15 anos, reproduziram a
forma da rede, a transversalidade,
para se organizar, ou seja, isso ficou comum, é um comum entre os coletivos.
Deleuze apresentava uma descrença em relação
ao futuro da revolução, se interessava, sim, pelo devir revolucionário das
pessoas; ou seja: as formas de resistência frente às imposições do controle, o
devir.
Em relação
à comunicação, ele pensava que ela estava podre, daí a necessidade do silêncio.
Deleuze nunca disse que o Estado era necessário e também nunca afirmou o contrário.
Já Negri, um autor que viveu as lutas dos movimentos por outra globalização na
virada do século, que se interessou pela nova esquerda na América Latina, tem
um posicionamento mais romântico. Para ele, a revolução é possível, a
comunicação pode ser contra comunicação, e o poder – o Império, sua
forma social, o controle – está sendo posto em jogo pelos movimentos de multidão. Essa tríade
talvez seja a que mais acompanha meu trabalho: comunicação (como disciplina,
como senso comum, como contra comunicação ou seja crítica), poder (o controle)
e resistência (movimentos em rede, de multidão); essa tríade é a
transversalidade, uma conjugação de campos; e a transversalidade já é uma forma
de resistência, contra controle, que diz respeito ao campo da comunicação e aos
movimentos.
Na virada do século, com os movimentos globais
em rede, fortemente dependentes das novas tecnologias de comunicação e
informação, um novo paradigma de lutas tomou força, permitindo, então, uma
visão mais romântica do futuro, como a de Negri. Porém, o trabalho negriano é
fortemente dependente do trabalho de Deleuze, o que ele fez e bem foi atualizar
o trabalho de Deleuze considerando as formas atuais do poder e das
resistências.
Mas as considerações de Deleuze sobre a
necessidade de silêncio, a podridão da comunicação podem ser utilizadas para pensar certos processos
sociais, que não dizem respeito aos movimentos. A comunicação podre de Deleuze
e a contra comunicação de Negri são duas linhas atuais de uma sociedade da
informação: a comunicação como controle e a comunicação como contra o controle.
Para a epistemologia da comunicação essa é uma questão chave, define a
comunicação como um agenciamento formado por duas linhas de naturezas
diferentes, não dicotômicas.
Deleuze e Negri ajudam a
pensar outra questão epistemológica central, no meu trabalho, a autoria.
Deleuze diz que não há sujeito de um livro, e sim uma multiplicidade que o produz. Negri
utiliza o conceito de legião para pensar essa multiplicidade, sempre está
envolvido um coletivo, mesmo na escrita. Em relação aos campos da arte, saber e
da política, pensados como linhas de um agenciamento, isso diz respeito ao
paradigma rizomático de Deleuze: sistema a-centrado composto por elementos
heterogêneos. A multidão é um rizoma, a comunicação faz parte do rizoma, um
livro pode e deve ser um rizoma como o que eu proponho. Para Deleuze não basta
dizer “viva o múltiplo”, mas sim ele deve ser produzido. Isso para mim não é
uma palavra de ordem, a natureza dos objetos de minhas pesquisas exige isso,
produzir uma multiplicidade, a transversalidade. Os movimentos em rede, a
cidade, a comunicação, exigem a conjugação de uma multiplicidade de campos, fazer
rizoma. Isso é necessário para evitar a reprodução, a fotografia, o
congelamento de processos que estão em devir, acontecendo. Importante é pensar “com”,
perceber o comum, fazer parte desse comum, ser a linha de uma multiplicidade,
fazer a transversalidade.