quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

crônica em homenagem ao centésimo ano de vida do Amilton Carvalho


Eu tenho domínio apenas de duas linguagens escritas: a acadêmica e a literária. Eu não tenho capacidade para escrever um artigo sobre o Amilton e sua obra. Assim, fico preso na literatura. Prefiro escrever sobre a nossa relação. Algo entre nós, que envolve muita coisa, e também minha família. A relação do pai com meu irmão é diferente. Meu irmão foi corajoso e aceitou o sobrenome Carvalho, seguindo no mesmo campo. Minha irmã é uma moça, bem mais nova, o bebê da casa. Eu não cursei direito, não sou uma moça. Assim há todas essas diferenças. Mas todos nos aproximamos, pois estamos na academia. Algo bem pequeno burguês, não? Uma família de intelectuais... Isso para mim foi algo como um “determinismo”. Não poderia ser diferente, por sermos filhos de quem somos. E herdamos outras identidades mais duras, profundas: somos gente da classe média, brancos, heterossexuais, brasileiros, gaúchos, colorados. Poderíamos culpá-lo por isso. Você nos obrigou a ser quem somos!  Você nem perguntou! Assim do nada nos pôs no mundo! Se eu fosse um desses românticos existencialistas poderia dizer: eu não queria ser humano, nem existir, a culpa é sua. Porém, além do “determinismo”, ser filho do Amilton, quanto a mim, me abriu todo um campo de possíveis, realidades a serem escolhidas, potencializadas, experimentadas, transgredidas. Desde pequeno, eu o via em seu gabinete, só, escrevendo ou lendo. Não era um santuário, um lugar que criança não podia ficar. Mas sabia que era seu espaço de trabalho e respeitava. O gabinete cheio de livros, com pinturas. Cedo comecei a sentir prazer em ler e ficar recolhido. Com a chegada do vídeo cassete, os filmes se somaram. Desde criança, eu fui muito extrovertido, tinha muitas turmas, como o pai. E como ele, eu gostava, então, de ficar sozinho, lendo minhas revistas e vendo meus filmes. Um dia, com quatorze anos, ele me botou na parede e me intimou a ler um livro; eu nunca havia lido um além dos obrigados pelo colégio. Eu não fui com a cara do autor. Era um psicanalista metido a libertário. Mas, meses depois, comecei a ler Bukowski, Fante e a Geração Beat. Fui posto na parede e aceitei, mas aceitei da minha forma. Literatura foi o mais importante em minha adolescência e na graduação. Faz pouco tempo, lancei um livro de crônicas. Nele não falo da minha relação com meu pai, mas da relação pai e filho; da dicotomia; da prisão de ser o termo menor. Mas de forma alguma faria uma crítica a um centro de poder tendo como base minha experiência pessoal. Não sou um amador. E na real, talvez seja uma prisão maior ser o termo dominante; ser obrigado a agir como um adulto, branco, macho. Portanto, duas coisas que se atualizaram: a solidão e essa experiência com a literatura e o cinema; solidão e arte duas coisas que se atravessam. Fui obrigado quando criança a me mudar para inúmeras cidades do interior, porém, isso me possibilitou uma relação com a cidade. Sempre havia coisas e pessoas novas. No início da pré-adolescência, mudamos para uma cidade maior. Sempre me foi dada a liberdade para circular por ela. Algo comum, já que era uma cidade segura; mas não me tratavam feito criança. Eu podia ficar até de noite na rua, como podia ir na locadora e pegar o filme que eu quisesse. E quando não podia, fazia assim mesmo. Isso me foi possibilitado e a forma como experimentei a cidade me atinge até hoje. Meus pais se separaram; depois disso meu pai tentou alguns relacionamentos mais duradouros. Não deu certo. Eu experimentei alguns quase casamentos. Pensei em ter filhos em certos momentos. Morei com algumas garotas, possíveis esposas. Mas já faz muito tempo que isso para mim é impossível. Não quero ter uma esposa e filhos. Um caminho seria casar para saber que isso é insuportável. Mas o campo de possíveis foi aberto. Vi que a vida familiar não é uma obrigação. O pai em um momento parou de votar. Eu achei algo radical. Porém, comecei aprofundar meus estudos sobre os movimentos de resistência a ali me encontrei. Virei anarquista. Como eu digo: não estou repetindo os passos, se fizesse isso seria obrigado a enfrentar muitos erros. Mas a figura do meu pai permitiu que eu escolhesse algumas coisas. Eu não pude ser um rockeiro, isso não me foi permitido, já que o pai nunca teve interesse por música e isso me afetou. Mas pude ser um teórico que trabalha com as resistências, já que o pai sempre teve ligação com movimentos sociais. Não tenho problemas com a prisão de ser filho dele. A vida é uma prisão se você deseja se manter dentro dos padrões dominantes. Mas a beleza é todo esse campo aberto, múltiplos caminhos. Escolher, traçar linhas, montar uma vida como se monta um mosaico. Ele viveu muito e sempre esteve presente, aprendi com os erros dele.

Ele é meu parceiro de cafés. Um cara muito intuitivo. Um bom cristão. Melhor, alguém que fez sua antropofagia do cristianismo. Alguém que se pode contar. Um bom pai. Eu posso chamá-lo de fascista ou sacana em nossas divagações “cafeínicas”; e ele tem a cabeça tão boa que reconhece que é de uma geração anterior, com todos seus vícios. Eu poderia dizer que ele tem muito ainda a aprender. Mas, como ele sabe disso, tem como projeto o trabalho com Nietzsche, nestes últimos tempos – que estes durem o máximo possível.